A China reagiu com firmeza à decisão do governo Trump de revogar a autorização da Universidade de Harvard para matricular estudantes internacionais. Pequim declarou-se contrária à politização da cooperação educacional, criticando de forma indireta a alegação, sem provas, de que a instituição teria “coordenado com o Partido Comunista Chinês” como uma das justificativas para a medida.
Durante coletiva de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da China nesta sexta-feira (23), em Pequim, a porta-voz Mao Ning destacou que a cooperação educacional entre China e EUA traz benefícios para ambos os lados.
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“A China é contra a politização da cooperação educacional. O que os EUA buscam fazer certamente prejudicará sua própria imagem e reputação no mundo. A China protegerá firmemente os direitos legítimos e legais dos estudantes e acadêmicos chineses no exterior”, afirmou.
Medida contra estudantes estrangeiros em Harvard
Na quinta-feira (22), a administração Trump revogou a capacidade da Universidade de Harvard de matricular estudantes internacionais. A secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, justificou a decisão alegando que a universidade havia criado um ambiente inseguro no campus, permitindo que “agitadores anti-americanos e pró-terroristas” atacassem estudantes judeus.
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Além disso, Noem acusou Harvard de “coordenar com o Partido Comunista Chinês”, sem apresentar evidências específicas. Como consequência, mais de seis mil estudantes internacionais foram obrigados a se transferir sob o risco de perderem seu status legal nos EUA.
Em 2024, Harvard matriculou 6.703 estudantes internacionais, dos quais 1.203 eram chineses, representando aproximadamente 18% do total. Esse número posiciona os estudantes chineses como o maior grupo estrangeiro na universidade, seguido pelos indianos, com 788 alunos.
No contexto mais amplo dos Estados Unidos, o número de estudantes chineses caiu para 277.398 na temporada acadêmica 2023-2024, uma redução de 4% em relação ao ano anterior. Apesar disso, a China continua sendo o segundo maior país de origem de estudantes internacionais nos EUA, atrás da Índia, que enviou 331.602 alunos no mesmo período.
Decisão judicial suspende proibição de alunos estrangeiros em Harvard
A tentativa da administração Trump de banir estudantes internacionais em Harvard durou menos de um dia. Nesta sexta-feira (23), um juiz federal em Boston — capital e maior cidade de Massachusetts, localizada a cerca de 5 km ao sul de Cambridge, onde fica a renomada universidade — concedeu uma ordem de restrição temporária que suspende a decisão do governo de revogar a autorização da instituição para matricular alunos estrangeiros.
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A medida foi tomada após Harvard processar o governo Trump, alegando que a revogação configurava uma retaliação inconstitucional motivada pela recusa da universidade em ceder a pressões políticas. A universidade argumenta que a ação viola a Primeira Emenda da Constituição dos EUA e prejudicaria diretamente 6.793 estudantes internacionais matriculados no ano acadêmico 2024-2025, o que representa 27,3% do corpo discente.
A Primeira Emenda protege direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, religião, imprensa, o direito de reunião pacífica e de peticionar o governo para reparação de danos, garantindo a autonomia das instituições acadêmicas contra interferências políticas.
A Secretaria de Segurança Interna condicionou a manutenção da certificação de Harvard no Programa de Visitantes e Estudantes de Intercâmbio (SEVP) ao fornecimento de informações detalhadas sobre esses alunos — uma exigência que a universidade afirma já ter cumprido e que considera uma violação de seus direitos constitucionais.
O bloqueio judicial acontece em meio a uma escalada de tensões entre Harvard e o governo Trump, que já congelou entre US$ 300 milhões e US$ 400 milhões em financiamentos federais para pesquisas, bolsas e programas educacionais, principalmente oriundos do National Institutes of Health (NIH) e do National Science Foundation (NSF). Além disso, houve ameaça de revogação do status de isenção fiscal da instituição, o que poderia acarretar uma carga tributária adicional superior a US$ 100 milhões anuais.
Especialistas e acadêmicos alertam que essas medidas ameaçam a autonomia acadêmica e a liberdade de expressão, gerando um ambiente de medo e autocensura, especialmente entre pesquisadores chineses, e comprometendo a cooperação científica internacional.
A acusação do governo Trump de que Harvard teria “coordenado com o Partido Comunista Chinês” é criticada por criminalizar relações acadêmicas legítimas. Essa disputa reflete um debate mais amplo sobre segurança nacional, direitos acadêmicos e liberdade de pesquisa nos EUA.
A próxima audiência está marcada para 29 de maio, quando o tribunal decidirá sobre a possibilidade de uma liminar permanente. Enquanto isso, Harvard segue firme na defesa dos direitos de seus estudantes internacionais e na preservação da independência acadêmica.
Acusação sem provas
A afirmação da secretária de Segurança Interna dos EUA de que Harvard teria “coordenado com o Partido Comunista Chinês” é vaga e polêmica, e até o momento a administração Trump não apresentou documentos ou provas públicas que comprovem essa acusação.
No contexto político de Washington, essa alegação pode englobar várias interpretações, como a permissão ou facilitação de atividades políticas ligadas ao PCCh dentro do campus, incluindo eventos, grupos estudantis ou intercâmbios alinhados com a agenda do governo chinês.
Também pode referir-se a colaborações acadêmicas ou administrativas com instituições chinesas ligadas ao Estado, vistas como possíveis riscos de espionagem ou influência política. Outra hipótese é a negligência ou conivência ao permitir que agentes do governo chinês exerçam influência indevida sobre estudantes chineses ou o ambiente universitário.
O fato é que não há base factual pública para a acusação. Não existem documentos desclassificados ou relatórios de inteligência divulgados que confirmem espionagem ou colaboração formal. A acusação parece refletir preocupações estratégicas e políticas dos EUA sobre a influência do governo chinês em instituições acadêmicas americanas, especialmente em meio às crescentes tensões bilaterais.
Sinofobia em ascensão nos EUA
Nos últimos anos, o governo dos Estados Unidos intensificou significativamente a vigilância e as restrições direcionadas a estudantes e pesquisadores chineses em universidades do país, alegando preocupações com a segurança nacional e a influência política do PCCh.
Essas medidas incluem investigações aprofundadas em programas acadêmicos com vínculos à China, restrições específicas a pesquisadores associados a instituições militares chinesas, além de questionamentos rigorosos sobre financiamento e propriedade intelectual.
No entanto, essas ações têm sido alvo de críticas por parte de especialistas, organizações acadêmicas e ativistas, que alertam para o risco de discriminação contra pesquisadores de origem chinesa e os impactos negativos na cooperação científica bilateral, essencial para avanços tecnológicos e acadêmicos globais.
Entre as iniciativas governamentais mais emblemáticas está a “China Initiative”, lançada pelo Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) entre 2018 e 2022, cujo objetivo era identificar e processar casos de espionagem econômica e roubo de propriedade intelectual com supostos vínculos à China. O programa atingiu especialmente pesquisadores universitários chineses ou sino-americanos, gerando controvérsias e acusações de excesso e perseguição injusta.
Exemplos de sinofobia nos EUA
Dois casos notórios exemplificam os efeitos dessa abordagem anti-China nos EUA. O de Sherry Chen (USGS), cientista hidrológica que trabalhou no Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), acusada em 2014 de espionagem sob suspeita de compartilhar informações sensíveis com a China.
Após uma investigação rigorosa, ela foi absolvida de todas as acusações, sendo o caso apontado como um exemplo clássico de erro judicial baseado em suspeitas infundadas e possíveis preconceitos raciais. O episódio levantou preocupações sobre a criminalização indevida de cientistas chineses e o impacto dessa desconfiança no ambiente acadêmico.
Há também o caso de Charles Lieber, da própria Universidade de Harvard. O renomado químico e ex-presidente do departamento de química e biologia química na instituição foi acusado em 2020 de mentir sobre seus vínculos com a Universidade de Ciência e Tecnologia de Wuhan, na China, incluindo um suposto financiamento recebido.
Embora Lieber tenha se declarado culpado em um processo relacionado a falsidades financeiras, o caso se tornou um símbolo das tensões geopolíticas e das suspeitas de espionagem acadêmica, provocando debates sobre a extensão e limites da cooperação científica internacional.
Além desses casos, muitas universidades estadunidenses mantêm programas de intercâmbio, centros de pesquisa e estudos dedicados à China — como os da Universidade de Harvard, Stanford e da Universidade da Califórnia. Essas instituições enfrentam um escrutínio crescente por parte das agências federais do país, que investigam possíveis vínculos com o Programa de Engenharia Reversa e Desenvolvimento Tecnológico Militar da China, considerado uma ameaça à segurança nacional.
Outro ponto de tensão envolve o financiamento direto do governo chinês em pesquisas realizadas nos EUA, especialmente por meio dos Institutos Confúcio, que promovem a cultura e o idioma chinês em universidades ao redor do mundo. Sob acusações de propaganda política e influência indevida, vários desses centros foram investigados e alguns chegaram a ser fechados.
A pandemia de Covid-19 e a intensificação da rivalidade estratégica entre EUA e China também levaram a novas restrições, principalmente no recrutamento de estudantes chineses e pesquisadores que atuam em áreas sensíveis, como inteligência artificial, telecomunicações e engenharia genética, consideradas cruciais para a competitividade tecnológica e segurança nacional.
Esse contexto tem alimentado um ambiente de crescente desconfiança, polarização política e debates sobre o equilíbrio entre segurança nacional e liberdade acadêmica, com impactos profundos na relação educacional e científica entre as duas maiores potências do mundo.
Novo Macartismo: um paralelo entre passado e presente
O macartismo foi um período sombrio na história dos Estados Unidos, entre 1947 e 1957, caracterizado por uma intensa perseguição a comunistas reais ou supostos e seus simpatizantes.
Movido pelo temor da expansão soviética durante a Guerra Fria, o governo dos EUA promoveu investigações arbitrárias, audiências públicas e listas negras que destruíram carreiras e reputações com base em acusações muitas vezes infundadas e sem provas concretas.
O clima era de medo, suspeita generalizada e restrição severa das liberdades civis, especialmente em instituições governamentais, artísticas e acadêmicas.
No cenário atual, a decisão do governo Trump de restringir a matrícula de estudantes internacionais na Universidade de Harvard, em especial estudantes chineses, que são a maior comunidade estrangeira, ocorre em um contexto de crescentes tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China.
A justificativa oficial para essa medida é a proteção da segurança nacional, sob a alegação de que Harvard teria “coordenado com o Partido Comunista Chinês” — acusação que, até o momento, carece de evidências públicas claras e documentadas.
Esse ambiente contemporâneo, marcado por aumento da vigilância sobre acadêmicos e estudantes chineses nos EUA e pela intensificação das medidas contra influências estrangeiras, é visto por muitos analistas como um novo capítulo do macartismo, com riscos reais de estigmatização, discriminação e prejuízos à liberdade acadêmica e à cooperação científica internacional.
Embora o contexto global e tecnológico seja muito diferente da Guerra Fria, o padrão de suspeita ampliada e de restrições baseadas em temores políticos faz ecoar os métodos e consequências do passado, levantando importantes debates sobre direitos civis, segurança e intercâmbio intelectual.