Se a corrida à Casa Branca fosse uma Semana de Moda, Kamala Harris seria uma coleção sustentável e Donald Trump um apanhado de vintage dos anos 1990.
Na moda, tanto a onda vintage, seja de qual período for, quanto a lorota sustentável estão dentro do mesmo sistema de produção predatório. Muda a embalagem, o marketing, os ditos "valores", mas o conteúdo é basicamente idêntico.
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Exatamente como o sistema político bipartidário dos EUA. Pode até parecer que são diferentes, mas tanto o Partido Democrata como o Partido Republicano mantêm um forte compromisso com o sistema capitalista e a defesa da democracia liberal. Tanto Harris quanto Trump apoiam com unhas e dentes a propriedade privada e a economia de mercado.
Embora existam divergências em questões sociais e políticas públicas, ambos os partidos operam dentro do mesmo sistema político e constitucional, e dão suporte a políticas que favorecem o setor empresarial e a influência global dos EUA. Juntos, compartilham a mesma visão de manter a hegemonia dos EUA na geopolítica global.
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Vintage dos anos 1990 de Trump
Nas Semanas de Moda deste ano, várias coleções destacaram o retorno de tendências icônicas dos anos 1990. Essa década foi caracterizada por uma mistura de estilos grunge, minimalista e esportivo, que agora são revisitados com uma nova abordagem.
Itens icônicos, como calças jeans de cintura alta, jaquetas oversized, tênis robustos (chunky sneakers), e conjuntos de moletom esportivo, voltaram a compor os guarda-roupas contemporâneos.
Trump poderia ser comparado ao vintage puro e inalterado, sem mudanças. O extremista, assim como peças de vestuário que permanecem intocadas pelo tempo, representa uma política que retoma ideias passadas e as impõe como ideais de "glória perdida".
Assim como algumas pessoas optam por vestir uma jaqueta dos anos 1990 exatamente como era, Trump recupera o nacionalismo e o conservadorismo de forma explícita e sem atualizações e apela para aqueles que sentem nostalgia por uma era em que as coisas pareciam mais estáveis ou gloriosas.
A abordagem de Trump reflete um tipo de "estilo vintage conservador", que prefere manter as coisas como eram, ao invés de reimaginar o que elas poderiam ser no presente.
O ex-presidente se vende como o "Make America Great Again", como se estivesse promovendo um revival dos valores passados de uma América idealizada, assim como um item dos anos 90 que ressurge no armário de alguém que prefere não ajustar suas roupas ao estilo atual.
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Moda sustentável de Harris
A moda sustentável é a nova queridinha em um contexto político global que valoriza o combate às mudanças climáticas, a justiça social e a responsabilidade corporativa. O movimento busca reduzir o impacto ambiental da indústria da moda ao promover práticas éticas e materiais ecológicos.
Harris, em sua política, compartilha paralelos com essa onda de sustentabilidade fashion ao defender pautas progressistas, como o combate às desigualdades e o apoio à justiça climática. Assim como a moda sustentável, a candidata democrata representa uma tentativa de reformar o status quo e para isso busca equidade e sustentabilidade em suas políticas.
Nesta terça-feira (22), a democrata esteve em campanha em Detroit e ostentou uma camiseta com mensagem política ao lado de jovens negros. A cidade tem grande importância nas eleições dos EUA, especialmente em Michigan, um estado decisivo.
Com uma população majoritariamente afro-estadunidense e da classe trabalhadora, Detroit é fundamental para equilibrar áreas mais conservadoras do estado. Em eleições acirradas, a alta participação dos eleitores de lá pode ser decisiva para os resultados em Michigan, que muitas vezes inclina a balança no colégio eleitoral. Questões econômicas como empregos e a revitalização da indústria automotiva são centrais para os eleitores da cidade.
Essa conexão de Harris com pautas da juventude funciona pelo menos na propaganda e no discurso. Porque na prática, tanto a moda sustentável quanto Harris carregam contradições significativas ao operar em um sistema econômico e social que permanece inalterado.
Embora promova práticas éticas e ecológicas, a moda sustentável ainda depende de uma economia capitalista que privilegia o consumo em massa e o lucro a curto prazo.
Muitas marcas rotulam suas linhas como "sustentáveis" enquanto ainda utilizam práticas insustentáveis, uma prática conhecida como greenwashing.
