CHINA EM FOCO

Cidade chinesa aposta na “Diplomacia das Peônias” para fortalecer laços com o mundo - por Rafael Henrique Zerbetto

Jornalista destaca a importância das flores na cidade do sul da China

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Quando visitei pela primeira vez a cidade de Heze, na província chinesa de Shandong, no ano passado, um novo mundo se abriu diante de mim: a cidade, conhecida como Capital das Peônias da China, desenvolveu uma cadeia agroindustrial completa para produzir peônias, processá-las e criar uma quantidade enorme de produtos a partir delas, de alimentos e remédios a cosméticos e produtos de higiene pessoal.

Fiquei fascinado ao descobrir a “economia das peônias”, cuja existência pouca gente conhece, mas emprega 500 mil pessoas em Heze e gerou 13 bilhões de yuans no ano passado. Heze responde por 70% do volume global do comércio de peônias e exportou seis bilhões de mudas da planta para mais de 30 países ao longo das últimas décadas.

Esse deslumbramento de descobrir uma indústria complexa que aproveita as raízes, as folhas, as flores, os estames, enfim, cada parte da planta, para criar uma diversidade de produtos, captou minha atenção no ano passado e resultou em um artigo dedicado ao tema.

Este ano, ao ser convidado a visitar Heze pela segunda vez, fiquei preocupado, pois tinha a impressão de que o assunto já estava esgotado, o que eu poderia escrever de novo a respeito da cidade e suas peônias? Mas decidi aceitar o desafio e retornar a Heze em busca de informações para um novo artigo.

Incapaz de me surpreender com a economia das peônias, passei a atentar a outros aspectos da cidade e de seus dois grandes símbolos, as peônias, cultivadas em Heze há 1.500 anos, e o rio amarelo, berço da civilização chinesa, que corta a cidade.

Explorando Heze

Jovens em trajes tradicionais desfilam com roupas e acessórios inspirados em peônias

Minhas duas visitas a Heze foram bem rápidas, mas profundamente marcantes. Da primeira vez foquei no trabalho, precisava coletar fotos e dados para poder produzir algo, e atentar à indústria de derivados de peônias mostrou-se um caminho promissor, com informação era abundante.

Dessa vez cheguei à cidade sabendo o que iria encontrar, já sabia de antemão os temas econômicos, faltava conhecer o povo, a cultura e o dia-a-dia de Heze. Visitei pela segunda vez, na tarde do dia 9, o Jardim de Peônias Caozhou, famoso destino turístico da cidade nessa época do ano.

Minha experiência no ano passado foi como passear em um parque qualquer, com a diferença de que este possui uma grande variedade de peônias, e era para isso que eu estava lá, atentei às flores de diferentes tons, formatos e variedades e recebi explicações sobre seu cultivo e o projeto do parque.

Dessa vez atentei aos visitantes: famílias, jovens casais, crianças brincando... Um parque cheio de vida revelou-se diante de mim. Havia música e também muitas garotas usando trajes tradicionais chineses, de modelos profissionais posando para fotógrafos a jovens em busca de fotos bonitas para suas redes sociais.

O parque tem uma vida cultural muito rica durante a florada das peônias, com diversas atividades para enriquecer a experiência dos visitantes. Estava caminhando pelo parque quando fui surpreendido por uma parada de uma equipe de jovens em trajes tradicionais, os da frente trazendo bandeiras. Essa parada passou por mim e seguiu até um pátio, onde fizeram uma apresentação de dança para os presentes.

Também vi um robô em forma de cachorro com um arranjo de peônias em suas costas, que interagia com os visitantes do parque. Nos últimos anos, robôs passaram a se tornar cada vez mais comuns no dia a dia das pessoas na China, sendo usados em diversas ocasiões.

Após o jantar, aluguei uma motoneta elétrica e fui explorar a cidade. Em Pequim, seja nas ruas ou no comércio, muitos chineses que dominam uma língua estrangeira se dirigem a estrangeiros no idioma chinês, mas em Heze é o contrário: mesmo que você fale chinês fluentemente, muitos moradores locais tentarão conversar com você em inglês.

