Pagu trouxe a soja para o Brasil?
O que é mito e o que é fato nessa história sobre uma das maiores figuras culturais do país
Patrícia Rehder Galvão (1910–1962), mais conhecida como Pagu, foi uma das mulheres mais marcantes da história política e cultural brasileira no século XX. Escritora, jornalista, tradutora, dramaturga e militante comunista, ela foi também uma das primeiras mulheres presas por motivos políticos no Brasil. Sua vida foi uma sucessão de ousadias, transgressões e lutas — sempre à frente de seu tempo.
Entre os muitos episódios curiosos que cercam sua trajetória, um se destaca por seu caráter quase mítico: o de que Pagu teria sido a responsável por introduzir a soja no Brasil. A história remonta à sua viagem à China, em 1935, quando teria presenciado a coroação de Pu Yi (1906–1967), último imperador da China e então chefe de Estado do território-fantoche de Manchukuo, instalado pelo Japão na Manchúria.
Segundo relatos não confirmados, Pu Yi teria presenteado Pagu com sementes de soja, que ela então teria enviado ao Brasil para serem distribuídas por estações experimentais pelo então ministro da Agricultura, Fernando Costa (1884–1943).
Soja chegou ao Brasil no século XIX
No entanto, essa versão encontra limites nos registros históricos. A soja já era conhecida no Brasil antes disso. Documentos apontam que as primeiras sementes da planta chegaram ao país por volta de 1882, provavelmente trazidas por naturalistas europeus ou imigrantes, e plantadas na Bahia.
A introdução mais sistemática ocorreu a partir de 1908, no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em São Paulo, onde a planta passou a ser estudada cientificamente — sobretudo para uso forrageiro, ou seja, na alimentação animal.
Nas décadas seguintes, o cultivo da soja se espalhou lentamente por estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, sem grande expressão econômica. Só a partir dos anos 1970, com o avanço de tecnologias agrícolas e o empenho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o grão passou a ocupar papel central na agricultura nacional, sobretudo em áreas do Cerrado como Mato Grosso, Goiás e Paraná.
Esse crescimento foi impulsionado pela ditadura militar, interessada em ampliar a fronteira agrícola e reduzir a dependência externa de alimentos e óleos vegetais. A soja, então marginal, se transformou em motor da economia agrícola. Hoje, o Brasil é o maior produtor e exportador mundial de soja, ultrapassando Estados Unidos e Argentina, com destaque para as exportações à China, que dispararam nos anos 2000.
Pagu e a China de Mao
Mesmo que Pagu não tenha introduzido a soja no Brasil, sua relação com o grão não é apenas lendária — é também concreta. Em 1951, ela visitou novamente a China, já sob o comando comunista de Mao Zedong (1893–1976), e se impressionou com o uso da soja na alimentação popular. Observando de perto as políticas de segurança alimentar e nutrição do governo chinês, Pagu passou a defender o uso da soja no Brasil como alternativa nutritiva e acessível, especialmente nas merendas escolares.
Ela escreveu sobre o tema em jornais, sugerindo cardápios escolares à base de soja para combater a desnutrição entre crianças de baixa renda. Embora os textos específicos estejam dispersos ou não tenham sido digitalizados, há registros secundários que comprovam seu engajamento nesse tema. Sua proposta antecipava debates sobre alimentação escolar equilibrada e políticas públicas de nutrição — algo ainda bastante incipiente na época.
Pagu não trouxe a soja ao Brasil, mas teve papel relevante na difusão da ideia de seu uso alimentar, especialmente voltado à nutrição popular. Seu interesse foi despertado pela experiência chinesa em 1951, e seu ativismo transformou esse aprendizado internacional em proposta concreta para o Brasil, unindo cultura, política, nutrição e educação. Em tempos de fome e desigualdade, Pagu viu na soja não um símbolo oriental exótico, mas uma ferramenta de transformação social.
Soja no Brasil e o legado de Pagu
A safra 2024/2025 de soja no Brasil atingiu um recorde histórico, com estimativa de 168,3 milhões de toneladas, consolidando o país como o maior produtor mundial do grão, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). O Centro-Oeste lidera a produção, impulsionada por condições climáticas favoráveis e avanços tecnológicos. As exportações devem acompanhar o ritmo, com previsão de 105,96 milhões de toneladas embarcadas em 2025 — a China segue como principal destino.
Porém, o crescimento acelerado da soja impõe sérios desafios. No plano ambiental, o avanço da lavoura está ligado ao desmatamento, à perda de biodiversidade e à contaminação de água e solo por agrotóxicos — o Brasil lidera o consumo mundial dessas substâncias.