A acessibilidade de produtos sustentáveis muitas vezes é limitada a consumidores de maior renda, o que reforça desigualdades socioeconômicas.
Essas contradições espelham desafios semelhantes enfrentados por políticas progressistas, como as de Harris. Ela defende reformas para justiça climática e social, mas opera dentro de um sistema político tradicional que pode dificultar, quando não inviabilizar, a implementação de mudanças reais.
Tanto Harris como a moda sustentável enfrentam questionamentos sobre a viabilidade de uma agenda progressista em um sistema que favorece políticas tradicionais.
Assim como a moda sustentável enfrenta dificuldades de adoção em larga escala por questões econômicas e estruturais, Harris encontra desafios ao implementar reformas substanciais dentro de um cenário político polarizado.
Questão de gênero
A moda e as questões de gênero estão profundamente interligadas, pois ambos refletem as normas sociais e culturais de cada época. A moda é muitas vezes utilizada para expressar identidade de gênero e desafiar estereótipos.
Nos anos 90, por exemplo, roupas reforçavam divisões de gênero com modas fortemente associadas ao masculino ou feminino. Hoje há um movimento crescente em direção à moda sem gênero, alinhada com discussões sobre fluidez de gênero e inclusão.
Hoje, o papel da moda na construção de identidade individual é mais dinâmico e permite que a vestimenta seja uma ferramenta de expressão tanto de liberdade pessoal quanto de protesto contra normas sociais opressivas.
A moda contemporânea, como a sustentável, também se alinha a valores progressistas, ao abordar questões de justiça social, direitos de minorias e feminismo, assim como políticas mais inclusivas relacionadas ao papel da mulher, LGBTQIA+, e outros temas. Tal mudança reflete as transformações mais amplas na sociedade em termos de gênero e busca por igualdade.
Valores em disputa
Essas diferenças de gênero podem ser a questão definidora das eleições de 2024 nos EUA, apesar de raramente serem abordadas diretamente pelos candidatos Harris e Trump. Essa eleição, de forma explícita e sutil, se torna um referendo sobre o papel das mulheres na sociedade estadunidense.
A candidatura de Harris, que poderia fazer história como a primeira mulher presidente dos EUA, é marcada pela resistência de alguns eleitores em aceitar uma mulher — especialmente negra e asiática — como chefe do Executivo.
Uma pesquisa realizada neste mês pelo The New York Times e pelo Siena College mostra que a diferença de gênero aumentou nas intenções de voto, com as mulheres mantendo seu apoio aos democratas e os homens se aproximando de Donald Trump.
Harris tem uma vantagem de 16 pontos percentuais entre as prováveis eleitoras, enquanto Trump lidera com 11 pontos percentuais entre os prováveis eleitores masculinos.
Grande parte da divisão de gênero é impulsionada pela geração mais jovem de eleitores. A pesquisa mostra que 69% das mulheres entre 18 e 29 anos apoiam Harris, em comparação com 45% dos homens jovens — uma diferença que ultrapassa a de qualquer outra geração mais velha de eleitores.
Para além das questões de gênero, Harris e Trump têm bases de apoio cujos valores refletem divergências políticas significativas, conforme mostra um estudo do Pew Research.
Os apoiadores de Harris tendem a ser mais progressistas, focando na justiça racial, direitos LGBTQ+, igualdade de gênero e políticas que enfrentam desigualdades sistêmicas.
Já os apoiadores de Trump valorizam o nacionalismo, preferem políticas tradicionais e são críticos ao que consideram excessos de "politicamente correto". Eles se concentram mais em temas como liberdade de expressão e uma identidade nacional forte, resistindo a políticas identitárias focadas em raça e gênero.
No dia 5 de novembro, a menos de duas semanas, chega ao fim a "Semana de Moda rumo à Casa Branca". A disputa segue acirrada e com resultado imprevisível. Qual o estilo que o povo dos EUA - na verdade, seu colégio eleitoral - vai escolher? O vintage dos anos 1990 de Trump ou a moda sustentável de Harris?
Quando uma das escolhas chegar ao guarda-roupa do eleitorado dos EUA, independente do vencedor, será representante de um mesmo sistema de um império que tenta se posicionar em um mundo em transformação.
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