CHINA EM FOCO

Chineses celebram o ano novo duas vezes? - Por Rafael Henrique Zerbetto

Brasileiro que mora na potência asiática conta sobre as celebrações por lá para chegada de um novo ano em dois calendários, o ocidental e o chinês

Chineses celebram o ano novo duas vezes.Dança do leão em Suzhou.Créditos: Rafael Henrique Zerbetto (acervo pessoal)
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Na noite de 31 de dezembro, brasileiros se reúnem para dar adeus ao ano velho e receber o novo ano que se inicia. Isso se deve ao fato do Brasil adotar o calendário gregoriano, proclamado pelo Papa Gregório XIII em 1582 e logo adotado pelo mundo cristão. Hoje em dia, mesmo países não-cristãos costumam adotá-lo como calendário civil.

Festival de Lanternas no parque Shiyuan de Pequim em 2023.

Já a origem do calendário tradicional chinês remete à Dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.), e sempre foi a referência dos chineses para celebrar o ano novo. Somente em 1949, após a fundação da República Popular da China, o país adotou o calendário gregoriano e reconheceu o dia primeiro de janeiro como feriado, conforme a tradição internacional.

Mas e a celebração do ano novo, como fica? Os chineses comemoram duas vezes, cada uma de acordo com um calendário diferente? Ou apenas uma vez? Oficialmente, as duas datas são feriado, mas o ano novo chinês, sendo uma importante tradição cultural do país, é muito mais festejado por aqui.

E como é que os chineses celebram o ano novo gregoriano? Há quem veja a data como uma festa ocidental e busque imitar tradições estrangeiras, como fazer contagem regressiva, beber espumante e se divertir. Algumas famílias fazem o caminho inverso, transplantando para o ano novo gregoriano as tradições do ano novo chinês. E há, naturalmente, quem considere que não há nada a se comemorar em 1º de janeiro.

Até o final da dinastia Qing (1616-1911), o ano novo chinês se chamava Yuandan, dia de ano novo, mas quando a China se tornou uma república, ele passou a se chamar Chunjie, festa da primavera. Após a fundação da república popular, o velho nome Yuandan passou a ser usado para o ano novo gregoriano, com o termo Chunjie sendo mantido para o ano novo chinês.

Seguir o calendário gregoriano como calendário civil mantendo as festas tradicionais de acordo com o antigo calendário chinês e celebrar o ano novo de acordo com os dois calendários foi a forma que a China encontrou de se modernizar, adotando calendário e datas festivas internacionais sem se desfazer de suas tradições.

Nos meus dois primeiros anos na China, passei a virada do ano em Tianjin, cidade portuária vizinha à capital do país. Há um século, Tianjin abrigava concessões estrangeiras, responsáveis pela arquitetura típica europeia do centro da cidade. Os bons restaurantes do bairro italiano me ajudavam a matar a saudade do ambiente e da comida que consumimos no ano novo brasileiro. Para tudo ficar ainda melhor, à meia-noite havia uma queima de fogos que não deixa a desejar em relação às que temos no Brasil.

Mas minha experiência de ano novo mais marcante foi na virada de 2019 para 2020. Aquela foi a única vez que virei o ano trabalhando, mas o trabalho não podia ser mais gratificante: viajei para Suzhou no dia 31 de dezembro para cobrir a celebração do ano novo em uma das poucas cidades chinesas que conseguiram criar uma tradição original de celebração do ano novo.

Ao chegar, a primeira surpresa: haviam preparado um jantar especial para nossa delegação de jornalistas estrangeiros. Nosso anfitrião, um servidor do governo local, celebra os dois anos-novos da mesma forma, de acordo com a tradição chinesa de reunião familiar para esperar o novo ano.

Naquela noite, por estar trabalhando, ele não passaria a virada com a família, o que para ele seria impensável no ano novo chinês, mas aceitável naquela data. Ele cuidou de todos os detalhes para dar aos jornalistas estrangeiros um banquete especial, segundo as tradições de ano novo de sua família.

