No dia em que Brasil e China celebraram 49 anos de relações diplomáticas, nesta terça-feira (15), a potência asiática ganhou os holofotes do debate público brasileiro durante depoimento de João Pedro Stédile à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), na Câmara dos Deputados.
Stédile deu um espetáculo de lucidez e conhecimento histórico e político. Em mais de uma oportunidade, ele foi confrontado sobre a China. Em uma delas, o relator do colegiado, deputado Ricardo Salles (PL-SP), invocou a potência asiática para atacar a testemunha e o MST e 'lacrar' diante da atenta audiência que se expressa nas redes sociais. O parlamentar questionou:
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Existe algum movimento na China análogo ao que é o MST aqui?
O argumento basicamente insinua que a ‘ditadura chinesa defendida pelo PT e pelo presidente Lula’ não permitiria um movimento que ‘invade propriedades’ em seu território. Stédile tentou responder.
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Não, porque em 1949 eles fizeram reforma agrária. Vocês que querem tanto derrotar o MST, a fórmula é simples: façam a Reforma Agrária. No outro dia o MST desaparece. Então, na China entre 1949 e 1952 a reforma agrária foi muito drástica, distribuíram terra para todo mundo e hoje a média das terras lá na China é de 0,7 hectares por família.
Stédile, foi, então, interrompido por Salles com uma falácia.“Por isso que eles passam fome, não tem produtividade nenhuma”, disparou o relator bolsonarista na tentativa de encaminhar a lacração. Mas o coordenador do MST não lhe deu muita importância.
Eu não sou advogado da China. Aconselho vocês chamarem o embaixador deles, que tem a prerrogativa legal de defendê-los.
Ministro da boiada
A CPI dos MST, cujo principal objetivo é criminalizar a luta pela reforma agrária encampada pelo MST, é dominada pela nata do bolsonarismo. Como Salles, relator do colegiado e ex-ministro do Meio Ambiente do Governo Bolsonaro que ficou nacionalmente conhecido como o ministro da "boiada".
Durante uma reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, Salles alertou o gabinete ministerial sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da Covid-19: para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus para mudar regras ambientais e passar a boiada.
Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas.
Reforma agrária da China
Às vésperas da Revolução de Libertação do Povo Chinês, em 1949, a população do país asiático era de mais de meio bilhão de pessoas, concentradas principalmente na parte oriental do país. A agricultura era intensiva, arcaica e marcada pela forte presença de campos de arroz e a fome era uma constante na vida dos camponeses.
De acordo com o artigo "Processos de transformação do campo chinês: da reforma agrária à atualidade", de Ana Saldanha para o Brasil de Fato, com a fundação da República Popular da China, em 1º de outubro de 1949, nasceu também a proposta de um novo modelo de organização no campo chinês. Em 28 junho de 1950, menos de um ano depois da revolução, foi instituída uma nova lei agrária para redistribuir a terra por pequenos e médios camponeses.
A reforma agrária tinha como objetivo o confisco de terras de grandes proprietários e a sua distribuição entre camponeses sem terra ou pequenos camponeses. O intuito foi acabar com o sistema da grande propriedade e substituí-lo por um sistema de propriedade camponesa.
Até 1952, foram distribuídos 47 milhões de hectares a 300 milhões de camponeses, ou seja, aproximadamente 50% das terras cultivadas foram, então, redistribuídas; aos camponeses mais abastados foram entregues as parcelas que os próprios, através do próprio esforço, poderiam trabalhar, enquanto os latifundiários ficaram, apenas, com a terra necessária para trabalhar por sua própria conta.
O advogado Hugo Albuquerque, publisher da Jacobin Brasil e editor da Autonomia Literária, que acaba de lançar a versão em português do clássico "A estrela vermelha brilha sobre a China", obra de Edgar Snow, o primeiro ocidental a entrar no soviete de Yan’an, a fantástica área revolucionária chinesa nascida da Longa Marcha, aproveitou a deixa de Stédile para explicar como foi a reforma agrária na China em uma sequência de postagens.
Albuquerque comenta que a reforma agrária chinesa é conhecida por sua abreviatura Tugai e mudou a história da China. O movimento ocorreu simultaneamente ao fim da Guerra Civil no continente e, também, à Guerra da Coreia. Mesmo assim, se resolveu um problema milenar.
Para o presidente Mao Zedong, a Reforma Agrária era central. Ele mesmo, Mao, veio de uma família camponesa do Sul, tendo tocado a questão agrária nos anos 1920 - quando ainda havia dupla filiação dos comunistas no Kuomintang, o Partido Nacionalista.
