O Festival da Primavera, que no Brasil costumamos chamar de Ano Novo Chinês, é uma festa popular em comemoração ao ano novo de acordo com o calendário tradicional chinês. Em dezembro do ano passado, a festa foi adicionada à lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, e sua origem remete a antigos mitos e tradições.
Origem
Sendo a agricultura a principal preocupação dos chineses na antiguidade, festas tradicionais ligadas às estações do ano acabaram se desenvolvendo ao longo do tempo. O registro mais antigo do Festival da Primavera data do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.).
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Registros da dinastia Qin (221-206 a.C.) apresentam ritos para afastar doenças, chamados de “grande Nuo”, realizados no último dia do ano. Quando Qin conseguiu unificar o país, essa tradição se espalhou por toda a China e, com o passar do tempo, deu origem ao costume atual de limpar a casa antes da chegada do ano novo.
Mas o primeiro registro de celebração do ano novo segundo o calendário tradicional chinês data da dinastia Han (202 a.C - 220 d.C.). A celebração consistia em reunião familiar e visitas aos anciãos, costume que essencialmente é mantido até hoje.
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Nas dinastias seguintes, outras tradições foram surgindo, uma após outra, como a de reunir a família para a última refeição do ano, seguida de vigília para esperar o ano novo, e os hábitos de explodir bombinhas para afastar maus espíritos, fixar pares de versos auspiciosos e o ideograma Fu (felicidade) nas portas, distribuir envelopes vermelhos com uma quantidade generosa de dinheiro, e comer alimentos que atraem boa sorte para o ano que se inicia.
O mito do Nian
De acordo com um antigo mito, a origem da Festa da Primavera está ligada a um monstro mitológico chamado Nian (nome que significa ano). Segundo a lenda, esse monstro acordaria todos os anos para ir à cidade caçar e comer pessoas, além de causar muitos prejuízos aos moradores.
Para tentar resolver esse problema, os moradores decidiram permanecer acordados em vigília na noite de ano novo para se esconder do monstro. Eles perceberam que o Nian tem medo da cor vermelha, da luz e do barulho, e por isso todos passaram a usar roupas vermelhas, enfeitar a cidade com lanternas, explodir bombinhas e tocar tambores para afastar o monstro. E foi assim que os moradores passaram a ter paz novamente, sem ser incomodados pelo monstro.
O ideograma Fu deve ser fixado de ponta-cabeça?
Na véspera do primeiro dia do ano novo, é costume fixar o ideograma Fu nas portas das casas para trazer a felicidade, uma tradição que hoje em dia vem se popularizando também entre os aficionados pela cultura chinesa no exterior.
Mas uma confusão é muito comum: algumas pessoas afirmam que o ideograma deve ser colocado na posição original, enquanto outras afirmam que ele deve ser fixado de cabeça para baixo. Afinal, quem tem razão?
A ideia por trás disso é que o ideograma, mantido na posição correta, serve para trazer a felicidade, enquanto de ponta-cabeça ele impediria a felicidade de ir embora, mantendo-a na casa. Uma boa solução é fixar o ideograma na posição correta nas áreas externas e de cabeça para baixo em áreas internas.
Mas as opiniões sobre como fixar o ideograma divergem de lugar para lugar e mesmo diferentes famílias podem ter suas próprias regras sobre isso. Por exemplo, há quem prefira atrair felicidade e quem acredite que o mais importante é retê-la.
Como é celebrado o Festival da Primavera na China?
Em grandes cidades fora da China, como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, é comum acontecerem eventos públicos em comemoração ao Ano Novo Chinês, que acabam funcionando como festivais de cultura chinesa, com apresentações de danças, música e outras tradições culturais da China.
Tais eventos, especialmente comum em bairros chineses das grandes metrópoles do mundo, contribuem para divulgar a cultura do país asiático e promover ricas trocas culturais, mas também criam em muita gente a impressão de que na China o ano novo seria celebrado dessa forma.
