A China, mais uma vez, refuta as acusações do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, de que os investimentos chineses na América Latina e no Caribe seriam “práticas predatórias”, acompanhadas de “empréstimos enormes” que os países locais jamais conseguiriam pagar no que é chamado de "armadilha da dívida".
Durante a coletiva regular de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da China, realizada nesta quinta-feira (27), o porta-voz Guo Jiakun rebateu duramente as alegações de Rubio.
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“Os Estados Unidos espalham desinformação sobre as supostas 'práticas predatórias' da China para semear discórdia entre a China e outros países. Essa tentativa maliciosa jamais terá sucesso”, afirmou.
Guo destacou que a cooperação em investimentos entre a China e o restante do mundo se baseia no respeito mútuo, igualdade, benefício mútuo, abertura, compreensão e resultados em que todos ganham.
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Segundo ele, a China respeita a vontade dos países parceiros, e essa cooperação tem impulsionado significativamente o desenvolvimento econômico, melhorado as condições de vida da população e trazido benefícios concretos para os povos locais.
“Não há nada que comprove a narrativa da suposta ‘armadilha da dívida’. O mundo pode ver claramente quem, de fato, age de forma coercitiva e predatória”, provocou.
O porta-voz disse ainda que o governo chinês insta os Estados Unidos a refletirem sobre o que têm feito aos países em desenvolvimento da América Latina e do Caribe com atitudes de intimidação e comportamento predatório — e que parem de difamar a China.
Rubio na América Latina e Caribe
O secretário de Estado de Donald Trump, Marco Rubio, acusou a China de “práticas predatórias” durante sua primeira missão diplomática internacional no cargo. Em visita oficial à América Central e Caribe, em fevereiro de 2025, o foco principal de Rubio foi alertar os países da região sobre os riscos da crescente presença econômica e estratégica da China na região.
A viagem ocorreu na primeira semana de fevereiro, quando Rubio visitou Panamá, Guatemala, El Salvador, Costa Rica e República Dominicana, expressando preocupação com os investimentos e o controle chinês sobre infraestruturas críticas, como portos e concessões no Canal do Panamá.
Na ocasião, Rubio classificou os investimentos da China como “práticas predatórias”, acompanhadas de “empréstimos enormes que os países locais jamais conseguiriam pagar”, sugerindo que tais ações colocariam as nações latino-americanas e caribenhas em risco de perder sua soberania e se tornarem dependentes de Pequim.
Durante encontros com lideranças latinas e caribenhas, Rubio reforçou a narrativa tradicional dos EUA de que a China estaria promovendo uma “armadilha da dívida” por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), a Nova Rota da Seda.
Ele também incentivou os governos da região a buscarem alternativas aos investimentos chineses, sugerindo que os EUA estariam prontos para apoiar financeiramente projetos estratégicos “com transparência e responsabilidade”.
China refuta “armadilha da dívida”
A China tem refutado de forma reiterada a chamada "armadilha da dívida" associada aos seus investimentos, especialmente no contexto da Nova Rota da Seda. Pequim classifica essa tese como infundada e motivada por interesses geopolíticos.
O governo chinês argumenta que credores comerciais dominados pelo Ocidente e instituições financeiras multilaterais são responsáveis por grande parte da dívida dos países em desenvolvimento.
Em abril de 2024, o porta-voz da Agência Chinesa de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (CIDCA), Tian Lin, destacou que a China segue os princípios de consultas em pé de igualdade e cooperação mutuamente benéfica para ajudar esses países a aliviar suas dívidas e promover crescimento sustentável.
“Nenhum país enfrentou dificuldades financeiras devido à cooperação com a China. Essas parcerias têm gerado benefícios econômicos de longo prazo para os países envolvidos”, afirmou.
Além disso, a China sustenta que suas políticas de empréstimo são transparentes e voltadas ao desenvolvimento dos países receptores, com condições favoráveis e soluções para dívidas estruturadas por meio de negociações bilaterais.
A potência asiática ressalta que sua assistência externa não tem vínculos políticos e não impõe condicionalidades, ao contrário do que ocorre com credores ocidentais.
Em 23 de agosto de 2023, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, anunciou o perdão de 23 empréstimos sem juros com vencimento até o fim de 2021, feitos a 17 países africanos.
China x FMI
Apesar de ser frequentemente acusada por autoridades como Rubio e por veículos de imprensa ocidentais de promover uma “armadilha da dívida”, a China exerce papel bem mais modesto no endividamento da América Latina e Caribe.
Segundo o Global Development Policy Center, da Universidade de Boston, os empréstimos chineses se diferenciam dos ocidentais tanto em volume quanto em abordagem.
O Boletim Econômico China-América Latina e Caribe 2023 mostra que a China assinou apenas três contratos de empréstimo com países da região em 2022, totalizando US$ 813 milhões, o menor nível desde 2005.
Em contraste, os países latino-americanos e caribenhos continuaram recorrendo ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Apenas em 2022, o fundo forneceu US$ 37 bilhões à região, incluindo grandes acordos como:
- Argentina: cerca de US$ 44 bilhões em reestruturação de dívida (parte de um acordo iniciado em 2018);
- Equador: mais de US$ 6 bilhões em acordos contínuos com o fundo;
- Costa Rica e Honduras: pacotes menores, mas com fortes exigências de ajuste fiscal, privatizações e reformas estruturais.
O contraste é claro: a participação da China equivale, em média, a apenas 0,7% da dívida externa total da região. Mesmo países frequentemente citados como dependentes de Pequim, como Equador, Venezuela ou Suriname, têm maior exposição ao FMI e a credores privados ocidentais.
Além disso, o modelo chinês de financiamento se diferencia por seu foco em infraestrutura, energia e desenvolvimento produtivo, com taxas de juros reduzidas, prazos longos e sem exigência de austeridade.
Um exemplo é o empréstimo de US$ 121 milhões a Barbados, com juros de 2% ao ano e prazo de 20 anos. No caso do Equador, houve renegociação de contratos com bancos chineses, resultando em alívio de US$ 1,4 bilhão até 2025.
“Armadilha da dívida” x herança neoliberal
Em agosto de 2023, o coletivo Dongsheng Explica publicou uma análise sobre a primeira década da Nova Rota da Seda e desconstruiu a narrativa da “armadilha da dívida”.
Embora amplamente divulgada por governos e pela mídia ocidental, a tese ignora aspectos centrais da geopolítica econômica. Muitos dos países que aderiram à iniciativa já estavam endividados com credores ocidentais, após décadas de empréstimos atrelados a políticas do FMI e heranças do colonialismo.
Na África, por exemplo, a China é o maior credor bilateral, mas detém apenas 8% da dívida pública da África Subsaariana. A maior parte está com credores privados ocidentais. Do total da dívida externa, 18% é com a China, e o restante é dividido entre instituições multilaterais, Eurobonds e países ocidentais.
O modelo chinês também se destaca por adotar o conceito de “capital paciente”, com flexibilidade para reestruturação, longo prazo e foco no desenvolvimento social. Em 2021, por exemplo, a China anunciou a redistribuição de R$ 49 bilhões (23% dos seus Direitos Especiais de Saque do FMI) a países africanos — mais, proporcionalmente, que os R$ 487 bilhões redistribuídos pelo conjunto dos países do G20.
A análise conclui que, se existe uma armadilha da dívida, ela se origina nos mecanismos financeiros históricos do Ocidente, que seguem impondo relações desiguais — enquanto a China tenta se apresentar como uma alternativa de longo prazo, com ênfase no desenvolvimento sustentável.