‘Garra’, essa é a palavra que define Simone Silva, de 46 anos. Liderança da comunidade quilombola, ribeirinha e indígena da Gesteira, em Barra Longa, a 60 km da Barragem do Fundão - a mesma que gerida pelas mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, em Mariana (MG), rompeu em 5 de novembro de 2015 gerando um colossal tsunami de lama tóxica que varreu centenas de quilômetros ao longo da bacia do Rio Doce. Ela viu sua comunidade ser completamente destruída após o episódio.
“A gente não fala em desastre, não fala em tragédia. Nós que fomos atingidos chamamos o que aconteceu de crime”, declarou em entrevista exclusiva à Revista Fórum.
Simone perdeu parentes e viu a filha Sofia, que tinha apenas 9 meses quando o crime ocorreu, desenvolver sérias doenças respiratórias por conta da lama tóxica despejada pelas mineradoras na região. Ela contou em detalhes todas as tragédias pelas quais está passando nesses últimos 8 anos e declara, com todas as letras, que não confia na Justiça brasileira e em seu suposto processo de reparação às vítimas.
Como argumento, cita o caso da própria comunidade da Gesteira. O local foi totalmente destruído pela lama, no ato do crime ambiental - "não sobrou nada para contar história", diz Simone. Ao mesmo tempo, a Fundação Renova, responsável por remediar os danos causados pelo crime, levava a lama tóxica que cobriu o centro, e área mais nobre, da pequena cidade mineira, para o alto dos morros, onde vive o povo preto e periférico. Foi assim que sua comunidade e o entorno adoeceram e até hoje não viu nem os culpados serem punidos. Ela define esse processo como "racismo ambiental".
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“Costumo dizer que a Simone de antes de 5 de novembro de 2015 só existe nas lembranças e na fotografia. Porque nós precisamos, por conta do crime, nos transformar, mudar. A gente estava no processo de lagarta e, do nada, tivemos que evoluir para borboleta. Não deu nem tempo de fazer aquela metamorfose do casulo porque o processo foi muito violento. Tivemos que nos fortalecer enquanto comunidade para lutar pelos nossos direitos”, explica.
E foi nessa luta que Simone, sua família e comunidade encontraram força para reinventar a vida destruída pelas corporações. Os quilombolas, mesmo estando fora do foco midiático da crise – concentrado nos distritos mais próximos ao epicentro do crime ambiental – se mostraram uma comunidade “matuta”, como a própria Simone diz, e conseguiram fazer valer o seu direito ao reassentamento. Agora, um consórcio criado entre o poder público, as mineradoras e outros setores, irá bancar em R$ 126 milhões a terraplanagem e os equipamentos públicos da ‘nova’ Gesteira. Já as residências, serão construídas pelos próprios moradores à sua maneira, conforme o desejo coletivo.
“Hoje sou militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Quando eu me vi no processo de injustiça, quando a minha filha ficou doente, não sabia o que fazer. Porque a gente é ensinado assim, a depender de políticos, principalmente a gente que vem de comunidades em cidades pequenas. Aconteceu alguma coisa, você vai atrás do vereador e do prefeito. Então quando a minha filha ficou doente, quando eles começaram a retirar a lama da praça, da cidade, e trazer aqui para o alto do morro onde eu moro, comecei a brigar. Fui atrás de vereador e de prefeito para pedir que não colocassem a lama aqui porque a minha filha já estava doente. Eles simplesmente viraram as costas. Quando eu vi que nada aconteceria, graças a Deus, o MAB chegou aqui na região trazendo luz e esperança”, contou.
Leia a entrevista na íntegra a seguir.
Revista Fórum – Quem é a Simone Silva, atingida pelo crime das mineradoras Vale, Samarco e BHP Billiton, em Minas Gerais?
