CHINA EM FOCO

Ainda estamos aqui: a China na mira da ditadura militar - Por Rafael Henrique Zerbetto

Jornalista brasileiro radicado na potência asiática relembra o 'Caso dos Novo Chineses', presos e torturados poucos dias após o golpe de Estado em 1964 e que como o filme brasileiro vencedor do Oscar nos instiga a reconhecer o valor do mergulho no passado para entender o presente

Filme brasileiro vencedor do Oscar nos instiga a reconhecer o valor do mergulho no passado para entender o presente como no 'Caso dos Novo Chineses', presos e torturados poucos dias após o golpe de Estado em 1964
Ainda estamos aqui: a China na mira da ditadura militar - Por Rafael Henrique Zerbetto.Filme brasileiro vencedor do Oscar nos instiga a reconhecer o valor do mergulho no passado para entender o presente como no 'Caso dos Novo Chineses', presos e torturados poucos dias após o golpe de Estado em 1964Créditos: Fotomontagem (Xinhua, acervo família Paiva e divulgação)
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Na noite do dia 2 deste mês, quando já era manhã do dia seguinte aqui na China, o Brasil festejou seu primeiro Oscar, na categoria de melhor filme estrangeiro para Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres.

Com roteiro baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e desaparecido pela ditadura militar no Brasil, o filme relata a luta da viúva Eunice Paiva para saber o que aconteceu com seu marido.

A ditadura militar brasileira foi produto da Guerra Fria: o Brasil, não-alinhado, buscava relações comerciais tanto com o bloco capitalista quanto com o bloco socialista. Para os EUA, aquilo era inaceitável. O golpe de 1964 forçou o Brasil a se alinhar ao bloco capitalista e atrasou em uma década o estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas com a China.

Foi somente no governo de Dilma Rousseff, iniciado em 2011, que foi estabelecida a Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos pelo regime instaurado em 64, inclusive o desaparecimento de Rubens Paiva que, segundo testemunhos de ex-militares, foi torturado até a morte e depois jogado ao mar.

Graças ao trabalho da comissão, diversos desaparecimentos foram explicados, ossadas foram desenterradas e identificadas, e muitas famílias puderam, finalmente, enterrar seus mortos.

O Caso dos Nove Chineses: um imbróglio ainda longe de ser resolvido

A Comissão da Verdade também investigou o Caso dos Nove Chineses, presos e torturados poucos dias após o golpe de Estado em 1964, e recomendou medidas reparatórias ao Estado brasileiro. No ano passado, a Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania fez recomendações semelhantes.

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Logo após o golpe, o regime militar precisava de uma narrativa para convencer a população de que haviam salvado o Brasil de uma hipotética revolução comunista. As negociações entre o governo Jango e a China, bem como a popularização das ideias de Mao Zedong entre comunistas brasileiros, tornava atrativa a ideia de acusar a China de intervencionismo.

Com isso, nove chineses residentes no Brasil foram presos sob acusação de ser agentes estrangeiros com a missão de dar apoio a um golpe de Estado no Brasil.

Dois deles, Ju Qingdong e Wang Weizheng, eram jornalistas da Agência de Notícias Xinhua. Outros quatro, Su Ziping, Hou Fazeng, Wang Zhi e Zhang Baosheng, estavam encarregados de organizar uma exposição comercial no Brasil, a convite do governo brasileiro. E os outros três, Wang Yaoting, Ma Yaozeng e Song Gueibao, estavam no Brasil para comprar o algodão que seria a primeira exportação brasileira para o país asiático.

Condenados injustamente pelo Supremo Tribunal Militar (STM), os chineses recorreram da decisão, mas foram expulsos do Brasil logo em seguida e o caso foi arquivado. Com isso, nunca houve a extinção da ação penal nem um novo julgamento que reconhecesse sua inocência. A recusa do judiciário em dar fim ao caso prolongou por décadas o sofrimento desses homens, que tiveram sua honra maculada pela imputação de crimes que não cometeram.

Como reparação, a presidenta Dilma Rousseff condecorou os nove chineses, em 2014, com a Ordem do Cruzeiro do Sul, mas as comendas ficaram esquecidas na embaixada do Brasil em Pequim por uma década e as poucas entregas realizadas ocorreram de maneira discreta, sem uma cerimônia oficial.

Os bens e montantes subtraídos dos chineses também nunca foram devolvidos, apesar de sucessivos pedidos e recomendações às autoridades brasileiras nesse sentido.

Brasileiros ligados à China também foram vítimas da ditadura

A mesma ação penal que determinou a prisão dos nove chineses também acusava alguns brasileiros, a maioria militantes do PCdoB com quem os chineses conviviam, de ser parte da trama. Todos foram julgados juntos, mas brasileiros e chineses tiveram advogados diferentes.

Tanto os nove chineses como os brasileiros Amarílio de Oliveira Vasconcelos, Raquel Cossoy e Adão Pereira Nunes foram condenados a dez anos de prisão por subversão. João Amazonas, Maurício Grabois, Lincoln Cordeiro Oest e o sargento Garcia Filho, foram absolvidos, por falta de provas, da acusação de espionagem.

Outro brasileiro preso em 1964 simplesmente por ter relações com a China foi o jornalista Jayme Martins, que morava na capital chinesa e trabalhava para a Rádio Pequim desde 1962, mas estava de férias no Brasil quando os militares tomaram o poder.

Jayme acabou inocentado das acusações, mas teve que sair do país clandestinamente, com sua esposa Angelina carregando uma filha no colo e outra na barriga. A família só retornaria ao Brasil em 1979, quando o governo concedeu anistia aos perseguidos políticos.

Esperantistas perseguidos por assinar revista chinesa

O movimento esperantista, que promove o Esperanto como uma segunda língua para todos os povos, visando facilitar o entendimento e os intercâmbios entre os povos do mundo, sempre foi visto com desconfiança por regimes autoritários devido à sua natureza internacionalista.

Em 2013, eu era presidente da BEJO - Organização da Juventude Esperantista Brasileira, quando chegou ao meu conhecimento a informação de que alguns documentos do DEOPS conservados no Arquivo Público de São Paulo tinham a ver com a BEJO e o movimento esperantista.

Foi assim que fiquei sabendo que a BEJO havia sido denunciada em 1970 por se corresponder com organizações de países socialistas. A data coincide com a época em que membros da BEJO foram intimados a prestar depoimentos à polícia. Nos cinco anos seguintes a instituição ficou inativa.

O outro documento é uma lista de assinantes da revista chinesa El Popola Cinio, com 64 nomes datilografados, alguns repetidos com diferenças ortográficas. Na lista aparece uma única pessoa jurídica, a Cooperativa Cultural dos Esperantistas do Rio de Janeiro, que assinava a revista apenas com o intuito de colecionar e facilitar o acesso a livros e revistas em Esperanto oriundos de diferentes países.

Desde que me mudei para a China, em 2015, trabalho justamente para a El Popola Cinio, que em 2002 foi convertida em um site de notícias. É verdade que naquela época o conteúdo da revista tinha maior viés político, mas o interesse dos esperantistas brasileiros era principalmente por causa das reportagens ricamente ilustradas, a cores, mostrando a cultura e as belas paisagens da China.

Não esquecer para que não se repita

Ao contrário do Brasil, que tem a tradição de querer esquecer os erros do passado, a milenar civilização chinesa aprendeu a valiosa lição de que esquecer tais erros implica em repeti-los no futuro. Por isso, o povo chinês dá grande valor à memória e à reparação das injustiças.

É ingênua e equivocada a visão, compartilhada por muitos brasileiros, de que o povo chinês se esqueceu do caso dos nove chineses. Esta chaga na história das relações Brasil-China foi lembrada diversas vezes por autoridades chinesas, as quais entendem que cabe a quem cometeu o erro ter a iniciativa de repará-lo. Já os brasileiros entendem essa passividade da China como um sinal de que é melhor deixar para lá.

O Oscar recebido por Ainda Estou Aqui, filme que resgata a memória nacional, nos instiga a reconhecer o valor desse mergulho no passado para o entendimento do presente e a reparação, mesmo que simbólica, aos que foram injustiçados.

Acredito que os intercâmbios com a China podem nos ensinar lições valiosas sobre como preservar a memória e transmiti-la às futuras gerações, bem como a ser proativos e rápidos na reparação de injustiças. Na visão chinesa, justiça que tarda é falha.

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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