Ajuizar inúmeras ações judiciais para constranger ou dificultar o exercício da liberdade de imprensa é ilegal. Em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu nesta quarta-feira (22) a ilegalidade do chamado "assédio judicial" contra jornalistas e veículos de imprensa.
Pelo entendimento, as ações nas quais pessoas citadas em matérias jornalísticas buscam indenizações devem ser julgadas pela Justiça da cidade onde o jornalista mora. Atualmente, quem processa pode escolher a cidade em que a ação vai tramitar, pulverizando os processos contra a imprensa.
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Os ministros também acrescentaram na decisão que a responsabilização de jornalistas e veículos de imprensa deve ocorrer somente em caso de dolo ou culpa grave, ou seja, por negligência profissional, com a intenção de prejudicar a pessoa citada em uma reportagem.
O julgamento foi motivado por ações protocoladas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
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A questão foi decidida com base no voto do ministro Luís Roberto Barroso. O ministro citou casos de 100 ações ajuizadas ao mesmo tempo em diversos estados contra jornalistas. As ações são movidas por pessoas citadas em reportagens para buscar indenização por danos morais.
Durante a sessão, Barroso disse que o Brasil possui um "passado que condena" em questões sobre liberdade de imprensa.
"A história do Brasil teve censura à imprensa, com páginas em branco, receita de bolo, poemas de Camões, todas as músicas tinham que ser submetidas ao departamento de censura, o balé Bolshoi foi proibido de ser encenado porque era [considerado] propaganda comunista", comentou.
A ministra Cármen Lúcia acrescentou que o assédio judicial contra jornalistas é uma forma de perseguição.
"Se nós vivemos a década de 1970, com toda forma de censura, hoje nós temos outras formas de censura particulares. Nós não queremos defender e dar guarida a novas formas de censura, estamos falando de liberdade", completou.
Epidemia de assédio turbinada por Bolsonaro
Casos de assédio judicial contra jornalistas ganharam impulso durante o governo Bolsonaro (2019-2022). Os ataques contra profissionais da imprensa se tornaram frequentes recorrentes no período da gestão de extrema direita.
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Tanto que a Abraji lançou o Monitor de Assédio Judicial, que documenta 654 processos que se enquadram como assédio judicial desde 2008, no dia 24 de abril deste ano.
Do total dos casos cadastrados, 434 ocorreram nos últimos cinco anos, destacando um aumento significativo desse tipo de assédio durante e após o governo de Jair Bolsonaro.
Esses dados foram compilados no relatório Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas no Brasil. O documento define assédio judicial como:
“o uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalista, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público”.
Trata de processos movidos por pessoa física ou jurídica, em contexto de desequilíbrio entre as partes, em desfavor de pessoa jornalista, e que possam causar consequências judiciais intimidatórias à vítima.
O estudo destaca que a ação judicial precisa ser evidentemente infundada ou que as estratégias processuais utilizadas sejam abusivas, causando exaustão à vítima e prejuízo no exercício de seu direito de defesa.
Tipos de assédio
Há quatro tipos de assédio que podem ser empregados como meio de intimidação à imprensa:
- processos que têm um mesmo jornalista como vítima de ações coordenadas,
- processos ajuizados por um mesmo autor litigante contumaz,
- processos com pedidos de indenização exorbitantes ou
- processos que se valem do uso do sistema criminal.
A partir da análise dos dados da Abraji, o tipo de assédio mais frequente (450) foi o de processos que têm um mesmo jornalista como vítima de ações coordenadas.
Campeões de assédio judicial contra a imprensa
Bolsonaristas, empresários, políticos e associações dominam o ranking de maiores assediadores judiciais contra jornalistas:
- Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan (53 processos)
- Guilherme Henrique Branco de Oliveira, advogado e candidato derrotado a deputado federal nas eleições de 2022 (47)
- Associação Nacional Movimento Pró-Armas (17)
- Daniel Dantas, fundador do fundo de investimentos Opportunity (15)
- Julia Pedroso Zanatta, deputada federal (PL-SC) (12)
- Médicos Pela Vida, negacionistas que defenderam tratamento ineficaz contra a Covid-19 (12)
- Kim Kataguiri, deputado federal (União-SP) (8)
- Orlando Morando Jr, prefeito de São Bernardo do Campo (SP (8).
Vítimas de assédio judicial
Elvira Lobato, jornalista da Folha de S. Paulo, foi alvo de diversos processos judiciais movidos por membros da Igreja Universal do Reino de Deus. Os processos foram distribuídos em diferentes estados, forçando-a a viajar frequentemente para participar das audiências. Apesar de vencer todas as ações, o objetivo era claramente intimidá-la e dificultar seu trabalho?.
