Em 25 de fevereiro de 2021 a República Popular da China anunciou ao mundo o feito mais espetacular da história da humanidade: a erradicação da extrema pobreza no país de 1,4 bilhão de habitantes. Nos últimos 40 anos, foram retiradas 850 milhões de pessoas da pobreza. Esse número equivale a quase toda a população da América Latina, do Caribe e mais um Brasil juntos, o que contribuiu para reduzir em 76% o índice global de pobreza.
Esse feito histórico fica ainda mais impressionante no momento em que há uma grande pandemia, que provocou o primeiro aumento no índice global de pobreza humana desde 1998, sobretudo no sul global. Entre as diversas conquistas alcançadas ao longo da década gloriosa sob a liderança do presidente Xi Jinping, essa é a mais importante e simbólica de todas.
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"Concluímos, através de lutas sucessivas, a construção de uma sociedade moderadamente próspera, sonho milenar da nação chinesa, e o desenvolvimento do nosso país se encontra em um ponto de partida de histórico mais alto”, discursou o líder da segunda maior economia do planeta durante a abertura do 20o Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), no dia 16, que está em curso em Pequim até o próximo sábado (23).
Um total de 832 municípios pobres e cerca de 100 milhões de moradores rurais pobres foram retirados da pobreza, e, entre eles, mais de 9,6 milhões de pessoas atingidas pela pobreza foram deslocados de áreas inóspitas. “Resolvemos, de uma vez por todas, a questão da pobreza absoluta, uma grande contribuição para a causa global da redução da pobreza”, declarou um orgulhoso Xi Jinping em sua fala no evento político mais importante do calendário chinês.
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Para alcançar essa meta impressionante, o povo chinês trabalhou com afinco e persistência. A superação da extrema pobreza é resultado de uma jornada que teve início em 1949, quando o PCCh, sob a liderança de Mao Zedong, venceu a Grande Guerra da Libertação Popular.
“O país era famélico, considerado o 11º país mais pobre do mundo, com expectativa de vida de 35 anos”, descreve a historiadora Isis Paris Maia, mestranda em Políticas Públicas que pesquisa a erradicação da pobreza extrema chinesa e seus arranjos institucionais.
Isis pontua que durante a política de Reforma e Abertura, iniciada em 1978, quando Deng Xiaoping expôs a meta de erradicação desta vulnerabilidade, ele apostou que com prosperidade seria comprovada a qualidade de uma governança socialista.
Rumo à sociedade harmoniosa
Agora, com a realização dessa tarefa histórica, enfatiza a pesquisadora, mantendo a coerência, a agenda chinesa se volta para a construção da chamada “sociedade harmoniosa".
“A sociedade harmoniosa visa diminuir as desigualdades, fruto da arrancada industrial dos anos 1990, e aumentar a qualidade dos serviços entregues à população. Isso se dá na consolidação de um Estado De Bem-Estar com Características Chinesas”, explica Isis.
Como anunciou Xi Jinping em seu informe político, a China foi elevada para um ponto de partida histórico mais elevado no desenvolvimento com a superação da extrema pobreza. A nova etapa de modernização do país mira a prosperidade comum de todo o povo, uma necessidade essencial do socialismo com características chinesas que requer um processo histórico de longo prazo. “Trabalhamos para defender e fomentar a equidade e a justiça sociais, promover a prosperidade comum de todo o povo e evitar resolutamente a polarização entre ricos e pobres”, anunciou o presidente.
O mapa para alcançar essa meta da prosperidade comum foi traçado pelo 14º Plano Quinquenal do país. Nesse documento, além da universalização e aumento da qualidade dos serviços, é possível observar o que o governo chinês chama de China Visão 2035, que pode ser interpretado como o caminho a ser seguido rumo à modernização socialista e à diminuição das desigualdades.
“O documento afirma o avanço da governança, dos direitos democráticos, da cultura, da educação, do capital humano, dos esportes e da saúde. O desenvolvimento das pessoas em sua integralidade é o foco da potência oriental. Assim, legitima-se o regime, não só domesticamente, mas também em âmbito nas relações internacionais”, descreve Isis.
Ou seja, a erradicação da pobreza extrema na China não é fim, mas o início de uma nova etapa do desenvolvimento da potência oriental. O governo chinês, analisa Isis, precisa tornar essa conquista algo estrutural.
Segundo o 14º Plano Quinquenal, as políticas públicas e os programas de assistência continuarão a ser implementados em benefício de grupos rurais de baixa renda e áreas subdesenvolvidas, mesmo após as comunidades alvos terem saído da pobreza. Serão realizados trabalhos de avaliação e monitoramento de áreas anteriormente atendidas para confirmar a efetividade dos programas e corrigir possíveis falhas.
Entre as metas para a próxima etapa de desenvolvimento chinês consta a melhoria do sistema de previdência e assistência social, a intensificação da gestão e supervisão de fundos e ativos em projetos de redução da pobreza e promoção do desenvolvimento sustentável de indústrias regionais.
Também serão lançados novos programas para emprego e fornecido apoio de acompanhamento para pessoas realocadas de áreas inóspitas. Haverá incentivo para agroindústrias de destaque e organizadas atividades para garantir uma melhor articulação entre produção e venda de produtos agrícolas.
Condados retirados da pobreza serão designados como lugares-chave para receber assistência para a revitalização rural e seus habitantes receberão financiamento governamental para aquisição de terra, mão de obra, assim como o local para infraestrutura e serviços públicos.
