CHINA EM FOCO | ESPECIAL CONGRESSO NACIONAL PCCH

Soft power: o poder brando da persuasão na lista de tarefas da China

Nos próximos cinco anos, o gigante asiático vai intensificar iniciativas para acelerar o desenvolvimento da cultura socialista com características chinesas e melhorar a sua imagem internacional por meio de produtos e intercâmbios culturais

Créditos: Xinhua - Xi Jinping e representantes da minoria étnica Kirgiz, no Museu da Região Autônoma Uigur de Xinjiang
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Todos os lares brasileiros devem ter, no mínimo, um produto industrializado ‘made in China’: roupas, calçados, eletroeletrônicos, brinquedos, utensílios etc. Já na lista de itens culturais, como filmes, séries e música, a cesta brasileira é escassa, quando não vazia, de produções chinesas.  

Segunda economia do mundo, a República Popular da China sabe dessa lacuna. Além de permanecer vigilante e ágil no complexo jogo da geopolítica global, com lances de impacto no comércio internacional e na segurança e soberania nacional, respostas a ameaças abertas e veladas e toda a sisudez do hard power, o gigante asiático não pode perder a ternura. Precisa melhorar a imagem global e o prestígio e o sucesso internacional por meio de um poder brando e de persuasão, o soft power.

A construção dessa imagem da China para o mundo está intrinsecamente associada à construção integral de um país socialista moderno e ao desenvolvimento da cultura socialista com características chinesas. Essa tarefa abraça a modernização e está ancorada no entendimento do que é cultura para o povo chinês.

“O aspecto cultural na China tem dois lados: é um elemento dinamizador da sociedade e também serve para unificar o país”, explica Alessandro Golombiewski Teixeira, professor de Economia e Políticas Públicas da Universidade de Tsinghua, em Pequim.

Além disso, ensina Teixeira, a cultura chinesa contempla três dimensões. A primeira é a do cidadão, com um conjunto de valores com viés ético do caráter dos indivíduos, civilidade, tradições familiares etc., que é determinante para a constituição da civilização chinesa. 

A segunda dimensão é de caráter público, que é formada pela troca heterogênea entre os grupos étnicos do país, patrimônios culturais e imateriais e saberes ancestrais como a Medicina Tradicional Chinesa. A terceira dimensão é a da indústria cultural e dos produtos culturais da China.       

O objetivo desse esforço da China em desenvolver a cultura socialista com características chinesas não é uma tarefa linear, mas com múltiplas camadas e bifurcações pelo caminho e é extremamente subjetiva. No país, fortalece a identidade chinesa, no exterior, melhora as vozes da China. 

Cultura no informe político de Xi Jinping

Essa é uma das tarefas elencadas pelo informe político do presidente Xi Jinping apresentado durante a abertura do 20o Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), realizada no último domingo (16), em Pequim.

Para o doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Diego Pautasso, que estuda sobre a China desde 2003, o país tem clareza sobre a importância de incrementar seu soft power. Ele aponta que qualquer especialista sabe que há um etnocentrismo, ou seja, uma análise de mundo a partir da própria realidade, e um anti comunismo histórico. 

Pautasso explica que a mudança de padrões culturais e percepções tem um tempo diferente da ascensão geoeconômica e geopolítica. Ele ressalta a necessidade de saber que o soft power não decorre apenas da promoção cultural e progride de maneira subliminar. 

“Ao passar de produtor de bens de ‘R$ 1,99’ para produtos de marca e qualidade, a imagem da China muda. Ao passar de país pobre para país rico; ao se tornar centro turístico, de negócios, estudos etc., forja outra imagem. Ao virar o maior parceiro comercial ou investidor também”, elenca o professor.

Todavia, observa, inegavelmente o domínio comunicacional é dos EUA e aliados. “Não é uma tarefa fácil lutar contra essa máquina. Essa é parte de uma gigantesca batalha pela liderança global”, finaliza.