Allan de Abreu, jornalista da revista piauí também figura entre os casos monitorados de assédio judicial. Depois de uma reportagem investigativa sobre o crime organizado, foi processador por vários personagens citados no texto.
O jornalista e escritor J.P. Cuenca, que enfrentou 145 ações judiciais em 2020, todas movidas por pastores evangélicos devido a uma postagem sobre a Igreja Universal do Reino de Deus.
Tipos de conteúdos que geram assédio
Grande quantidade de casos (49%) de assédio ocorreram a pretexto de matérias predominantemente informativas, que reportam ou apuram fatos relativos a pessoas de interesse público.
"A divisão entre fatos e opiniões, que deveria ser relevante para atribuição de responsabilidades em ilícitos contra a honra, parece não ter grande impacto no Brasil: mesmo reportagens predominantemente factuais expõem as jornalistas e os jornalistas que as publicam a riscos jurídicos relevantes", diz o relatório da Abraji.
Quando aceito algum pedido contra o jornalista ou o veículo de imprensa, o mais frequente era que se tratasse do pagamento de indenização. Isso ocorreu em 62 casos (que podem ou não ter sido reformados em instâncias superiores).
O número mostra que, mesmo no caso da providência mais comum, o número de deferimentos é baixo, o que sugere que o assédio se consuma mais pela importunação processual do que propriamente pela gravidade das consequências jurídicas que ele traz.
O importante é perturbar
O levantamento da Abraji identificou que o destino da maior parte das ações de assédio é o fracasso, já que a maioria dos processos resulta como “Extinto sem resolução de mérito” e “Improcedente em todas as instâncias”. Isso reforça que a prática do assédio é indiferente ao resultado do processo.
Assim como entendido internacionalmente no caso de SLAPP (Strategic Lawsuit Against Public Participation), o objetivo dessas ações não é a concessão judicial do seu pedido, mas o ônus que o simples fato de ser processado trará ao jornalista - custos processuais investidos na defesa, tempo e energia não direcionados ao exercício profissional da atividade jornalística, abalo à reputação e sofrimento psicológico.
Melhoras no governo Lula
Após registrar alta nos quatro anos de governo Bolsonaro, o número de casos de violência contra jornalistas voltou a cair em 2023. O relatório Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, lançado em janeiro deste ano pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostrou uma queda de 51,86%. Ao todo, foram 181 casos em 2023, enquanto em 2022 foram 376.
Apesar da queda, a Fenaj afirma que o número permanece alto, influenciado, principalmente, pelo legado de incentivo aos ataques à imprensa deixado pelo governo anterior.
Entre 2019 e 2022, Bolsonaro realizou 570 ataques a veículos de comunicação e aos jornalistas, uma média de 142,5 de agressões por ano e duas agressões por dia.
Esses ataques foram os mais registrados em 2022, visto que foi uma estratégia adotada por Bolsonaro em seu governo, observou a Fenaj. Naquele ano, foram 87 casos de ataques genéricos e generalizados (23,14% do total), que buscaram desqualificar a informação jornalística. Já em 2023, foram 7 casos, uma queda de 91,95%.
A Fenaj analisou diversos tipos de violência, como assassinatos, atentados, agressões físicas, censura e cerceamento da atividade jornalística. Esse último tipo é o que mais preocupa a entidade atualmente, visto que registrou crescimento de 92,31%, na comparação com 2022.
Esse tipo de violência acontece através de ações judiciais e ataques cibernéticos, que subiram de 13 para 25 casos.
O documento ainda mapeia os principais agressões. Em primeiro lugar, estão políticos, assessores e parentes (24,31%) e em segundo lugar aparecem os manifestante de extrema direita (16,02%).
Ataque contra a Fórum
O documento da Fenaj citou um episódio de violência direcionado aos jornalistas da Fórum após publicação de uma reportagem em que era exposta a violência a que jornalistas do Estadão teriam sido submetidos na produção de reportagens que associassem Flávio Dino a organizações criminosas.
"O jornalista Renato Rovai e a revista Fórum, da qual ele é o editor, foram alvos de ataques, após a publicação de reportagem sobre denúncia contra a jornalista Andreza Matais, editora-executiva de Política e chefe da sucursal do Estadão em Brasília, enviada ao Ministério Público do Trabalho, por jornalistas a ela subordinados", diz o relatório.
Leia aqui o relatório da Fenaj na íntegra.