Cheguei a uma área com vida noturna: diversos restaurantes e lojas, e nas calçadas diversos ambulantes vendendo comida de rua, o que me deixou arrependido de ter jantado, pois havia muitas comidas diferentes para experimentar e o cheiro estava muito bom. O ambiente era semelhante ao de uma feira brasileira.

Segui por mais um quarteirão e cheguei a um dos portões da Universidade de Heze. Estudantes saíam em bandos e atravessavam a rua, provavelmente a caminho da feira para comer alguma coisa. Em frente à universidade havia um local identificado com o nome “bar”, mas constatei ser apenas uma mercearia, que vende bebidas, mas não tem comida nem lugar para sentar.

De lá fui para o rio Amarelo e segui o curso do rio para retornar ao hotel. No belo parque às margens deste rio histórico, pessoas praticavam esportes, jogavam cartas, passeavam, e havia até mesmo um grupo dançando na esquina próxima ao meu hotel. Em qualquer cidade chinesa é comum encontrar pessoas praticando dança em locais públicos no início da noite.

Fórum das Peônias: promovendo a comunicação internacional

Atividade cultural no Jardim de Peônias Caozhou

No dia seguinte fui para a cerimônia de abertura do Fórum de Comunicação Internacional das Peônias de Heze, que este ano foi combinado com o Seminário de Histórias Sobre o Rio Amarelo. Da primeira vez que ouvi falar a respeito desse fórum, fiquei surpreso: “o que peônias tem a ver com comunicação internacional?” Ao acompanhar os discursos na abertura, peguei o fio da meada.

Por exemplo, Du Zhanyuan, presidente do Grupo Internacional de Comunicação da China, apontou o fato de que as peônias chinesas hoje são encontradas em diversos países, assim como muitas flores estrangeiras são cultivadas na China. Essa “diplomacia das flores” é um intercâmbio que aproxima os povos do mundo e nos ajuda a entender uns aos outros.

Obras de arte chinesas muito antigas mostram peônias, o que atesta sua importância histórica e cultural para o povo chinês. Peônias foram introduzidas em dezenas de outros países através da antiga Rota da Seda, e mais tarde apareceram em pinturas de famosos artistas europeus, como Vincent Van Gogh e Claude Monet. Peônias também aparecem em obras literárias de diferentes países, o que demonstra sua profunda relação com o mundo.

Sendo um elemento da cultura chinesa mundialmente popular, a peônia contribui para as trocas culturais da China com o mundo. Por isso a estratégia de comunicação internacional de Heze sempre teve a flor nacional da China como inspiração. “A peônia é um símbolo de boa sorte, paz e amizade”, esclarece Zhang Lun, secretário municipal do Partido Comunista da China em Heze, ao falar dos esforços para popularizar as peônias no mundo.

Zhang esclareceu que Festivais de Peônias têm sido realizados nos Países Baixos e na Coreia do Sul, e os produtos feitos a partir de peônias em Heze já são exportados para mais de 30 países, e escritórios de comunicação sobre a cultura das peônias foram inaugurados em diversos países, inclusive o Brasil.

Durante o evento, Milena Radoslavova Vaseva, diretora da Companhia Municipal de Parques e Jardins Urbanos de Sofia, na Bulgária, apresentou algumas características das diferentes variedades de peônias usadas na criação do jardim de peônias da cidade, destacando a forma como elas foram aproveitadas para enfatizar, como parte do design do jardim, a promoção do respeito mútuo e das trocas culturais entre os povos.

Já Wang Weijia, diretor do Instituto de Pesquisas em Comunicação Internacional da Universidade de Pequim, destacou que os jardins de peônias são uma exportação de design através da qual a cultura de Heze pode ser compartilhada com o mundo. Wang aposta na criação de vídeos para as redes sociais e no trabalho do Centro de Comunicação Cultural das Peônias, em Heze, como estratégias para promover as peônias como um símbolo da identidade cultural da cidade.

Nascida em Shandong, Bo Xiuhua, presidenta da Associação de Medicina Tradicional Chinesa (MTC) da Sérvia, compartilhou casos de pessoas conhecidas no país europeu que foram curadas com MTC, o que criou uma visão favorável à medicina chinesa e a  tornou publicamente e oficialmente reconhecida, contribuindo também para a promoção da cultura chinesa e do entendimento a respeito do país asiático.