Poder brando chinês na América Latina

“O aumento da influência suave de Pequim na América Latina é um dos eventos mais importantes da região nos últimos anos". Essa é a avaliação da diretora da Rede China e América Latina (Redcam), Pamela Aróstica. Ela deu a declaração durante entrevista à Rádio França Internacional (RFI), por ocasião do início desta edição do Congresso Nacional do PCCh, veiculada na segunda-feira (17).

Aróstica explicou que a presença e a influência da China por meio do soft power na região está se tornando um dos eventos mais importantes da história recente da América Latina. “Há um ponto de virada de 20 anos atrás até hoje. Mas esse fenômeno se intensificou fortemente nos últimos 10 anos. Isso ocorre em um contexto de maior luta entre China e Estados Unidos para se posicionar como superpotência”, pontuou.

A expansão cultural chinesa em território latino-americano não tem o objetivo de mudar a cultura local, mas sim de melhorar a percepção que o povo desses países tem em relação à China. Para isso têm sido firmadas cooperação em nível governamental, partidos políticos, organizações culturais, faculdades e universidades. 

“Também importante nesta influência suave é o papel desempenhado pelas comunidades chinesas instaladas nos diferentes países, que cresceram exponencialmente nos últimos 10 anos”, destaca Aróstica 

Um dos eixos fundamentais do soft power chinês são os Institutos Confúcio, programa lançado pelo Ministério da Educação do país em 2004 que integra uma rede internacional de mais de 500 unidades, presentes em 146 países com a missão de ensinar e promover o idioma e a cultura chinesa. Além de aprofundar as relações culturais com diferentes países. 

No Brasil, o Instituto Confúcio mantém parcerias com a Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e a Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Blockbuster e streaming

O audiovisual chinês tem conquistado espaço nos catálogos de plataformas de streaming de vídeo ocidentais, como a Netflix do Brasil, onde estão disponíveis produções como O Avanço da Fênix; Ombro Amigo; The Prince of Tennis – Match! Tennis Juniors, Day & Night; e Os Indomáveis.

Há um ano, em outubro de 2021, em apenas duas semanas, o longa-metragem The Battle at Lake Changjin (A Batalha do Lago Changjin, em tradução livre) desbancou produções de Hollywood e arrecadou cerca de U$ 633 milhões (R$ 3,4 bilhões) em bilheteria. Isso colocou a produção chinesa muito à frente do lucro global de Shang-Chi, que marcou US$ 402 milhões (R$ 2,1 bilhões), em apenas metade do tempo de exibição do longa da Marvel.

Soft Power como tarefa do PCCh 

O investimento em soft power pela China consta nas entrelinhas do Capítulo 8 do relatório do 19o Comitê Central do PCCh entregue ao congresso, sob o título “Promover a convicção e o fortalecimento da cultura e acrescentar novos esplendores à cultura socialista”. 

O tema foi abordado de forma específica no 14º Plano Quinquenal (2021-2025) para o Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Visão 2035 da República Popular da China. A Parte X desse documento, intitulada ‘Desenvolvimento Cultural Socialista e Soft Power da China', dedica, no Capítulo 35, ‘Serviços Culturais Públicos,’ a seção III, ‘Apelo internacional da cultura chinesa’, ao tema.

Na avaliação do advogado especializado em Administração Pública Chinesa Renato Peneluppi, a proposta visa fortalecer e resgatar o valor do PCCh e seu papel como instituição central do sistema político-administrativo da China, assim como a cultura e os valores socialistas. Essas tarefas serão realizadas na fase que se inicia na China da Nova Era. 

Peneluppi recorda uma citação do líder revolucionário Mao Zedong, em 1949, ano da vitória da Revolução de Libertação Popular."À medida que nossa economia cresce, nossa cultura também. Longe vão os tempos em que éramos considerados incivilizados, e ressurgiremos no mundo como uma cultura sofisticada e avançada."

A frase profética de Mao está presente no resgate iniciado nesta China da Nova Era, que passa a desenvolver uma sólida cultura socialista com características chinesas, que sirva de plataforma para a nação consolidar a própria identidade cultural rumo ao rejuvenescimento, à modernização e ao futuro.