O advogado prossegue que, em 1927, Mao escreve o relatório sobre uma investigação feita em Hunan a respeito do movimento camponês. Esse reporte do trabalho militante do líder revolucionário já desvenda não só a questão camponesa chinesa como a singularidade de sua composição de classe.
Trocando em miúdos, o problema chinês nem era tanto a má distribuição da terra, mas a forma como se exercia o poder, político e econômico, nela. Não havia, mesmo antes de 1949 em áreas dominadas pela direita, muitas fazendas: em geral eram chácaras e sítios.
Havia, escreve Albuquerque, contudo, a figura dos senhores de terra, que eram quase como concessionários públicos de propriedades rurais. Eles exerciam seu poder tiranicamente, com o apoio de militares e milicianos - e muitas vezes eram dedicados ao plantio do ópio em vez de comida.
A China criou uma estrutura agrária que foi bem aperfeiçoada nas últimas décadas. Hoje, não só a fome erradicada do país como a China ainda tem um índice de segurança alimentar muito melhor do que Itália, Coreia do Sul e, é claro, Brasil.
Eliminação da extrema pobreza
Ao contrário do que disse Salles, o povo chinês superou a fome e a extrema pobreza. Em 25 de fevereiro de 2021 a China anunciou ao mundo o feito mais espetacular da história da humanidade: a erradicação da extrema pobreza no país de 1,4 bilhão de habitantes. Nos últimos 40 anos, foram retiradas 850 milhões de pessoas da pobreza. Esse número equivale a quase toda a população da América Latina, do Caribe e mais um Brasil juntos, o que contribuiu para reduzir em 76% o índice global de pobreza.
Esse feito histórico fica ainda mais impressionante ao ser anunciado em um momento em que a pandemia da Covid-19, que provocou o primeiro aumento no índice global de pobreza humana desde 1998, sobretudo no sul global. Entre as diversas conquistas alcançadas ao longo da última década sob a liderança do presidente Xi Jinping, essa foi sem dúvidas a mais importante e simbólica de todas.
Um total de 832 municípios pobres e cerca de 100 milhões de moradores rurais pobres foram retirados da pobreza, e, entre eles, mais de 9,6 milhões de pessoas atingidas pela pobreza foram deslocados de áreas inóspitas.
Durante a abertura do 20o Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), realizado em Pequim entre os dias 16 e 23 de outubro de 2022, Xi Jinping declarou orgulhoso:
Resolvemos, de uma vez por todas, a questão da pobreza absoluta, uma grande contribuição para a causa global da redução da pobreza.
A China, inclusive, tem muito o que ensinar para o Brasil nessa luta por segurança alimentar para o povo. A historiadora Isis Paris Maia, mestranda em Políticas Públicas que pesquisa a erradicação da pobreza extrema chinesa e seus arranjos institucionais, lista quatro questões que podem inspirar o governo brasileiro na luta contra a fome.
A primeira questão fundamental, elenca Isis, é o aprimoramento do mapeamento das situações de fome, pobreza e vulnerabilidade social através de instrumentos mais sofisticados como o uso do Big Data como a China fez.
É primordial para saber onde as pessoas estão e o que lhes falta, dentro de um processo multidimencional de pobreza, fome e vulnerabilidade social.
A segunda questão, prossegue a historiadora, é que a fome precisa ser vista dentro de um contexto de vulnerabilidade social, pois resolver o problema da fome como uma necessidade fisiológica imediata é importante.
Mas para essa retirada da pobreza ser sustentada no médio e longo prazo é necessário estar articulado com uma visão mais abrangente de retirada da pessoa da pobreza e de mobilidade social.
O terceiro ponto apontado por Isis é o das políticas públicas, que precisam contemplar as singularidades regionais, pois tal como o Brasil a China é um país continental, com desigualdades e especificidades tanto territorial quanto social.
E por fim, a quarta e última questão, é que na China está muito claro que a superação da fome e da pobreza estão diretamente relacionadas ao desenvolvimento econômico.
Ou seja: as politicas públicas estão ligadas a um processo de desenvolvimento e de tentativa de integrar as pessoas às cadeias produtivas e ao mercado de trabalho, de forma que elas possam se autonomizar de maneira mais estrutural. Essas são questões que considero primordiais para levarmos a diante o combate à pobreza em nosso país.
Assista
Confira o depoimento de João Pedro Stédile à CPI do MST na íntegra.