Escrito na dinastia Ming (1368-1644), Jornada ao Oeste é um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da China. Os outros três são O Sonho do Pavilhão Vermelho, Romance dos Três Reinos e Margem da Água.
Jornada ao Oeste é um dos primeiros livros chineses que li após me mudar para a China, quando ainda era novo no país e não tinha familiaridade com sua cultura e história.
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Realidade e fantasia se encontram
O livro se baseia na história da famosa peregrinação do monge budista Xuanzang, da dinastia Tang (618-907), à Índia, para buscar sutras que ainda eram desconhecidos na China. Após seu retorno à capital Chang’an, atual Xi’an, na província de Shaanxi, o monge dedicou o resto de sua vida à tradução dos textos.
Segundo estudiosos, Jornada ao Oeste é baseada não apenas na peregrinação de Xuanzang, mas também em histórias populares das dinastias Song (960-1279) e Yuan (1271-1368). O autor combinou magistralmente elementos de realidade e ficção de diferentes épocas e os uniu, valendo-se de sua criatividade e imaginação, para criar esta obra-prima.
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No livro, Xuanzang viaja acompanhado de seus discípulos: Sun Wukong, também conhecido como Rei Macaco, Zhu Bajie, Sha Wujing e um príncipe dragão, este último assumindo a forma de um cavalo para transportar o monge.
Quando li este livro, em 2016, era o ano do macaco segundo o horóscopo chinês, fato que colocou em evidência Sun Wukong, o macaco mais famoso e amado da China, junto com seus companheiros de jornada.
Todas as personagens ao longo da jornada se envolvem em aventuras e tumultos, enfrentam monstros e demônios e passam por 81 provações. Essas pequenas histórias dentro da história principal tornam a leitura divertida e interessante.
Essas aventuras, cheias de seres fantásticos que povoam o imaginário infantil, certamente explicam o motivo de essa história ser tão popular entre as crianças chinesas. Considero a importância de Jornada ao Oeste para as crianças chinesas comparável à da obra de Monteiro Lobato para as crianças brasileiras.
Sendo uma obra que agrada crianças, jovens e adultos, Jornada ao Oeste foi adaptada para quadrinhos, animação, filmes, óperas e seriados de TV. No ano passado, o jogo Mito Negro: Wukong, inspirado no livro, fez grande sucesso na China e no exterior.
A obra também reflete a combinação de taoísmo, budismo e confucionismo na China antiga, e faz uso da fantasia para criticar o mundo real.
A mente brilhante por trás da história
Apesar de Jornada ao Oeste ser uma obra tão importante, durante muito tempo houve divergência entre os especialistas sobre quem teria sido seu autor. Com o tempo, porém, as pesquisas apontaram a autoria de Wu Cheng’en, um intelectual de Huai’an, na província de Jiangsu.
Wu Cheng’en era filho de Wu Rui (1461-1532), um intelectual muito interessado em histórias antigas e que gostava de visitar templos, lugares pitorescos e sítios históricos em Huai’an.
Acredita-se que Wu Cheng’en cresceu ouvindo seu pai contar-lhe histórias de fantasmas e seres imortais, e é provável que ambos também tivessem o hábito de passear juntos pelos lugares que mais tarde inspirariam paisagens e trechos de Jornada ao Oeste.
Por exemplo, algumas paisagens e construções descritas no livro parecem ser baseadas em lugares reais de Huai’an, entre eles o Monte das Flores e Frutas, local onde Sun Wukong impressiona os outros macacos com suas habilidades e é aclamado rei.
O pagode Wentong, em Huai’an, está relacionado ao título de “Buda Chandalangong”, dado a Xuanzang após o término da jornada.
Já a descrição do local de nascimento de Sun Wukong remete ao Lago da Lua, também em Huai’an, onde antes havia um templo taoísta com um afresco retratando um macaco e um cavalo. Acredita-se que essa pintura tenha inspirado o autor a dar a Wukong o título de “protetor dos cavalos”.
Mas a principal evidência que permitiu aos pesquisadores atribuir a Wu Cheng’en a autoria do romance é o uso do dialeto de Huai’an no livro. Todos os demais possíveis autores desconheciam tal dialeto e viveram em outros locais da China.
A casa onde Wu Cheng’en nasceu e morou hoje funciona como um museu e se divide em cinco partes: a antiga casa do autor, uma exposição sobre sua vida, um museu de artes sobre a família do Rei Macaco, um salão memorial de Xuanzang e o estúdio de Liu Xiao Ling Tong.
Durante minha visita à casa, encontrei muitas coisas interessantes, inclusive o local onde o escritor nasceu, seu quarto de dormir e seu escritório, onde o famoso livro teria sido escrito.
Escrever sobre lugares que nunca visitou
Em 2020, visitei Xi’an, cidade que foi capital de Tang e onde Xuanzang morou antes e depois de sua penosa jornada em busca de sutras. O templo onde ele viveu ainda existe e é uma famosa atração turística da cidade, com um museu dedicado à sua memória.
No mesmo ano, fiz minha primeira visita à Região Autônoma Uigur de Xinjiang, no oeste da China, quando visitei dois lugares descritos no livro: a Montanha Flamejante e as ruínas do templo Subash.
A Montanha Flamejante é considerada o lugar mais quente da China, onde a temperatura pode atingir 47,8 graus Celsius no verão. Para facilitar as medições, talvez até registrar um novo recorde, foi construído um enorme termômetro diante da montanha, cercado por desenhos e estátuas de Wukong e outros personagens de Jornada ao Oeste.
A Montanha Flamejante é um lugar onde a vegetação não cresce, devido tanto à falta de água quanto à composição mineral do solo. A montanha parece estar envolta em fumaça, por isso ganhou esse nome.
De acordo com a história descrita no livro, antes da chegada de Xuanzang e seus discípulos, a montanha ardia em fogo, o que impediu a passagem do monge. Para continuar a viagem, Sun Wukong precisou pedir emprestado o leque mágico de uma princesa para apagar o fogo.
Já o templo Subash foi construído às margens do rio Kuqa, e seu nome significa “origem da água” no idioma uigur. Nos tempos áureos da antiga Rota da Seda, lá viviam muitos monges, que se dedicavam a auxiliar os viajantes e pregar o budismo. A movimentação intensa de caravanas comerciais contribuía para dar ao templo uma rica vida cultural.
E foi naquela época que Xuanzang chegou ao templo, onde teria permanecido durante um mês, fazendo orações e trocando ensinamentos com outros monges, antes de continuar a viagem.
Séculos depois, o declínio da Rota da Seda forçou os monges a irem embora, deixando para trás o majestoso templo, que a natureza foi pouco a pouco tomando para si, transformando-o nas ruínas que agora são patrimônio histórico.
No livro, o mesmo lugar é cheio de vida, tudo narrado em pormenores, permitindo ao leitor visualizar a vida social naquele templo em seus tempos de glória, o que reflete o estudo detalhado feito pelo autor para recriar o templo, valendo-se de descrições em livros e documentos, e dar-lhe vida a partir de cenas criadas com sua imaginação.
Wu Cheng’en jamais esteve na maioria dos lugares que descreve no livro, mas eu estive em alguns. E isso me permitiu constatar a grandeza do trabalho que ele desenvolveu.
A visita à casa deste grande autor fez crescer minha admiração por ele, um verdadeiro gigante em termos de talento e capacidade criativa.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum