O alívio da extrema pobreza na China é um dos maiores feitos da humanidade. Mais de 800 milhões de chineses e chinesas saíram da miséria. Ainda assim, o Ocidente ignora esse feito extraordinário. Nas raras ocasiões em que admite, prefere lançar dúvidas ou elaborar respostas simples para uma questão complexa.
Uma mostra dessa abordagem preconceituosa pode ser vista na nova série documental da Netflix "O futuro de Bill Gates" ("What's Next? The Future with Bill Gates") que explora, em cinco episódios, questões globais críticas: inteligência artificial, mudanças climáticas, desigualdade de renda, e inovações tecnológicas.
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No quatro episódio, "É possível ser rico demais?", a desigualdade social é tratada sob diferentes perspectivas, todas extremamente superficiais e até cínicas. Um dos entrevistados por Gates é o senador republicano por Utah Mitt Romney.
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Sinofobia descarada
Romney desfia um rosário de mentiras difíceis de engolir. E não disfarça sua sinofobia desconcertante. Para começar, ele propaga uma inverdade histórica ao afirmar que o capitalismo "é melhor que qualquer alternativa que vimos pelo mundo". Ele afirma que "muitas pessoas viveram na pobreza sob o socialismo e o comunismo por séculos". O socialismo foi adotado como sistema político em 1917, com a Revolução Russa.
Outra lorota é que para Romney, a China erradicou a extrema pobreza por ter adotado o livre mercado. Ele sequer reconhece esse feito extraordinário e se "esquece" de considerar o sistema político que vigora desde 1949 na potência asiática, o papel do Estado no alívio da pobreza e o modelo de gestão socialista que aplica os planos quinquenais para avançar na qualidade de vida do povo chinês.
"Nosso sistema de livre iniciativa, o capitalismo, se preferir, gerou uma riqueza extraordinária. Não é perfeito. Acontece que ele é melhor do que qualquer outra alternativa que vimos pelo mundo. Muitas pessoas viveram na pobreza sob o socialismo e o comunismo por centenas de anos. Elas finalmente adotaram a livre iniciativa, de certa forma. A China, por exemplo, fez isso. E, curiosamente, centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza", disse o senador a Gates.
Sinofobia de longa data
A sinofobia de Romney vem de longe. Ele tem sido uma voz constante de crítica em relação à China, principalmente nos temas de segurança nacional e economia. Desde sua campanha presidencial de 2012, na qual foi derrotado por Barack Obama, quando classificou o país asiático como o maior rival econômico e geopolítico dos Estados Unidos, manteve uma postura firme contra a crescente influência global da China.
Como senador, ele tem defendido políticas de contenção para enfrentar o que classifica de comportamento agressivo chinês, especialmente no Mar do Sul da China. Romney tem enfatizado a necessidade de reduzir a dependência dos Estados Unidos de produtos e tecnologias chinesas, destacando a importância de proteger setores estratégicos, como o de semicondutores, para manter a segurança nacional.
No último dia 19 de setembro, durante debate no Senado sobre o STRATEGIC Act de 2024, Romney afirmou que os Estados Unidos precisam de uma estratégia abrangente para enfrentar a crescente ameaça da China. Ele destacou que essa legislação pode ajudar a combater a Iniciativa Cinturão e Rota chinesa e a fortalecer as alianças dos EUA no Indo-Pacífico.
"Um mundo onde a China é a líder econômica, geopolítica e militar global é um mundo onde os Estados Unidos são menos seguros e menos prósperos. O governo está atrasado para o desenvolvimento de uma estratégia abrangente para lidar com a crescente ameaça da China. Embora esta legislação não substitua essa necessidade, ela inclui políticas fortes que ajudarão os EUA a combater a Iniciativa Cinturão e Rota do PCC, erradicar a influência maligna do PCCh em nossas instituições educacionais e fortalecer nossas alianças de segurança no Indo-Pacífico”, afirmou.
A pobreza cresce no país mais rico do mundo
O republicano não explica como o livre mercado que vigora nos EUA permite que existam quase 38 milhões de estadunidenses incapazes de pagar as necessidades básicas da vida enquanto 1% detém 40% da riqueza de todo o país.
Os dados mais recentes da Census, agência governamental responsável por coletar, analisar e disseminar dados sobre a população e a economia nos Estados Unidos, o país tem 37,9 milhões em situação de pobreza, o que representa 11,5% da população.
Cerca de 5,5% da população (17,9 milhões de pessoas) vive em condições de pobreza extrema, ou seja, com uma renda abaixo de 50% do limiar de pobreza.
Desigualdade nos EUA e na China
Embora tanto os Estados Unidos quanto a China enfrentem grandes desafios de desigualdade, as causas e as dinâmicas são diferentes. Nos EUA, a concentração de riqueza é impulsionada por uma elite financeira e falta de acesso a educação e saúde de qualidade para a classe média e baixa. Na China, o foco está na erradicação da pobreza rural, embora a desigualdade entre regiões costeiras e áreas rurais continue alta.
O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, é semelhante nos dois países: 0,49 nos EUA e 0,46 na China. Enquanto os EUA têm grande disparidade entre os mais ricos e a classe trabalhadora, a China enfrenta o desafio de equilibrar o desenvolvimento entre suas regiões urbanas e rurais.
Medidas Governamentais e Perspectivas
Na China, o governo tem implementado políticas para redistribuir a riqueza e promover o crescimento econômico mais equitativo, enquanto nos EUA, apesar de programas como Medicaid e Seguro Social, as políticas de redistribuição são menos robustas, favorecendo os ricos.
Em ambos os países, o desafio da desigualdade permanece, mas enquanto a China trabalha para reduzir o fosso entre ricos e pobres, a concentração de riqueza nos EUA continua a crescer, sem soluções estruturais à vista.
Gastos sociais x militares
Outro aspecto que vale considerar na análise sobre as desigualdades sociais é comparar gastos militares e sociais entre a China e os Estados Unidos, que revela diferenças significativas nas prioridades e abordagens de ambos os países em termos de alocação de recursos.
Historicamente, os EUA têm o maior orçamento militar do mundo. Em 2022, o país destinou cerca de US$ 877 bilhões para a defesa, representando aproximadamente 3,5% do PIB. Os gastos militares dos EUA têm foco em tecnologia de ponta, forças armadas globais e manutenção de bases militares ao redor do mundo.
O orçamento militar da China também tem crescido rapidamente, com aproximadamente US$ 292 bilhões em 2022, cerca de 1,7% do PIB. Embora seja o segundo maior do mundo, a China gasta consideravelmente menos que os EUA em termos absolutos e como porcentagem do PIB. No entanto, a China tem investido em modernização militar, incluindo tecnologia de inteligência artificial e capacidades navais no Mar do Sul da China.
Os gastos sociais dos EUA cobrem áreas como saúde pública, seguridade social e programas de assistência, mas o país tem uma rede de proteção social relativamente menor em comparação com outras nações desenvolvidas. Em 2022, os gastos com assistência social e saúde representaram 20% do PIB, com programas como Medicaid e Medicare absorvendo grande parte desse montante. No entanto, há críticas de que os investimentos sociais são insuficientes para combater a crescente desigualdade no país.
A China tem focado no combate à pobreza e no fortalecimento de sua rede de seguridade social, particularmente nas últimas décadas. Os gastos sociais, incluindo saúde, educação e programas de redução da pobreza, estão estimados em cerca de 10% do PIB. Desde 2015, o país fez progressos significativos na erradicação da pobreza extrema e no aumento do acesso a serviços públicos. Ainda assim, a desigualdade entre áreas urbanas e rurais continua um desafio para o governo chinês.
Enquanto os EUA gastam mais em defesa militar, a China tem concentrado seus esforços tanto na modernização militar quanto no combate à pobreza e melhoria de suas redes de proteção social. Essa diferença de prioridades reflete as realidades estratégicas de ambos os países: os EUA visam manter sua liderança global militar, enquanto a China busca equilibrar desenvolvimento econômico interno com seu crescente papel internacional.
Alívio da extrema pobreza na China
Em 25 de fevereiro de 2021 a República Popular da China anunciou ao mundo o feito mais espetacular da história da humanidade: a erradicação da extrema pobreza no país de 1,4 bilhão de habitantes.
Nas últimas quatro décadas, a potência asiática retirou 850 milhões de pessoas da pobreza. Esse número equivale a quase toda a população da América Latina, do Caribe e mais um Brasil juntos, o que contribuiu para reduzir em 76% o índice global de pobreza.
Esse feito histórico fica ainda mais impressionante pois no momento em que foi alcançado o planeta vivia a pior crise sanitária deste século: a pandemia de covid-19, que provocou o primeiro aumento no índice global de pobreza humana desde 1998, sobretudo no Sul Global.
Um total de 832 municípios pobres e cerca de 100 milhões de moradores rurais pobres foram retirados da pobreza na China, e, entre eles, mais de 9,6 milhões de pessoas atingidas pela pobreza foram deslocados de áreas inóspitas.
Para alcançar essa meta impressionante, o povo chinês trabalhou com afinco e persistência. A superação da extrema pobreza é resultado de uma jornada que teve início em 1949, quando o Partido Comunista da China (PCCh), sob a liderança de Mao Zedong, venceu a Grande Guerra da Libertação Popular. O país era famélico, considerado o 11º país mais pobre do mundo, com expectativa de vida de 35 anos.
Muito além do livre mercado
A erradicação da extrema pobreza na China não pode ser explicada apenas com a abertura do mercado, com a Reforma e Abertura. Se fosse assim, os EUA que gabam de ser o ápice da liberdade econômica não teria um só miserável. E isso está longe da verdade.
O alívio da pobreza na China foi alcançado por meio de uma série de políticas abrangentes e coordenadas, conhecidas como a "estratégia de alívio da pobreza direcionada".
- Foco nas regiões mais pobres: A China identificou as áreas mais vulneráveis e concentrou recursos e investimentos nessas regiões, especialmente em zonas rurais e montanhosas.
- Desenvolvimento econômico: Incentivos foram oferecidos para impulsionar indústrias locais, como agricultura, turismo e manufatura, visando aumentar a renda das populações mais pobres.
- Transferência de recursos: O governo chinês mobilizou transferências de recursos financeiros e tecnológicos, além de enviar equipes de especialistas para monitorar e implementar políticas de desenvolvimento nas áreas carentes.
- Infraestrutura e serviços públicos: Houve investimentos significativos em infraestrutura, como estradas, eletricidade e saneamento, além da expansão de serviços de educação e saúde para comunidades rurais.
- Realocação de populações: Em alguns casos, famílias de áreas extremamente pobres foram transferidas para regiões com melhores condições de vida e oportunidades de emprego.
- Programas de subsídios e proteção social: A China expandiu programas de bem-estar social, oferecendo subsídios, habitação acessível e treinamentos vocacionais para famílias de baixa renda.
Esses esforços foram acompanhados por rígido monitoramento para garantir que as populações saíssem efetivamente da linha de extrema pobreza, definida por uma renda inferior a US$ 1,90 por dia, de acordo com os padrões internacionais.
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