CHINA EM FOCO

Nova Rota da Seda: China rebate tese de 'armadilha da dívida' propagada pelos EUA

Em uma iniciativa requentada, projeto bipartidário do Congresso dos EUA quer prejudicar adesão à Iniciativa Cinturão e Rota de países em desenvolvimento, em especial de África

Créditos: Xinhua - Trens na estação ferroviária de Nairóbi, capital do Quênia, legado da Nova Rota da Seda
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Enquanto o presidente Lula acena para a possibilidade de o Brasil aderir à Iniciativa Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, os EUA intensificam a campanha para desacreditar o megaprojeto de infraestrutura da China, em especial para embarreirar parcerias entre a potência asiática e países em desenvolvimento.

A mais recente ofensiva vem de uma representante do Partido Republicano na Califórnia, Young Kim. Nascida na Coreia do Sul, ela se mudou para os Estados Unidos ainda jovem e se tornou uma das primeiras mulheres coreanas-estadunidenses a servir no Congresso daquele país, quando foi eleita pela primeira vez em 2020.

Nesta segunda-feira (5) Kim, que atua como presidente do Subcomitê Indo-Pacífico do Congresso dos EUA, usou as redes sociais para anunciar que lidera a Lei SPEED para "combater a influência do Partido Comunista Chinês" em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, mais especificamente os do continente africano.

"A Iniciativa Cinturão e Rota de Xi Jinping não só coage os países em desenvolvimento a caírem na diplomacia da armadilha da dívida, como também expõe inúmeras pessoas a riscos ecológicos, ambientais e de saúde pública", escreveu.

A proposta, chamada de Lei de Combate à Exploração e Degradação Ambiental da República Popular da China (SPEED Act, H.R. 9265) foi proposta por Kim em parceria com Colin Allred, do Partido Democrata pelo Texas. Segundo os dois representantes a legislação servirá para "combater os efeitos negativos ambientais, ecológicos e de saúde pública dos investimentos ligados à China na África."

"Não podemos permitir que Xi Jinping aumente seu poder global e viole as leis internacionais ambientais e trabalhistas no processo. Tenho orgulho de liderar a Lei SPEED para combater a Iniciativa Cinturão e Rota e responsabilizar a RPC por suas práticas exploratórias, degradação ambiental deliberada e ameaça aos meios de subsistência das comunidades africanas", declarou Kim em nota na sua página na internet.

China rebate tese do EUA

Em várias ocasiões o governo chinês tem rebatido as acusações dos EUA de que a Nova Rota da Seda leva países em desenvolvimento a uma "armadilha da dívida", que classifica como alegações de infundadas e motivadas por interesses políticos.

Pequim argumenta que os credores comerciais dominados pelo Ocidente e as instituições financeiras multilaterais são responsáveis por uma grande parte da dívida dos países em desenvolvimento.

Em abril deste ano, Tian Lin, um porta-voz da Agência Chinesa de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (CIDCA, da sigla em inglês) enfatizou que a China segue os princípios de consultas em pé de igualdade e cooperação mutuamente benéfica para ajudar esses países a aliviar suas dívidas e promover um crescimento econômico sustentável.

"As acusações dos EUA são insustentáveis. A China dá grande importância à questão da dívida enfrentada pelos países em desenvolvimento. Seguimos o princípio de consultas em pé de igualdade e cooperação mutuamente benéfica para ajudar esses países a aliviar suas dívidas e crescer economicamente de forma sustentável", afirmou Tian em um comunicado publicado no site do órgão.

O porta-voz também afirmou que nenhum país enfrentou dificuldades financeiras devido à cooperação com a China e que as parcerias têm gerado benefícios econômicos de longo prazo para os países envolvidos

Além disso, a China argumenta que suas políticas de empréstimo são transparentes e visam o desenvolvimento dos países receptores, oferecendo empréstimos em condições favoráveis e resolvendo problemas de pagamento de dívidas por meio de negociações bilaterais.

A potência asiática enfatiza que sua assistência externa não tem vínculos políticos e não impõe condições aos beneficiários, ao contrário do que é muitas vezes alegado pelos críticos ocidentais.