Mas então como o ano novo é celebrado na China? A parte mais essencial da festa ocorre na intimidade dos lares, onde familiares se reúnem para comer juntos, trocar presentes e esperar o ano novo, e no dia seguinte visitam outros parentes e amigos.
Essencialmente, é exatamente assim que me recordo das festas de ano novo que marcaram minha infância no Brasil. Nos primeiros anos que passei aqui na China, o que mais me surpreendeu foi encontrar as ruas quase desertas nos dois primeiros dias do feriado.
Mas se você quiser ver gente no primeiro dia do ano novo, o melhor a fazer é visitar algum templo, pois é para lá que muitos vão para queimar incenso e fazer votos de um ano feliz.
Esta tradição acabou dando origem a outra, a das Feiras de Templos: o movimento intenso de pessoas nas proximidades dos templos durante o ano novo atrai ambulantes, dando origem a feiras que evoluíram para grandes quermesses que hoje acontecem também em parques, shoppings e outros locais.
As feiras de templos funcionam apenas durante o Festival da Primavera e atraem muitos visitantes. Há barracas vendendo comida e outros produtos diversos, sendo que em algumas feiras é possível encontrar até mesmo automóveis à venda!
Além disso, também são populares as barracas com jogos e brincadeiras, semelhantes às que vemos em parques de diversões e festas juninas no Brasil, e as feiras costumam oferecer também uma programação cultural variada, com artistas se apresentando ao longo do dia.
A tradição está mudando
Foi durante o meu primeiro Festival da Primavera na China que, pela primeira vez, vi as ruas de Pequim desertas. Passeei de bicicleta pela cidade no dia de ano novo, indo aos lugares turísticos em busca do agito, só para encontrar o comércio fechado e quase ninguém nas ruas.
Também os supermercados fechavam durante os dias de festa, somente alguns permaneciam abertos para atender a uma pequena demanda, operando com poucos funcionários e sem reposição de estoque. Foi então que descobri que as famílias chinesas costumam estocar comida em casa para o feriado.
Também encontrei fechados a maioria dos restaurantes, já que as famílias passam o feriado em casa. Mas quando fui jantar em um dos poucos restaurantes abertos, notei diversas famílias reunidas lá.
Foi então que percebi que o hábito de comer fora ao invés de cozinhar é mais popular hoje em dia, já que é bem mais conveniente ir a um restaurante que passar o dia cozinhando dezenas de pratos para o banquete de ano novo.
Nos anos seguintes, se popularizaram os aplicativos de entrega de comida e outros produtos. Basta encomendar e depois de meia hora a compra está na sua porta.
A pandemia da Covid-19 contribuiu para popularizar ainda mais as entregas via aplicativo, alterando de forma significativa a cultura das compras na China: cada vez mais gente prefere comprar online o que precisa ao invés de ir pessoalmente ao supermercado ou restaurante.
Consequentemente, aumentou a quantidade de restaurantes e supermercados oferecendo entregas durante o feriado do Festival da Primavera, embora a quantidade de entregadores seja reduzida, tornando a entrega mais demorada.
Suponho que tem sido mais comum as famílias chinesas encomendarem pelo menos parte dos pratos da ceia de ano novo nesses aplicativos ao invés de cozinhá-los. Fora isso, hoje em dia é mais fácil comprar ingredientes para cozinhar durante o feriado, de modo que já não é tão importante estocar comida em casa.
Também cresceu a quantidade de chineses, especialmente jovens, que aproveitam o longo feriado para viajar. Tenho amigos chineses que aproveitam o feriado para passear no exterior, um hábito que vem sendo cada vez mais aceito.
Mas apesar de tantas mudanças no estilo de vida, a maioria dos chineses prefere passar pelo menos os dois primeiros dias do feriado com a família. A partir do terceiro dia, a quantidade de turistas cresce significativamente nas cidades chinesas.
Mas, independente de quais sejam as mudanças trazidas pelos novos tempos na celebração do Festival da Primavera, sua essência permanecerá para sempre nos corações dos chineses.
Feliz Ano Novo Chinês!
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum