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Ibn Battuta: o explorador que superou Marco Polo e cruzou o mundo por 30 anos

Depois de partir para sua primeira peregrinação muçulmana rumo à Meca, Ibn Battuta seguiu viagem por mais 30 anos, e narrou o que viu por 120 mil quilômetros na Rihla, a história de sua jornada

Escrito em História el
Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
Ibn Battuta: o explorador que superou Marco Polo e cruzou o mundo por 30 anos
Retrato de Ibn Battuta. Wikimedia Commons

Em 1325, com 21 anos, Ibn Battuta deixou sua cidade natal (Tânger, no Marrocos) e partiu para realizar sua primeira peregrinação à Meca (haje, a jornada que os muçulmanos devem cumprir à cidade sagrada pelo menos uma vez na vida).

A viagem, que deveria durar alguns meses, transformou-se em uma odisseia de quase 30 anos, que o levou a cruzar desertos, mares, montanhas e impérios, cobrindo uma distância estimada em 120 mil quilômetros. Para fins de comparação, Marco Polo — o famoso explorador italiano, que viajou durante 24 anos — percorreu cerca de 25 mil quilômetros.

A primeira jornada à Meca foi feita por terra: Ibn Battuta seguiu a costa norte da África em caravanas, em uma rota que incluía o Egito, a própria Meca e, depois, foi ao Iraque.

Os relatos do que viria depois — suas viagens ao longo de três décadas — foram narrados por ele a um escriba, por ordem do sultão de Fez, Abu Inan Faris. Não se sabe ao certo o que pode ter sido acrescentado pelo redator ou exagerado pelo narrador. Ainda assim, as aventuras de Ibn Battuta tornaram-se um campo fértil para a literatura de viagens, registradas em forma de crônicas e conhecidas como Rihla (A jornada).

Ibn Battuta (à direita) e seu guia no Egito. Desenho de 1878.
Créditos: domínio público 

O texto combina descrições vívidas com comentários religiosos, jurídicos e sociais, observações feitas por alguém profundamente interessado nas diferenças socioculturais entre povos muçulmanos e não muçulmanos ao redor do mundo. Até hoje, os relatos de viagem de Ibn Battuta estão entre as fontes mais ricas sobre a Ásia e a África do século 14, e traçam um panorama de interações globais muito anterior à modernidade europeia.

Nascido em 1304 em uma família berbere de estudiosos do direito islâmico, Ibn Battuta cresceu num ambiente em que a educação religiosa e a espiritualidade eram práticas valorizadas.

Como juiz muçulmano (qadi), pôde frequentemente contar com a proteção e a hospitalidade de líderes locais durante suas viagens pelo mundo islâmico, que, à época, se estendia do oeste da África ao sudeste asiático — por todo o Dar al-Islam (Terra do Islã, conceito que reúne as regiões onde vigora a sharia, a lei islâmica).

Ao longo de suas viagens, ele passou por locais que hoje integram mais de 40 países modernos — entre eles, Egito, Palestina, Síria, Arábia Saudita, Irã, Iraque, Turcomenistão, Uzbequistão, Índia, Maldivas, Sri Lanka, China e Mali.

Embora muitas vezes viajasse em comboios e caravanas, Ibn Battuta também seguia sozinho em alguns trechos. Um artigo do The Journal of African History sobre seu itinerário de Ualata (na atual Mauritânia) até Mali, na África Ocidental, relata que ele se hospedava em casas de estudiosos, albergues sufis ou junto a líderes locais. Suas viagens, além de percorrerem vastos territórios, também representaram imersões culturais profundas: ele participou de cerimônias religiosas, julgamentos, casamentos (inclusive casou-se várias vezes ao longo da jornada) e presenciou conflitos geopolíticos.

Mapa do itinerário seguido pelas viagens de Ibn Battuta de Ualata a Mali. 
Créditos: Claude Mellassoux.

Ibn Battuta escolheu viajar por territórios sob a sharia, mas isso não impediu que encontrasse uma enorme diversidade cultural e étnica no mundo muçulmano. Ele frequentemente tentava arbitrar disputas e aplicar o código islâmico em locais distantes, como as Ilhas Maldivas, onde insistiu na adoção de vestimentas muçulmanas pelas mulheres locais.

Em 1337, registrou sua aversão aos trajes usados pelas mulheres das ilhas, observando que “optavam por não cobrir a cabeça” e usavam apenas saias chamadas feyli na metade inferior do corpo. 

Em 1326, após passar um mês em Meca, ele se uniu a uma caravana de peregrinos rumo ao Iraque, numa viagem que durou 44 dias. Em seguida, iniciou uma jornada de seis meses até a Pérsia, seguindo o rio Tigre até Baçorá, uma das maiores cidades iraquianas, situada a 55 km do Golfo Pérsico. Depois, visitou outras cidades iranianas e retornou pelas montanhas até Bagdá, em 1327.

Em Bagdá, uniu-se a um ilcã para seguir até Tabriz, cidade situada na Rota da Seda — a antiga rede de rotas comerciais asiáticas com mais de 6 mil quilômetros de extensão, ativa desde o século 2 a.C.

Depois, retornou a Bagdá e partiu para regiões que hoje pertencem à Turquia moderna, como Cizre e Mardin. Seguiu novamente em caravana, desta vez para cruzar o Deserto da Arábia — que se estende do Iêmen até a Jordânia e o Iraque, e abriga em seu centro o Rub al-Khali, um dos maiores corpos contínuos de areia do mundo. A essa altura, iniciava sua segunda haje rumo à Meca, mesmo tendo adoecido no caminho.

Foi apenas em 1351, 26 anos após o início de sua primeira haje, que Ibn Battuta partiu de Fez, no Marrocos, em direção ao Império Merínida e ao Império do Mali, uma das etapas finais de sua jornada.

A Rihla, como é conhecido o relato de suas viagens, foi ditada ao escriba Ibn Juzayy e intitulada, em árabe, "Tuhfat al-Nuzzar fi Ghara’ib al-Amsar wa ‘Aja’ib al-Asfar", traduzido como "Um presente para aqueles que contemplam as maravilhas das cidades e as singularidades das viagens".

Ao todo, Ibn Battuta percorreu cerca de 120 mil quilômetros, quatro vezes mais do que Marco Polo. No entanto, suas viagens foram amplamente ignoradas pelo Ocidente durante séculos, enquanto Marco Polo consolidava-se como o símbolo do viajante medieval.

A partir do século 19, traduções da Rihla feitas por orientalistas europeus contribuíram para que sua obra ganhasse alguma visibilidade. Hoje, ela é considerada uma das maiores contribuições à compreensão das culturas do mundo islâmico medieval.

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