ELEIÇÕES DOS EUA

O que significa Harris ter apoio de republicanos de alto escalão?

Endosso de figuras como Dick Cheney, arquiteto das guerras eternas pós-11 de setembro, esfacela o rótulo de que a democrata prioriza 'gentileza' em detrimento da segurança nacional

Créditos: Reprodução Instagram Kamala Harris - Candidata democrata ganhou apoio de mais de 100 republicanos de peso
Escrito en GLOBAL el

A vice-presidenta dos EUA e candidata democrata à Casa Branca, Kamala Harris, angariou apoios de republicanos peso-pesados na disputa contra Donald Trump, o ex-presidente e adversário republicano.

LEIA TAMBÉM: Trump é 'inapto', dizem ex-funcionários republicanos de segurança nacional e política externa

O aceno de mais de 100 republicanos foi feito por meio de uma carta divulgada nesta quarta-feira (18). O texto elenca diversas justificativas para explicar essa vira-casaca.

O cerne das razões listadas está na hegemonia militar e econômica dos EUA e está sintetizado em uma frase: garantir que os Estados Unidos sempre tenham a força militar mais forte e letal do mundo.

Esse apoio de republicanos de alta estirpe a Harris esfacela o rótulo que ela ganhou da ala conservadora dos EUA de ser uma progressista que prioriza questões como “gentileza” em detrimento da segurança nacional.

Neoconservadora disfarçada

A UnHerd, plataforma de mídia britânica que se propõe a fornecer uma visão alternativa às narrativas convencionais, publicou nesta quarta o artigo intitulado "Kamala Harris is a neocon in disguise" ("Kamala Harris é uma neoconservadora disfarçada", em tradução livre). O subtítulo alerta: "Seu pedigree progressista a torna ainda mais perigosa".

O texto assinado pelo colunista e tradutor Thomas Fazi comenta que a democrata pode ter conquistado o público estadunidense ao se apresentar como uma alternativa moderna e "alegre" a Joe Biden, mas fora dos EUA a percepção pode ser diferente.

"Quando o assunto é política externa, todos os sinais sugerem que Harris seguirá o caminho traçado por seu antigo chefe: um baseado em combater agressivamente qualquer desafio à hegemonia dos EUA, por todos os meios necessários", pondera.

No que depender dos 111 republicanos signatários da carta de apoio a Harris, essa análise faz todo o sentido. Esse endosso de figuras importantes em Washington reforça a percepção de que a postura global dela revela outra face: o progresso em temas como direitos humanos e democracia também pode ser interpretado como uma estratégia de intervenção estrangeira.

Historicamente, os EUA justificam muitas de suas intervenções no exterior, especialmente após a Guerra Fria, com apelos ao humanitarismo e à moralidade. Esse tipo de abordagem, conhecido como intervencionismo liberal, sustenta que o uso de força militar, mudança de regime ou pressão econômica é essencial para manter uma "ordem internacional baseada em regras".

Basta acompanhar os avanços de Washington contra a China em várias frentes, inclusive a que se escora nessa ideia de intervencionismo liberal. No final das contas, esses princípios e valores dos EUA são usados como pretexto para avançar os interesses econômicos e geopolíticos do país.

LEIA TAMBÉM: 'Faça o que digo, não o que faço': EUA quer liberar bilhões para propaganda anti-China

Nova Guerra Fria

No texto, Fazi cita um termo cunhado, em 2022, pelo estudioso de relações internacionais Christopher Mott: “imperium woke”. A expressão é adotada para descrever uma nova forma de atuação governamental que visa não apenas derrubar rivais estrangeiros, mas também "modificar suas culturas de acordo com o modelo progressista ocidental". Segundo Mott, o objetivo principal dessa estratégia é "avançar os interesses de política externa do bloco Atlântico Liberal".

O bloco "Atlântico Liberal" refere-se a uma aliança informal de nações ocidentais, majoritariamente liderada pelos Estados Unidos e pelos países da Europa Ocidental, que compartilham ideais políticos e econômicos centrados em princípios liberais.

Esses princípios incluem a promoção de democracia representativa, com governos eleitos por sufrágio universal, com sistemas de controle e equilíbrio; economias de mercado, baseadas no livre comércio e na globalização, com forte ênfase no capitalismo liberal; Estado de Direito, com o respeito à justiça e à lei, com foco na proteção dos direitos humanos e liberdades individuais; e segurança coletiva através de alianças militares como a OTAN, para garantir a proteção mútua e a estabilidade internacional.

O termo também está relacionado com a defesa da ordem internacional baseada em regras, onde essas nações colaboram para promover seus valores no cenário global. Ele está em contraste com blocos autoritários ou não-liberais, como China e Rússia, que muitas vezes adotam posturas mais centralizadas e protecionistas em suas políticas internas e externas.

A postura de Harris em relação a questões progressistas, como mudanças climáticas e governança democrática em países em desenvolvimento, se encaixa nesse padrão.

Assim como Biden, a vice-presidenta frequentemente apresenta os desafios da ordem multipolar emergente como uma disputa global entre democracia e autoritarismo, posicionando os direitos humanos como pilar fundamental da política externa dos EUA. Se eleita a primeira presidenta mulher e multirracial dos Estados Unidos, ela estaria especialmente qualificada para fortalecer essa agenda.