Perdão de dívida

Há quase dois anos, em 23 de agosto de 2023, o principal diplomata chinês, o ministro das Relações Exteriores Wang Yi, anunciou que a China estava perdoando 23 empréstimos sem juros, com vencimento até o final de 2021, feitos a 17 países africanos.

“Também continuaremos a aumentar as importações da África, apoiar o maior desenvolvimento dos setores agrícolas e manufatureiros da África e expandir a cooperação em indústrias emergentes, como economia digital, saúde, setores verdes e de baixo carbono”, disse o chanceler.

Em defesa da biodiversidade

Ao contrário do que insinua a Lei SPEED de que a China representa um ameaça ambiental a países africanos, o governo chinês e de nações da África estão intensificando a cooperação para a proteção ambiental e o combate às mudanças climáticas, com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável e verde.

Desde 2012, China e países da África coorganizam seminários e conferências para fortalecer a coordenação em políticas ambientais. Em 2020, foi inaugurado o Centro de Cooperação Ambiental China-África, com apoio de diversas nações africanas e organizações internacionais.

Além disso, instituições de sete países africanos, como Angola e Quênia, aderiram à Coalizão Internacional para o Desenvolvimento Verde em 2021. A China também tem estabelecido parcerias diretas com países africanos para projetos que incluem a construção de parques industriais de baixo carbono e treinamentos em tecnologias sustentáveis.

As nações colaboram igualmente na repressão ao tráfico de animais selvagens, compartilhando inteligência e fortalecendo a aplicação da lei para proteger a biodiversidade.

Desmentido sobre acusação de violações trabalhistas

A noção dos dois congressistas dos EUA que apresentaram um projeto de lei para impactar de forma negativa a Nova Rota da Seda em países da África foi forjada a partir de matérias como a que o jornal britânico The Guardian publicou em janeiro de 2022 sob o título ‘They want to remove us and take the rock’ ("Eles querem nos remover e levar a rocha", em tradução livre).

O texto acusou empresas chinesas de causar medo e descontentamento em comunidades zimbabuanas devido a operações de mineração de granito. A reportagem afirmava que moradores estavam sendo injustamente deslocados para facilitar essas operações. No entanto, uma investigação da agência Xinhua apresentou um cenário diferente, indicando que apenas três famílias, e não cinquenta, foram realocadas por uma empresa chinesa, com compensações adequadas.

O morador Salison Ranjisi, citado como tendo desmaiado com a notícia de sua realocação, esclareceu que nunca desmaiou, embora tenha sofrido de hipertensão devido ao estresse do processo. Ele confirmou que se mudou voluntariamente após receber uma compensação de 4.800 dólares. Além disso, um trabalhador local relatou que as condições de trabalho são satisfatórias, refutando alegações de longas jornadas e baixa remuneração.

A chegada dos investimentos chineses transformou o granito, anteriormente um recurso não valorizado, em uma importante fonte de renda e empregos para a comunidade local. A matéria do The Guardian também foi criticada por autoridades e mídia locais como parte de uma campanha ocidental para desacreditar os investimentos chineses no Zimbábue, sugerindo que há motivações geopolíticas por trás das críticas.

Sinofobia pura

No papel de polícia do mundo, será que essa dupla de congressistas dos EUA que apresentou a lei anti-China chegou a ouvir a opinião de pessoas de países em desenvolvimento? Toda a argumentação usada tanto por republicanos quanto por democratas contra a China tem sido moldada há anos pela mídia ocidental e é temperada com altas doses de sinofobia.

A afirmação dos dois políticos estadunidenses de que a Nova Rota da Seda é "diplomacia da armadilha da dívida" da China, que seria muitas vezes executada por meio de corporações e "poderia ser destrutiva e prejudicial para as comunidades locais e áreas-chave de biodiversidade", não é a avaliação que muitos países pobres, entre os quais de África, que aderiram à iniciativa chinesa fazem.