As propriedades medicinais das peônias são reconhecidas, estudadas e usadas há séculos dentro da MTC. Boa parte dos medicamentos feitos em Heze a partir de peônias, normalmente a partir das raízes ou das sementes, são de MTC, de modo que as exportações de Heze tendem a crescer com a popularização da medicina chinesa no exterior. É a diplomacia das peônias trazendo resultados práticos.

O rio Amarelo, herança cultural da China.

Peônias no Jardim Caozhou

A herança cultural de Heze vai além das peônias, englobando também a rica história da cidade, historicamente conhecida como Caozhou, e a cultura do rio Amarelo, o segundo rio mais longo da China, ao longo do qual teve início a civilização chinesa.

No Fórum das Peônias, o rio Amarelo e sua importância econômica, cultural e ambiental foram tão debatidos quanto as peônias. Yang Kaihzong, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, deu uma palestra sobre os efeitos do progresso recente na bacia do rio Amarelo na qualidade de vida das pessoas que vivem nas áreas próximas ao rio.

Yang enfatizou que foi criada uma sinergia entre ecologia e economia, com aplicação de modernas tecnologias em monitoramento e análise de dados ambientais, permitindo a elaboração de políticas efcazes para a preservação dos recursos hídricos e a proteção de estuários ao longo de todo o rio, graças ao apoio de plataformas inteligentes.

Já o embaixador da República das Maldivas na China, Fazeel Najeeb, ressaltou o contraste entre os campos verdes onde florescem as peônias em Heze e a água azul-turquesa do mar nas Maldivas, e também a semelhança entre a relação dos madivanos com o oceano e a da civilização chinesa com o rio Amarelo.

“Esses dois símbolos – rio e oceano – nos lembram que a identidade cultural tem raízes no nosso ambiente natural e flui além das fronteiras para nos ligar uns aos outros. Através das trocas culturais, nós não apenas celebramos nossas diferenças como também descobrimos aspirações em comum que unem a humanidade: a busca por paz, beleza e um futuro melhor para todos nós”, afirmou o embaixador.

Participando por vídeo, Shahbaz Khan, diretor e representante do escritório da Unesco para o Leste da Ásia, destacou que as peônias e o rio Amarelo são patrimônios culturais mundialmente conhecidos e que as trocas culturais beneficiam a todos. A peônia não representa apenas o passado, mas também o presente e o futuro da China.

Khan também encorajou os presentes a contar ao mundo histórias sobre o rio Amarelo para fortalecer os intercâmbios culturais e empoderar as comunidades locais para que preservem seu patrimônio e passem adiante suas tradições.

Uma mensagem de esperança ao mundo

Alguns remédios feitos de peônias

Enquanto o fórum das peônias acontecia em Heze, o mundo discutia o tarifaço do presidente dos EUA, Donald Trump. Com um olho em Heze e outro no noticiário internacional, ficou evidente para mim o contraste entre o modelo de comunicação intercultural equitativa e inclusiva que propúnhamos em Heze e aquele promovido pelo governo Trump, de natureza unilateral e antidemocrática.

Alheio a tudo isso, o rio Amarelo segue seu curso, passeando calmamente por entre as peônias de Heze para depois encontrar o mar e abraçar o mundo, levando a mensagem de paz e amizade que a flor nacional da China representa.

E foi justamente a imagem do rio Amarelo tranquilamente fazendo a curva em Heze que me veio à cabeça quando viralizou nas redes sociais um trecho da entrevista de Victor Gao, vice-presidente do Centro para China e Globalização, para a jornalista Cathy Newman: “A China está aqui há 5.000 anos. Na maior parte deste período não havia EUA e nós sobrevivemos”.

Minha visita a Heze foi rápida, mas voltei para Pequim renovado, com a certeza de que o diálogo inclusivo, o aprendizado conjunto e a cooperação ganha-ganha são a tendência histórica e seguirão seu curso tranquilamente, assim como o rio Amarelo. O unilateralismo de Trump é a tempestade, que causa destruição, mas passa. A gente fica.

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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