CHINA EM FOCO

Dos Flintstones aos Jetsons: EUA descobrem a China - Por Rafael Henrique Zerbetto

Brasileiro que mora na potência asiática conta sobre resultados do banimento do TikTok no mercado estadunidense, que impulsiona migração para redes sociais chinesas e desmistifica mitos sobre a potência asiática

Banimento do TikTok nos EUA impulsiona migração para redes sociais chinesas e desmistifica mitos sobre a China.Dos Flintstones aos Jetsons: EUA descobrem a China.Créditos: Fotomontagem (Wikipedia)
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Nesta semana que antecedeu este domingo, 19 de janeiro, data definida pela justiça dos EUA para o início do banimento do TikTok no país, usuários do aplicativo, autodenominados “refugiados do TikTok”, deram início a uma grande “migração” para outras redes sociais, com a maioria deles optando pelo aplicativo chinês XiaoHongShu, conhecido fora da China como RedNote.

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No rastro dos “refugiados” estadunidenses, alguns internautas da América Latina, África e Europa, tomados pela curiosidade, também se interessaram pela rede social chinesa, que repentinamente se tornou o centro das atenções.

Reprodução AppleStore - RedNote lidera lista de app mais baixados nos EUA.

A internet chinesa é culturalmente diferente da ocidental

A adaptação aos sites e aplicativos locais foi um dos desafios mais excitantes que tive após me mudar para a China: da arquitetura dos serviços online às exigências e necessidades dos usuários, a internet chinesa é um mundo à parte.

Isso ocorre porque a internet na China se desenvolveu de forma independente e focando nas necessidades específicas do país, ao contrário das plataformas ocidentais, excessivamente padronizadas e apenas traduzidas para diferentes línguas.

Só recentemente as empresas chinesas de software e internet começaram a explorar mercados estrangeiros, sendo comum optarem por desenvolver duas versões distintas de seus programas, uma para a China e outra para o exterior, por ser uma forma simples de lidar com as diferentes necessidades de usuários domésticos e estrangeiros.

O melhor exemplo disso são os mais famosos aplicativos da ByteDance, TikTok, desenvolvido especificamente para usuários estrangeiros, e Douyin, sua versão para o público chinês. Ambos são geridos e aperfeiçoados de forma independente, adaptando-se às leis e regras de cada lugar e às necessidades dos usuários de diferentes países.

Criado por chineses, mas não para chineses, o TikTok se tornou líder mundial no segmento de vídeos curtos, levando as autoridades dos EUA a aprovar seu banimento do país alegando riscos à segurança nacional.

Ironicamente, o resultado foi a migração voluntária de usuários dos EUA para um aplicativo verdadeiramente chinês, operado a partir do país asiático e através do qual podem interagir diretamente com chineses.

Dessa forma, a internet chinesa, que sempre foi apresentada ao mundo como uma misteriosa caixa preta, agora mostra-se aberta a qualquer um que queira explorá-la, promovendo uma interação entre chineses e estrangeiros que contraria a visão imperialista de que a China seria um pária internacional.

Uma nova diplomacia pessoa a pessoa

Durante a Guerra Fria, vários países capitalistas, inclusive os EUA, por muito tempo se recusaram a formalizar relações diplomáticas com o país asiático. Para contornar o problema, o governo chinês adotou a estratégia da diplomacia pessoa a pessoa, que consistia em fomentar relações informais de amizade e trocas culturais com cidadãos desses países.

É curioso que, justamente num momento em que os EUA atuam para conter a China e com isso prejudicam os intercâmbios oficiais, os “refugiados do TikTok” acabaram recriando essa relação informal baseada na amizade e na troca cultural desinteressada.

Ed Sander, pesquisador de tecnologias digitais chinesas, aproveitou a ocasião para estudar este fenômeno. Após passar horas analisando vídeos de usuários estadunidenses no RedNote, ele identificou que os “refugiados” se sentem bem vindos e relatam excelentes experiências de interação com chineses, descritos como amigáveis e simpáticos.

Os internautas que viam o TikTok como sua casa agora se sentem hóspedes em uma rede social dominada há muitos anos por chineses. Por conta disso, alguns deles se sentem responsáveis por orientar seus compatriotas a ser gentis e amigáveis com os anfitriões, o que não impediu alguns casos isolados de conduta racista.

Ao mesmo tempo em que buscam se adaptar à etiqueta dos internautas chineses, os “refugiados” se surpreendem e se divertem com os memes, as gírias e os emojis chineses.

O deslumbramento resultante dessas descobertas produziu outro fenômeno: somente no Duolingo, a procura por cursos de chinês aumentou 216% em relação ao mesmo período do ano passado.

Um novo iluminismo?

Essa descoberta da internet chinesa pelos estrangeiros também tem sido vista por alguns como um novo iluminismo, uma vez que a experiência contraria os mitos sobre a potência asiática e promove uma visão de mundo emancipadora.

Alguns memes comparam a chegada dos “refugiados” à rede social chinesa com a chegada dos europeus na América: subitamente eles descobriram que o mundo é bem mais vasto.

A China suja e atrasada que os estrangeiros viam através do filtro amarelado das câmeras de TV de repente adquiriu cores vivas e vibrantes, mostrando-se moderna e próspera. Quem imaginava os chineses como os Flintstones, agora os vê como os Jetsons.

Muitos internautas têm trocado fotos e informações sobre a rotina, a comida e o custo de vida em seus países. Chineses gostam da mesa farta, com grande diversidade de pratos, o que encanta os internautas estrangeiros.

Reprodução - Internautas do EUA reagem à comida chinesa "de verdade".
Reprodução - Internauta estrangeira mostra sua primeira tentativa de preparar ovos cozidos no vapor, um tradicional prato chinês.

Causa-lhes estranheza a popularidade dos frutos do mar nas mesas chinesas, pois são alimentos caros nos EUA. Trocas de receitas e dicas culinárias, bem como recomendações sobre hábitos saudáveis, também têm sido constantes no aplicativo.

Muitos “refugiados” perguntam sobre o custo e a qualidade do transporte público e dos serviços de educação e saúde, sendo que muitos deles possuem dívidas impagáveis de financiamento estudantil ou gastos com hospital.

Os serviços de saúde na China não são gratuitos, mas os preços são bem mais em conta que nos EUA. Isso mostra, inclusive, o potencial do país para o turismo médico, um setor promissor cujo desenvolvimento esbarra na falta de profissionais médicos proficientes em línguas estrangeiras.

Quanto ao transporte público na China, posso dizer por experiência própria que a qualidade é excelente e o custo costuma ser proporcional à distância viajada. À exceção de algumas linhas especiais e de longa distância, o preço de uma viagem de ônibus ou metrô custa bem menos que um dólar.

A interação direta com os chineses mostrou aos internautas dos EUA o quanto estavam enganados a respeito do país. Eles descobriram, por exemplo, que na China o trabalho infantil é ilegal e o famoso “crédito social” nunca existiu.

Ao mesmo tempo, meias verdades, como restrições ao tempo gasto em jogos eletrônicos, que realmente existem, mas se aplicam somente às crianças, estão sendo melhor explicadas e contextualizadas, desfazendo mal entendidos.

O entusiasmo pelo RedNote vai continuar?

Reprodução - Internautas dos EUA desfazem os mitos sobre a China.

Em um mundo marcado por extremismos e confrontação geopolítica, o diálogo intercultural no RedNote segue o caminho inverso, lembrando-nos que somos todos igualmente humanos e queremos viver em paz e harmonia.

Apesar disso, o entusiasmo inicial pelo aplicativo tende a diminuir: muitos “refugiados” em breve perceberão que aprender chinês é bem mais difícil que imaginavam, enquanto os chineses acabarão se cansando de explicar toda vez a mesma coisa aos estrangeiros recém chegados. E há também barreiras linguísticas e culturais que desestimulam quem está no RedNote apenas por curiosidade.

A permanência dos usuários estrangeiros dependerá, essencialmente, da capacidade do aplicativo atender às expectativas deste novo público, uma tarefa especialmente difícil, considerando que o RedNote é uma rede social de estilo de vida focada no dia a dia de quem mora na China.

Alguns especialistas apontam o Lemon8, da ByteDance, como a melhor alternativa para esses “refugiados”, já que o aplicativo foi desenvolvido justamente para preencher a lacuna aberta pelo banimento do TikTok. Lemon8 foi o segundo aplicativo mais baixado nos EUA na última semana.

É impossível prever se XiaoHongShu e RedNote se tornarão aplicativos diferentes no futuro, mas além de ser difícil administrar as necessidades de usuários chineses e estrangeiros, há também questões jurídicas e financeiras a ser consideradas, como, por exemplo, viabilizar a monetização de vídeos de influenciadores baseados no exterior.

Há também questões regulatórias e culturais. Tanto a legislação quanto os hábitos sociais dos chineses desencorajam debates online sobre temas polêmicos, como religião ou racismo, para evitar ofensas e polarização, conforme a tradição chinesa de deixar de lado as diferenças e buscar pontos em comum, mas fora da China esses temas são parte do debate público, o que pode frustrar muitos internautas.

Já nos EUA, o bloqueio do TikTok criou um precedente jurídico que promete tornar mais rápido e simples o banimento de outros aplicativos, como o RedNote e o Lemon8, pois agora basta convencer as autoridades de que eles cumprem a mesma função do TikTok.

Mas nessa altura do campeonato nenhum bloqueio pode anular o efeito desse tiro pela culatra: pipocam declarações de “refugiados” que alegam já ter aprendido o suficiente sobre a China para entender que ela não é o monstro pintado pela propaganda ocidental.

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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