Também se multiplicam análises no ocidente de que a Nova Rota da Seda faz com que países que se juntam à iniciativa fiquem inadimplentes, com inflação em disparada, com pessoas perdendo empregos e suas famílias enfrentando a fome.

Quênia deu salto de desenvolvimento

Ao ouvir a opinião de pessoas que moram em países em desenvolvimento mostram exatamente o oposto no que diz respeito à "armadilha da dívida". É o Ocidente, incluindo os EUA, e não a China, o maior credor dessas nações. Instituições financeiras ocidentais cobram taxas de juros de seus empréstimos quase duas vezes mais altas do que as chinesas.

Por exemplo, o Quênia, localizado na região oriental da África, participa da Nova Rota da Seda de várias maneiras, especialmente por meio de projetos de infraestrutura financiados pela China como a Ferrovia Mombasa-Nairobi, o Porto de Mombasa, a Zona Econômica Especial de Mombasa, além de rodovias e infraestrutura urbana.

Um dos projetos mais emblemáticos da Iniciativa Cinturão e Rota no Quênia é a Ferrovia Mombasa-Nairobi. Financiada e construída pela China, integra um plano maior para conectar a África Oriental e melhorar o transporte e o comércio na região. Inaugurada em 2017, a ferrovia tem sido um componente crucial na facilitação do transporte de mercadorias e passageiros entre o porto de Mombasa e a capital, Nairobi.

Já o porto de Mombasa é um dos mais importantes da África Oriental e tem recebido investimentos significativos da China para modernização e expansão. Isso inclui melhorias nas instalações portuárias e na infraestrutura de apoio. Os chineses também têm investido no desenvolvimento de zonas econômicas especiais no Quênia, como a de Mombasa, para promover o comércio, a industrialização e a criação de empregos.

Há ainda vários projetos de infraestrutura rodoviária e de desenvolvimento urbano no Quênia foram financiados ou construídos por empresas chinesas, melhorando a conectividade e a qualidade de vida nas cidades quenianas. Com a participação na Nova Rota da Seda, o país tem impulsionado seu crescimento econômico, modernizado sua infraestrutura e fortalecidos as relações comerciais com a China. .

De acordo com o Tesouro Nacional do Quênia, a dívida externa do país totalizava US$ 36,66 bilhões no final de março de 2023. Dentre as dívidas, 46,3% são devidos a credores multilaterais, incluindo o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), e 17,2% são devidos à China.

Já o pesquisador do Instituto de Políticas para a África em Nairóbi, Lewis Ndichu, os desafios da dívida do Quênia não devem ser atribuídos à China, mas aos efeitos colaterais da crise na Ucrânia e às incertezas econômicas globais.

"A China considerou importante dar tempo aos países africanos para se estabilizarem, porque começamos a pagar a dívida do SGR (ferrovia de bitola larga) em 2020. O governo agora pode colher os impactos do SGR e está gradualmente no caminho certo em relação à sustentabilidade da dívida para o SGR. Quando chegar a hora, especialmente agora que temos um novo governo, podemos iniciar a segunda etapa do SGR", disse Ndichu.

O atual presidente do Quênia,William Ruto, seu mandato iniciou em 13 de setembro de 2022 e vai até 13 de setembro de 2027. Em fevereiro deste, durante visita oficial à China, o mandatário queniano expressou o desejo de fortalecer a amizade entre o Quênia e a China e destacou a cooperação mútua em várias áreas, incluindo infraestrutura e comércio, especialmente através da Nova Rota da Seda.

Durante um encontro com o presidente chinês, Xi Jinping, Ruto enfatizou os benefícios dos laços econômicos e culturais entre os dois países, mencionando que a China é o maior parceiro comercial do Quênia, com um volume de comércio que ultrapassou US$ 8,5 bilhões em 2023?.

Ambiciosa participação do Paquistão

Outro país em desenvolvimento que desmonta a tese de "armadilha da dívida" é o Paquistão. Localizado no sul da Ásia, é um dos principais participantes da Nova Rota da Seda, através do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC, da sigla em inglês), que é um dos projetos mais ambiciosos e significativos da iniciativa chinesa

A CPEC tem o objetivo de melhorar a infraestrutura paquistanesa e fortalecer a conectividade entre a China e o Paquistão. Inclui a construção e modernização de estradas, rodovias e ferrovias que ligam o porto de Gwadar, no sul do Paquistão, à região de Xinjiang, na China. Isso facilita o transporte de mercadorias entre os dois países e melhora a conectividade regional.

Um dos principais projetos da CPEC é o desenvolvimento do Porto de Gwadar, localizado no sudoeste do Paquistão. Este porto de águas profundas é visto como um ponto estratégico para o comércio marítimo e oferece à China acesso ao Oceano Índico, além de reduzir a dependência chinesa do Estreito de Malaca para transporte de energia.

A CPEC tem ainda vários projetos de energia para ajudar a resolver a crise energética do Paquistão, que inclui a construção de usinas de energia a carvão, hidroelétricas, solares e eólicas, além da modernização da infraestrutura de transmissão de energia.

O corredor envolve também o desenvolvimento de zonas econômicas especiais e parques industriais, que visam atrair investimentos, criar empregos e fomentar o crescimento econômico no Paquistão. Abrange a modernização da infraestrutura de telecomunicações e a criação de uma rede de fibra ótica que liga o Paquistão à China, melhorando a conectividade digital entre os dois países.

O ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Bilawal Bhutto Zardari, declarou em julho de 2023, durante visita ao Japão, , que a acusação de que o Paquistão está preso na "armadilha da dívida" chinesa é "propaganda política", já que o Paquistão não apenas aceita empréstimos da China, mas também de outros países. Ele acrescentou que a maior parte da assistência da China ao Paquistão tem sido na forma de investimentos ou empréstimos com condições favoráveis.

China e EUA na África

Investimentos recentes da China e dos Estados Unidos na África destacam estratégias distintas e escalas, refletindo seus interesses econômicos e geopolíticos únicos.

A China aumentou significativamente sua presença econômica na África nas últimas duas décadas, tornando-se o maior parceiro comercial e credor bilateral do continente. Até 2021, a participação da China na dívida pública externa da África subsaariana cresceu para cerca de 17%, com um volume total de comércio alcançando um recorde de US$ 282 bilhões em 2023.

A maioria das exportações da África para a China inclui commodities primárias como metais e combustíveis, enquanto as importações consistem principalmente em bens manufaturados e eletrônicos. O investimento direto estrangeiro (IDE) da China atingiu o pico de US$ 5 bilhões em 2022, focando em setores como transporte, energia e mineração, sob a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI).

Já os Estados Unidos vêm recalibrando suas estratégias de investimento para a África, com um foco recente na construção de infraestrutura para contrapor a influência chinesa. A potência global não corresponde ao nível de investimentos estatais da China, e enfatiza, em vez disso,  a promoção da "democracia", mercados livres e instituições públicas como fundamentos para o desenvolvimento.

Os EUA também estão envolvidos em projetos como o Corredor de Lobito, que visa melhorar o fornecimento de minerais críticos e infraestrutura em vários países africanos, promovendo investimento do setor privado em vez de depender fortemente de iniciativas financiadas pelo estado.

Os investimentos da China viram uma desaceleração devido a uma mudança para um modelo de desenvolvimento mais sustentável, reduzindo significativamente os novos compromissos de empréstimos desde o pico em 2016.

Enquanto isso, os EUA estão aproveitando a Área de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) para promover o comércio regional e atrair investimento privado, visando integrar os mercados africanos de forma mais profunda nas cadeias de valor globais, o que poderia fomentar um crescimento econômico mais diversificado e sustentável.

Vacina para caso brasileiro

Desde que Lula sinalizou o interesse em aderir à Nova Rota da Seda, a mídia comercial anda em polvorosa para desqualificar a iniciativa chinesa. Os exemplos de países africanos e asiáticos servem como vacina para compreender a possibilidade de estabelecer uma parceria "ganha-ganha" entre Brasil e China no ano em que celebramos os 50 anos das relações diplomáticas sino-brasileiras.