Simone Silva - Eu sou atingida pelo crime da Vale, Samarco e BHP Billiton. Sou de Barra Longa e tive a minha comunidade inteira varrida do mapa assim como Bento Rodrigues e Paracatu. Embora o povo não fale muito sobre isso, a minha cidade foi a única que teve o centro urbano destruído pela lama. Sou mãe de Sofia, uma das crianças contaminadas pelos metais tóxicos. Ela é uma das 11 pessoas que fizeram o exame aqui em Barra Longa logo do rompimento da barragem. Dessas 11 pessoas, 5 já faleceram. É um crime. A gente não fala desastre, não fala tragédia. Nós que fomos atingidos chamamos o que aconteceu de crime. Barra Longa está a 60 quilômetros da Barragem do Fundão, que rompeu e causou toda essa situação. E mesmo a essa distância, a lama tóxica destruiu a comunidade inteira.
Perdi minha avó e perdi meu tio. Eles não morreram no momento do rompimento, conseguiram sair com a vida naquele dia. Mas não sobreviveram ao processo de reparação e de justiça que simplesmente não aconteceu. Meu tio, quando teve o crime, foi realocado num lugar longe da família. Ficou sozinho, isolado e acabou desenvolvendo depressão. Foi ficando triste e dizia todo dia que iria morrer, ou que estava morrendo. ‘Ninguém vê que eu tô morrendo’, dizia.
Temos vários documentos dele que foram entregues para a Fundação Renova [constituída em 2 de março de 2016, por um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), e iniciou suas operações em 2 de agosto do mesmo ano. Ela tem o dever de reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão] e para as instituições de Justiça, que alertavam que ele iria morrer. Quando foi 18 de novembro de 2018, ele foi encontrado morto.
Quando teve o crime da Vale em Brumadinho, tinha 3 meses que eu tinha perdido meu tio. A minha avó, assistindo a reportagem, viu aquela situação toda, já não tava bem por causa da perda do meu tio, e começou a passar mal. Ela falava assim: ‘Você viu minha filha? Nossa, Deus, lá em Brumadinho também aconteceu mas ainda foi pior do que com nós, você viu? Lá morreu mais gente.’
Eu respondia: ‘Não vovó, não morreu não, tá tudo escondido no mato. Amanhã de dia essas pessoas vão aparecer’. Dizia isso porque eu não queria deixar ela mais triste, mais preocupada. Nesse dia ela foi pro hospital e voltou pra gente dentro de um caixão.
Em 3 meses eu enterrei o meu tio e a minha avó. E o que é mais doído é uma cena que não sai da minha cabeça, quando eu chego no cemitério para sepultar a minha avó. Ela foi sepultada na mesma cova do meu tio. O caixão do meu tio tava lá e eu então revivo a cena da perda do meu tio.
Revista Fórum – Como era a comunidade antes do crime? Antes daquele 5 de novembro de 2015?
Simone Silva - A gente costumava dizer que era o “pedacinho do céu”. A minha família por exemplo era a mais unida que tinha ali naquela comunidade. Mesmo os filhos, netos e bisnetos estando fora, quando chegava o final de semana ou as datas comemorativas, todos vinham para a casa da minha avó. Dormíamos amontoados, um em cima do outro, ficávamos a noite inteira comemorando, fazendo churrasco, cantoria. E era muito, muito bom.
A minha comunidade, da Gesteira, é uma comunidade quilombola, ribeirinha e indígena. Ribeirinha porque estamos às margens do rio; quilombola por que somos remanescentes dos escravizados de João Gesteira; o coronel que ali oprimiu o povo negro; e indígena porque ali sempre foi área indígena e tem pessoas na comunidades que são remanescentes dos povos indígenas que foram exterminados por Matias Barbosa, o colonizador de Barra Longa.
Somos uma comunidade tradicional, embora em nenhum momento a gente tenha sido respeitado, ou tratado ao longo do processo da reparação, como tal. Mas isso não importa, nós somos quilombolas independente do que digam. Eu sou descendente dos escravizados da região de Gesteira que os colonizadores oprimiram. Sou remanescente de quilombo.