Entre os diversos pratos servidos, destaco o peixe, que na cultura chinesa é associado à abundância; o macarrão, símbolo de longevidade; e o tangyuan (bolinho de arroz doce), associado ao festival das lanternas, que encerra as celebrações do ano novo chinês, mas que no sul da China é consumido também no início das festas e simboliza boa sorte.

Como os banquetes de ano novo chinês ocorrem na intimidade dos lares, quem não tem uma família chinesa fica de fora, então aquele banquete foi o que tive de mais próximo de uma celebração de ano novo tipicamente chinesa, o que para mim foi emocionante.

E veio o momento mais especial da noite, a visita ao templo Hanshan, com uma tradição de ano novo que dura mais de duas décadas e meia: as pessoas se reúnem ao redor da torre do sino, onde um monge toca o sino cem vezes, uma vez a cada dez segundos, com a centésima batida ocorrendo exatamente à meia-noite.

Monge bate o sino dentro da torre em Suzhou.

Nas proximidades do templo, uma multidão estava reunida na praça, onde haviam apresentações de danças e músicas típicas chinesas, incluindo a famosa dança do leão. Todo o entorno do templo estava enfeitado com lanternas chinesas e enfeites vermelhos, e a festa era parecida com as feiras de templos (miaohui), uma quermesse popular durante o ano novo chinês.

Após adentrar o templo, fui seguindo a multidão até chegar a um pátio cheio de fumaça e cheiro de incenso, onde muitos budistas faziam suas orações para 2020. De repente ouvi a primeira batida do sino: havia começado a vigília de ano novo. Todo mundo ficou em silêncio observando o monge no alto da torre, concentrado em sua tarefa de contar o tempo mentalmente e bater o sino no momento exato. Nos últimos segundos de 2019, os visitantes começaram a fazer contagem regressiva em voz alta. Quando deu meia-noite, começaram as saudações.

Ano Novo da Covid-19

Fiquei em Suzhou até o dia 4 de janeiro, e foi lá que tomei conhecimento, pela imprensa chinesa, dos primeiros casos de uma misteriosa pneumonia em Wuhan, que mais tarde ficaria conhecida como Covid-19.

Essa minha experiência desmente os boatos de que o governo chinês teria censurado notícias sobre a doença até o final de janeiro. Na verdade foi o contrário: a imprensa chinesa foi a primeira publicar notícias sobre o tema, que eu acompanhei diariamente.

Os dois reveillons seguintes eu passei em casa, o último deles me recuperando da Covid. Em 2023 a vida foi voltando ao normal e festas de ano novo, tanto privadas como em bares, voltaram a ser comuns.

O parque Shougang, construído para as olimpíadas e paralimpíadas de inverno de 2022, desde 2023 sedia a maior festa pública de celebração do ano novo gregoriano, atraindo multidões. No ano novo chinês as pessoas ficam em casa, mas na virada de dezembro para janeiro é muito comum, especialmente entre os jovens, sair de casa para se divertir em meio à multidão.

Queimas de fogos ainda acontecem em algumas cidades chinesas, mas a prática tem sido desincentivada, e até mesmo proibida em alguns lugares, para prevenir incêndios e acidentes e reduzir danos ambientais. Por isso, shows de luzes e apresentações com drones têm sido cada vez mais comuns em espaços públicos das grandes cidades. Festivais de lanternas chinesas, como o do jardim Yuyuan, em Xangai, também têm se tornado populares e atraem cada vez mais turistas.

Bares, restaurantes e casas noturnas também costumam ter programação especial para a virada. Para dar boas vindas a 2025, boa parte da comunidade brasileira em Pequim se reuniu na churrascaria Latina, onde houve uma festa com direito a DJ brasileiro e apresentação do grupo de samba Quebra Cavaco.

Termino o primeiro artigo deste ano desejando a todos os meus leitores um feliz 2025!

* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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