O sistema de parceria entre províncias ricas e pobres deve continuar. Serão melhorados os mecanismos de colaboração entre as regiões oriental e ocidental e regiões leste e oeste na oferta de assistência pareada, com maior ênfase à cooperação industrial e de serviços trabalhistas.
“O governo está preocupado em gerar desenvolvimento nas regiões que saíram da extrema pobreza, de forma a tornar sua conquista algo estrutural e não fruto de um assistencialismo temporário”, observa Isis.
A pobreza é um problema da luta de classes
Ciente dos esforços da China para reduzir a pobreza no país, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou o estudo Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, disponível também em inglês e espanhol, baseado na literatura acadêmica e em artigos publicados na imprensa, entrevistas com especialistas e pesquisa de campo na província Guizhou, no sudoeste do país. O levantamento chegou a cinco conclusões.
Primeira, a China se apoiou em uma abordagem multidimensional para erradicar a pobreza, em vez de apostar em programas de transferência de renda ou políticas de bem-estar. Segunda, a força da campanha está nos esforços de construção do PCCh, sobretudo com o apoio popular no campo.
Terceira, o governo chinês demonstrou capacidade de mobilização de toda a sociedade e de seus recursos. Quarta, o programa deu centralidade ao papel da população camponesa pobre que era tirada – e tirava a si mesma – da pobreza, como protagonista do processo. Por fim, quinta, a erradicação da pobreza extrema é vista não como um objetivo final, mas como uma etapa importante da construção do socialismo. Afinal, a pobreza é um problema da luta de classes.
O protagonismo das mulheres do campo
A pesquisadora Tings Chak, do Instituto Tricontinental e do Dongsheng (Vozes orientais), um coletivo internacional de pesquisadores interessados pela política e sociedade chinesas, destaca o papel fundamental desempenhado pela Federação Nacional de Mulheres da China (FNMC), organização de massa de mulheres liderada pelo PCCh, na incorporação das lutas enfrentadas pelas camponesas na estrutura e nas práticas para a eliminação da extrema pobreza.
Ela cita que um estudo de 2010 concluiu que, entre trabalhadoras, as mulheres dos condados mais pobres apresentavam taxas de pobreza (9,8%) e analfabetismo (15,7%) mais altas que os homens, além de ter menos acesso a capacitação técnica e participação social.
“A FNMC não apenas constituiu parte dos principais órgãos governamentais do país à frente do Programa Direcionado de Redução da Pobreza (PDRP), como também organizou o trabalho de base pela internet e nos territórios, com atuação que foi desde a criação de 900 mil grupos de “companheiras” no WeChat (similares aos do WhatsApp) até as 641.291 organizações populares nos povoados de todo o país”, descreve Tings.
Além disso, cita a pesquisadora, foi feita a identificação de três milhões de quadros do PCCh cuidadosamente selecionados que foram enviados para morar no campo durante anos, formando 255 mil equipes residentes. Uma equipe por povoado, um quadro por família.
“Ao lado da população, um processo de ‘avaliação democrática’ foi realizado, em que membros da comunidade debatiam e votavam sobre questões relacionadas à situação de pobreza de cada família – quem deveria entrar no registro como pobre, quem tinha saído da pobreza e, por vezes, quem tinha voltado para ela. Houve um alto nível de descentralização, improvisação e democracia popular em ação. As condições foram árduas e 1.800 quadros perderam sua vida no processo’, relembra a pesquisadora.
Tings ressalta que a superação da pobreza extrema na China é uma conquista de uma dimensão e em uma escala jamais vista na história. Mas, ao inves de ser um ponto final, é apenas uma fase na construção do socialismo, que precisa ser aprofundada e expandida.
Ela comenta que para garantir a prosperidade no campo, o governo chinês implantou um programa de revitalização rural para consolidar e expandir os avanços no alívio da pobreza.
“Há muitos desafios pela frente para as mulheres camponesas, incluindo o combate a valores patriarcais e a promoção da igualdade de gênero, o aumento da participação de mulheres do campo na força de trabalho, a redução da exclusão digital e a educação técnica para as mulheres, além do aumento da oferta de serviços de cuidados de crianças e idosos”, finaliza.
Fruto de trabalho duro e dedicado
Para o advogado especializado em Administração Pública Chinesa Renato Peneluppi, brasileiro que mora em Wuhan, província de Hubei, no centro do país, e um entusiasta do socialismo com características chinesas, essa vitória contra a extrema pobreza não foi obra do acaso.
“Veio de um trabalho duro e dedicado de gerações de líderes e militantes do Partido que pensaram, lutaram e conduziram o país a essa abundância vivida hoje”, avalia.
Peneluppi observa que é uma marca da atuação da República Popular da China alternar períodos de enfrentamento a questões objetivas, relacionadas aos meios de produção, da economia, e subjetivas, no contexto de conscientização do povo sobre a luta de classes, para a construção do socialismo com características chinesas.
Ele cita o Grande Salto Adiante, que abordou meios de produção; a Revolução Cultural, tratou da consciência de classe; a Reforma e Abertura, novamente meios de produção; até a China da Nova Era, com a retomada da consciência de classe, em um ciclo que se repete.
“Mao previa que de ciclos em ciclos a cultura socialista deve ser reavivada para manter o espírito revolucionário, defendendo o socialismo com características chinesas, angariando apoio público, promovendo uma nova geração de jovens, desenvolvendo a cultura chinesa e apresentando melhor a China ao mundo”, reflete Peneluppi.