Costumo dizer que a Simone de antes de 5 de novembro de 2015 só existe nas lembranças e na fotografia. Porque nós precisamos, por conta do crime, nos transformar, mudar. A gente estava no processo de lagarta e, do nada, tivemos que evoluir para borboleta. Não deu nem tempo de fazer aquela metamorfose do casulo porque o processo foi muito violento. Tivemos que nos fortalecer enquanto comunidade para lutar pelos nossos direitos. Toda a história, tudo que tinha ali, foi embora. Não sobrou nada. As origens e a identidade anteriores se perderam. Porque um povo quando há um rompimento dessa magnitude, ele perde o seu rio, o seu território e também a sua identidade. As festas, tanto as das igrejas evangélicas, como das igrejas católicas, as festas culturais, eram todas feitas naquela comunidade. Ali tinha uma tradição antiga, daquela que conservava as origens, mas tudo isso foi embora do nada. A escola, a igreja, tudo. Tinha muita história que foi varrida pelo tsunami de lama.
Revista Fórum – O que pode comentar das lutas por reparação dos últimos 8 anos?
Simone Silva - A minha bandeira é a saúde porque eu tenho uma filha que tinha 9 meses na época do crime e foi contaminada e condenada, porque uma vez contaminada, não tem cura e nem um tratamento específico. A Sofia hoje tem uma inflamação gravíssima no cérebro e outra no intestino que cada dia que passa vão se agravando. Nem na Justiça você consegue o tratamento para manter as pessoas vivas e isso, por si só, já é uma luta constante. Apesar de 8 anos após o crime da Vale, nós não temos nenhum protocolo em saúde. Não tem nada, é um descaso. O Ministério da Saúde não foi capaz de desenvolver protocolo. Não foi capaz de estar procurando recursos e médicos especializados para poder tratar isso via SUS. É um tratamento caro que não tem no SUS e nada é feito.
Estamos 24 horas gritando, pedindo socorro para que as pessoas contaminadas possam se manter vivas. É questão de injustiça mesmo. E no Brasil, infelizmente, a Justiça caminha de mãos dadas com as mineradoras criminosas. Você vê as instituições de Justiça dando marteladas e canetadas contra a vida das pessoas atingidas. E 8 anos estamos aqui, ainda, falando sobre isso. O ‘trem’ é grave. A gente sabe que é grave e eles têm ciência de que isso está acontecendo e as pessoas estão morrendo no território. Muitas dessas que já faleceram foram perdendo partes do corpo no processo. Tiveram que amputar membros do corpo. Então é difícil, sabe? Para você enquanto mãe estar todo dia enfrentando esse processo de luta por direitos. Nesses 8 anos em nenhum momento nós tivemos o direito a ter direitos.
Revista Fórum - Qual que é a expectativa de vocês em termos de reparação?
Simone Silva - A gente não tem mais esperança na Justiça do Brasil. Veja só, quando eu disse pra você que a minha pauta é saúde e moradia, por exemplo, para você ter uma ideia, estou numa moradia temporária e precária há 8 anos. Eu vou te mandar umas fotos da casa que estou morando com uma criança que tem problema respiratório e é contaminada pelos metais tóxicos da Vale/Samarco/BHP. [Simone enviou as imagens à reportagem, há infiltrações até mesmo no interior da infraestrutura elétrica da residência, além de buracos no teto. De fato, trata-se de ambiente insalubre para qualquer pessoa, e especialmente para sua filha pequena].
A minha casa está interditada, mesmo não tendo sido levada pela lama. Fui atingida pelo próprio – e suposto – processo de reparação. Todas as vezes que você ouvir que as empresas estão reparando, pode ter certeza que, na verdade, elas estão causando ainda mais danos e atingindo outros níveis de pessoas. Foi o que aconteceu aqui em Barra Longa. Veio aquele tsunami de lama que atingiu o centro do município e, em meio ao processo de reparação, essa lama foi retirada das partes nobres da cidade e trazida para o alto dos morros, tanto em Barra Longa como próximo da Gesteira, onde moram as pessoas negras. O nome disso é racismo ambiental.