No campo social, predominam conflitos fundiários, casos de trabalho escravo e agravamento da insegurança alimentar. Economicamente, aumentam a concentração fundiária e a dependência das exportações. Já na saúde pública, estudos relacionam o uso intensivo de pesticidas a doenças graves, como câncer e leucemia infantil.
Nesse cenário, ganha força o pensamento de Pagu, que após visitar a China comunista em 1951 passou a defender o uso da soja nas merendas escolares como fonte nutritiva, barata e acessível. Mais de sete décadas depois, sua proposta permanece atual — num Brasil que lidera a produção global, mas ainda enfrenta desigualdades profundas e insegurança alimentar.
Na China, soja é sagrada
Cultivada há milênios no nordeste da China, a soja é mais do que um alimento: é parte da alma agrícola, cultural e espiritual do país. Considerada uma das “cinco sementes sagradas” da agricultura tradicional chinesa — ao lado do arroz, trigo, cevada e painço —, ela ocupa lugar central tanto na história alimentar quanto nas práticas filosóficas e religiosas do povo chinês.
Estudos arqueobotânicos indicam que a soja é cultivada há pelo menos cinco mil anos. Desde então, tornou-se um dos ingredientes mais versáteis da culinária chinesa, presente do café da manhã aos rituais religiosos. A diversidade de derivados da soja evidencia sua importância cotidiana e simbólica:
- Molho de soja (jiangyou) – Um dos condimentos mais populares da China, produzido pela fermentação da soja com trigo. É base para temperos, caldos, marinadas e pratos tradicionais.
- Tofu (doufu) – Conhecido como "queijo de soja", é uma das principais fontes vegetais de proteína no país. Consumido frito, fresco, fermentado ou em sopas, está presente tanto em refeições simples quanto em banquetes cerimoniais.
- Leite de soja (doujiang) – Bebida tradicional do café da manhã, geralmente acompanhada de pão frito (youtiao), amplamente consumida em zonas urbanas e rurais.
- Tempeh e produtos fermentados – Em regiões como Sichuan e Yunnan, produtos fermentados de soja são valorizados por seu sabor intenso e riqueza nutricional.
- Pasta de soja fermentada (doubanjiang) – Essencial em pratos picantes, como o famoso mapo tofu, confere profundidade e calor aos alimentos.
- Brotos de soja (douya) – Utilizados em saladas, refogados e caldos, são leves, crocantes e altamente nutritivos.
Na medicina tradicional chinesa, a soja é valorizada por equilibrar o qi (energia vital). Rica em proteínas, isoflavonas, fibras e vitaminas, é associada à vitalidade, moderação e longevidade. Seu consumo regular é promovido como forma de prevenção e harmonia corporal.
Desde os anos 1950, durante o governo de Mao, a soja passou a integrar as políticas públicas de segurança alimentar. Seu baixo custo de produção e alto valor nutricional fizeram dela um alimento estratégico em campanhas contra a fome, sendo incorporada a programas de merenda escolar em todo o país.
Com o crescimento populacional e a industrialização da pecuária, a China tornou-se um dos maiores importadores mundiais de soja — especialmente do Brasil e dos Estados Unidos. Atualmente, boa parte do grão é utilizada na produção de ração animal, embora o consumo humano permaneça robusto, tanto em contextos domésticos quanto espirituais.
Mais do que alimento, a soja carrega significados culturais profundos. É símbolo de modéstia, resiliência e sabedoria popular. Seu uso é frequente em refeições vegetarianas budistas e práticas de purificação espiritual. Em templos e rituais, aparece como oferenda de simplicidade e conexão com a terra. Na tradição chinesa, respeitar a soja é também respeitar o ciclo da vida e a harmonia entre o ser humano e a natureza.
Soja, Pagu, China e Brasil
Na China, a soja é considerada sagrada: símbolo de sabedoria, equilíbrio e respeito à natureza. No Brasil, tornou-se símbolo de poder econômico — mas também de contradições profundas.
Entre esses dois mundos, Pagu enxergou pontes. Foi uma das primeiras intelectuais brasileiras a perceber que a alimentação pode ser também uma política revolucionária. Inspirada pela experiência chinesa, transformou um alimento ancestral em proposta de futuro.
Num país que produz milhões de toneladas de soja, mas ainda convive com a fome, seu legado ecoa como um alerta: não basta colher recordes — é preciso semear justiça.