Nos últimos quatro anos, esse alinhamento ficou evidente, desde o papel dos EUA na guerra da Ucrânia até o apoio quase incondicional a Israel e a abordagem cada vez mais agressiva em relação à China. Não é exagero dizer que o Partido Democrata de Biden herdou a agenda neoconservadora.

Tudo para conter uma superpotência

A Doutrina Wolfowitz de 1992 afirmava que os EUA deveriam garantir que nenhuma superpotência rival surgisse na Europa Ocidental, Ásia ou no território da antiga União Soviética.

Hoje, os EUA enfrentam um desafio ainda maior: conter potências emergentes, como China e Rússia. Esse panorama foi reforçado por um relatório confidencial da administração Biden, divulgado recentemente pelo The New York Times, que sugeria que os EUA devem se preparar para uma guerra nuclear simultânea contra China, Rússia e Coreia do Norte.

Harris desempenhou um papel importante na consolidação dessa postura de nova Guerra Fria. Em seus discursos como vice-presidenta, ela repetidamente ressaltou a importância de manter a superioridade militar dos EUA e reafirmou o papel central do país na OTAN e em outras alianças militares. Não por acaso esse posicionamento a credenciou a ganhar o endosso se uma centena de republicanos.

Ela tratou extensivamente da questão da Ucrânia, por exemplo, encontrando-se com Volodymyr Zelensky seis vezes desde o início da invasão russa. Em várias ocasiões, Harris reiterou o compromisso inabalável dos EUA com a Ucrânia. Ela também fez inúmeras viagens à Ásia, reunindo-se com aliados dos EUA na região para fortalecer as diversas alianças de segurança militar anti-China de Washington, além de promover importantes legislações que visam a China por violações de direitos humanos.

Apego à supremacia dos EUA

Desde que assumiu sua candidatura à presidência pelo Partido Democrata, Harris sinalizou que sua política externa continuará baseada nos princípios da Doutrina Wolfowitz e vai assegurar a supremacia dos EUA no cenário global.

Durante a recente Convenção Nacional Democrata em Chicago, ela destacou sua intenção de "garantir que os Estados Unidos mantenham a força militar mais forte e letal do mundo", frase destacada na carta de apoio dos republicanos.

Ela também reforçou seu compromisso de "nunca vacilar na defesa da segurança e dos ideais estadunidenses", posicionando-se claramente na batalha entre "democracia e tirania", deixando claro onde os EUA deveriam se posicionar.

Embora essas declarações possam parecer inofensivas, elas revelam uma visão de mundo profundamente maniqueísta, que rejeita a diversidade civilizacional como base de uma ordem internacional justa, fundamentada na igualdade soberana das nações.

Em vez disso, essa perspectiva divide o mundo em estados "legítimos" e "ilegítimos", categorizando-os como "bons" ou "maus". Esse tipo de narrativa reflete a continuidade de uma abordagem intervencionista que caracteriza a política externa dos EUA em momentos críticos de sua história recente.

Ecos de Reagan e apoio de Cheney

Não é de se surpreender que, apesar de suas credenciais progressistas, Harris esteja recebendo apoio de figuras influentes do campo neoconservador e de republicanos com visões de política externa mais agressivas.

Entre esses apoios está o de Dick Cheney, um dos mais destacados republicanos, conhecido por ser o arquiteto das "guerras eternas" pós-11 de setembro e um defensor controverso de práticas de tortura. Recentemente, Cheney declarou que votará em Harris, uma decisão que ela considerou "honrosa".

Liz Cheney, filha de Dick e ex-congressista republicana, também expressou seu apoio à candidata democrata. Durante a Convenção Nacional Democrata, Liz elogiou o discurso de Harris, afirmando que "é um discurso que Ronald Reagan poderia ter feito. É um discurso que George Bush poderia ter feito".

Liz destacou ainda que o discurso refletia uma compreensão profunda da "natureza excepcional" dos EUA e, para aqueles que valorizam o papel de liderança de Washington no cenário global, "um voto na vice-presidente Harris é a escolha certa nesta eleição".

A adesão dessas figuras ao lado de Harris ilustra um raro alinhamento entre setores progressistas e conservadores em questões-chave de política externa e de segurança. Esse movimento evidencia que as chamadas "guerras culturais" são, em grande parte, uma distração.

Quando o foco é em questões realmente relevantes, como a política externa, as elites de ambos os lados do espectro ideológico dos EUA tendem a se unir, independentemente de suas diferenças em questões culturais.

Enquanto o establishment dos EUA celebra a perspectiva de uma presidência de Harris, há um crescente receio internacional. Para muitos ao redor do mundo, essa postura de política externa, que evoca uma mentalidade de Guerra Fria, sugere um futuro de intervenção e conflito sob o pretexto de promover a democracia e a paz global.

Sob Harris, o "imperium woke" parece ganhar um novo líder, trazendo mais do mesmo: intervenção militar e guerras em nome de ideais democráticos.

Siga os perfis da Revista Fórum e da jornalista Iara Vidal no Bluesky