Depois fizeram uma reunião da Fundação Renova com as mineradoras em que assinaram um acordo que retira o direito à moradia da população atingida. Teve uma perícia aqui em Barra Longa tocada por uma empresa que já trabalhou para BHP. O escritório dela é no escritório da Vale, no mesmo prédio, e foi essa a empresa a escolhida para fazer a perícia. Pois bem, na perícia essa empresa chega a casas que estão totalmente destruídas, caindo aos pedaços e abandonadas há 8 anos, e oferecem valores ridículos, de R$ 500 a R$ 8 mil para que os moradores as reformem.
A gente não acredita mais na Justiça brasileira e está com esperança em relação a ação que corre em Londres. Por aqui temos sido excluídos dos processos de reparação, mesmo já tendo provado que a comunidade da Gesteira sabe negociar e é expert no território.
Revista Fórum – Nesse contexto da questão da moradia e das negociações, como se deu o Acordo da Gesteira?
Simone Silva - As mineradoras não faziam nada na comunidade de Gesteira. Passou-se oito anos e nem terraplanagem no terreno do reassentamento tem ainda. Em Bento Rodrigues e Paracatu está acontecendo porque está no olho da mídia. Não que o povo esteja sendo reparado, porque eu conheço de perto a história do povo de Bento e Paracatu e sei a realidade de cada casa que está sendo entregue e a luta deles, até porque nós somos um coletivo de luta. Mas é importante dizer que aqui na Gesteira, em Barra Longa, nada aconteceu.
A gente está lutando, fazendo manifestação, paralisação e cobrando o Ministério Público Estadual. Sabemos negociar, tanto é que fomos nós que desenhamos o nosso assentamento e não aceitamos nada pronto da empresa. Lutamos para ser uma parte ativa do acordo que nos cabe e, nesse sentido, vencemos. Foram reuniões intermináveis em Belo Horizonte e aqui na comunidade, mas convencemos a Fundação Renova e o consórcio irá fazer as instalações públicas e a terraplanagem do novo assentamento. Por sua vez, as moradias serão reconstruídas por cada atingido, da forma como queremos, como manda a nossa tradição. Mostramos que somos uma comunidade matuta.
Revista Fórum – Temos notado que apesar das injustiças, essa auto-organização popular, tanto para fazer a luta como para organizar o cotidiano das comunidades atingidas, tem dado muita força a vocês. Pode comentar a respeito?
Simone Silva - Hoje sou militante do MAB. Quando eu me vi no processo de injustiça, quando a minha filha ficou doente, não sabia o que fazer. Porque a gente é ensinado assim, a depender de políticos, principalmente a gente que vem de comunidades em cidades pequenas. Aconteceu alguma coisa, você vai atrás do vereador e do prefeito. Então quando a minha filha ficou doente, quando eles começaram a retirar a lama da praça, da cidade e trazer aqui para o alto do morro, comecei a brigar. Fui atrás de vereador e de prefeito para pedir que não colocassem a lama aqui próximo porque a minha filha já estava doente. Eles simplesmente viraram as costas. Quando eu vi que nada aconteceria, graças a Deus, o MAB chegou aqui na região.
O MAB nos fortaleceu e nos mostrou que era possível reconstruir a nossa história. Que era possível fazer luta. O MAB foi a base para a gente aqui e ainda é. Se a gente tem essa auto-organização é porque nós aprendemos com o MAB a militar e a caminhar. O MAB, eu costumo dizer, trouxe luz e esperança.
Quando há um rompimento de barragens, a primeira coisa que você pensa é: ‘acabou minha história, não tem jeito mais, eu perdi tudo e vai ficar por isso mesmo’. Só que o MAB chega te mostrando que não, ou seja, que é possível fazer luta, cobrar reparação e recuperar nossas vidas.
*Entrevista atualizada em 21 de setembro de 2023.