CHINA EM FOCO

'Faça o que digo, não o que faço': EUA quer liberar bilhões para propaganda anti-China

Em Washington, Câmara de Representantes avança na criação de 'Fundo para Combater a Influência Maligna da República Popular da China'; Pequim classifica iniciativa como mentalidade de Guerra Fria e hipocrisia

Créditos: Canva - EUA sobe o tom na disputa contra a China
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A China passou a ser alvo de intensa campanha para ser contida pelos EUA, que acaba de aprovar um projeto de lei para "conter a influência maligna" da potência asiática mundo afora. Nos próximos cinco anos, caso a lei entre em vigor, Washington terá um fundo específico para financiar iniciativas que atinjam Pequim de mais de 1,6 bilhão de dólares (mais de 8 bilhões de reais).

No dia 9 de setembro, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou o projeto HR 1157, o chamado "Fundo para Combater a Influência Maligna da República Popular da China", com uma maioria bipartidária de 351 a 36 votos. A iniciativa integra o mega pacote da "Semana Anti-China" no Legislativo estadunidense.

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O projeto de lei autoriza o uso dessa bolada para subsidiar a mídia e fontes da sociedade civil em todo o mundo para combater a China globalmente.

Os recursos serão liberados para o Departamento de Estado e a USAID, agência que atua em países pobres sob a justificativa de "promover o desenvolvimento econômico e social, fortalecer a estabilidade, combater a pobreza, melhorar a saúde pública, promover a democracia e responder a crises humanitárias".

Mentalidade de Guerra Fria e hipocrisia

O governo chinês tem consistentemente criticado a possibilidade de criação e financiamento deste fundo anti-China. A China classifica essas medidas como um reflexo da mentalidade de Guerra Fria e uma tentativa dos EUA de conter seu desenvolvimento econômico e político.

Pequim afirma que Washington utiliza narrativas de desinformação para distorcer as intenções do governo chinês em questões de desenvolvimento e cooperação internacionais. Argumenta que esse tipo de medida aumenta as tensões e promove a desconfiança entre as nações, afetando a estabilidade global.

Além disso, o governo chinês alega que os EUA estão tentando justificar seus próprios esforços de interferência em assuntos internos de outros países por meio de campanhas de "influência maligna" sob o pretexto de defender a democracia e a transparência.

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A China considera que as ações dos EUA, incluindo o financiamento de campanhas globais anti-China, são baseadas em acusações infundadas e servem apenas para intensificar as tensões globais, prejudicando a cooperação internacional.

O governo chinês frequentemente critica essas políticas, afirmando que elas distorcem suas atividades econômicas e de desenvolvimento, especialmente em projetos como a Iniciativa do Cinturão e Rota.

A diplomacia chinesa também destaca a hipocrisia dos EUA ao financiar operações que influenciam a opinião pública global enquanto condena ações semelhantes de outros países.

Faça o que digo, não o que faço

Em artigo publicado no site Responsible Statecraft no dia 11 de setembro, Marcus Stanley, diretor do Instituto Quincy, think tank baseado nos EUA que se concentra em promover uma política externa daquele país baseada em diplomacia, diálogo e contenção militar, ressaltou a magnitude de recursos que Washington quer empenhar para conter a China.

Stanley comenta que o fundo anti-China representa um gasto enorme, que é cerca de duas vezes, por exemplo, o orçamento anual de operações da rede de tevê estadunidense CNN. Ele alerta que caso a proposta vire lei, vai representar um grande aumento nos gastos federais com operações de influência internacional.

Doutor em políticas públicas pela Universidade de Harvard, com foco em economia, antes de assumir o atual posto, Stanley passou uma década na Americans for Financial Reform (AFR), uma coalizão de organizações formada após a crise financeira de 2008 com o objetivo de promover reformas no sistema financeiro e defender os direitos dos consumidores.

Ele observa que, embora seja difícil calcular o total dos gastos com operações de influência dos EUA em várias agências, o principal órgão coordenador dos esforços de informação dos Estados Unidos, o Global Engagement Center (GEC) do Departamento de Estado, tem um orçamento anual de menos de 100 milhões de dólares.

Intitulado "House passes $1.6 billion to deliver anti-China propaganda overseas" ("Câmara aprova US$ 1,6 bilhão para promover propaganda anti-China no exterior", em tradução livre), o texto deixa à mostra o duplo padrão adotado por Washington, no melhor estilo "faça o que digo, não o que faço".

"Desde pelo menos 2016, a interferência estrangeira nas eleições e na sociedade civil estadunidenses tornou-se um tema central no discurso político dos EUA. O governo dos Estados Unidos leva essa questão muito a sério, tendo imposto sanções e denunciado adversários estrangeiros por semear "discórdia e caos" por meio de seus esforços de propaganda", escreveu.

O que aconteceu em 2016?

As eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016 ficaram marcadas por diversas polêmicas envolvendo interferência estrangeira, principalmente em relação à Rússia. Algumas ações geraram um grande debate nos EUA sobre segurança eleitoral, integridade democrática e a influência de potências estrangeiras na política interna do país.

O Comitê Nacional Democrata (DNC) e a campanha de Hillary Clinton foram alvos de hackers que, segundo investigações, estariam ligados a grupos apoiados pela inteligência russa. Esses hackers obtiveram e-mails internos e os divulgaram por meio do WikiLeaks, causando embaraço para a campanha democrata. A revelação dos e-mails foi vista como uma tentativa de prejudicar Clinton e ajudar a campanha de Donald Trump.

A Agência de Pesquisa da Internet (IRA), ligada ao governo russo, foi acusada de usar redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram para espalhar desinformação, influenciar o eleitorado e criar divisões na sociedade dos EUA. Perfis falsos e bots foram utilizados para promover mensagens polarizadoras e favorecer Trump. Essas campanhas incluíram tanto postagens positivas para Trump quanto esforços para enfraquecer a confiança em Clinton.

Vários membros da campanha de Donald Trump, incluindo seu ex-assessor de segurança nacional Michael Flynn e seu ex-gerente de campanha Paul Manafort, enfrentaram investigações por supostos vínculos com figuras próximas ao governo russo. As investigações procuraram determinar se houve conluio entre a campanha de Trump e a Rússia para influenciar as eleições.

Embora o Relatório Mueller, resultante da investigação liderada pelo conselheiro especial Robert Mueller, não tenha encontrado provas conclusivas de conluio direto, ele documentou várias interações suspeitas e ressaltou os esforços russos para ajudar Trump.

Agências de inteligência dos EUA, incluindo a CIA, NSA e FBI, concluíram em relatórios de janeiro de 2017 que a Rússia tentou influenciar as eleições de 2016, favorecendo explicitamente a candidatura de Donald Trump. O relatório conjunto indicou que o presidente russo Vladimir Putin teria ordenado a interferência.

Resposta de Washington contra Moscou

Após as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016, o governo dos EUA impôs uma série de sanções à Rússia devido à interferência nas eleições e outras atividades relacionadas à cibersegurança e à violação de normas internacionais.

Em dezembro de 2016, o então presidente Barack Obama ordenou a expulsão de 35 diplomatas russos dos EUA, acusando-os de serem agentes de inteligência envolvidos na interferência eleitoral.

Como parte das sanções, os EUA também fecharam dois complexos russos em Nova York e Maryland, alegando que eram usados para atividades de espionagem.

 Em 2017, o Congresso aprovou a Lei de Sanções Contra Adversários da América Através de Sanções (CAATSA), que estabeleceu sanções adicionais contra setores econômicos importantes da Rússia, como energia, defesa e finanças. Essa lei restringiu o acesso da Rússia a mercados internacionais de capital e tecnologias críticas.

Vários indivíduos e entidades russas, incluindo oficiais do governo e empresas ligadas ao Kremlin, foram alvo de sanções que congelaram seus ativos nos EUA e lhes impediram de entrar no país. Essas medidas se expandiram ao longo dos anos seguintes, com base nas descobertas da investigação liderada por Robert Mueller.

Em 2018, os EUA impuseram mais sanções à Rússia em resposta aos ataques cibernéticos relacionados às eleições de 2016, incluindo restrições à exportação de tecnologias sensíveis para a Rússia.

Essas sanções têm sido renovadas e ampliadas por diferentes administrações presidenciais desde então, com a Rússia sendo acusada de continuar suas campanhas de desinformação e ciberataques contra as democracias ocidentais.

Contra a China pode?

Curiosamente, quando a Rússia realiza campanhas de desinformação contra os EUA, é considerado crime, mas operações de "boas informações" são vistas como legítimas quando visam desacreditar as iniciativas da Nova Rota da Seda da China no mundo.

O poderoso fundo anti-China, caso saia do papel, vai representar um grande aumento nas operações de influência internacional dos EUA. Embora seja legítimo que os EUA - assim como qualquer outro país, como China, Rússia, Brasil, Índia, Venezuela, Nicarágua, Cuba etc., apresente sua visão sobre as ações de outras nações, essa proposta de Washington pode ser chamada de indecente.

Para conter a "influência maligna" chinesa mundo afora, os políticos dos EUA querem patrocinar mídias "independentes" e operações de informação em outros países contra a China. Não há, no entanto, exigência de que o financiamento estadunidense seja transparente para os cidadãos desses países, o que levanta preocupações sobre a transparência e as consequências dessas campanhas.

Essas operações podem focar em destacar os impactos negativos dos investimentos chineses em infraestrutura e economia em países estrangeiros, visando projetos da Iniciativa Cinturão e Rota. Além disso, há o risco de que essa propaganda financiada pelos EUA possa influenciar o debate interno no próprio território, sem que o público saiba sua verdadeira origem.

O avanço deste polêmico projeto reflete uma cultura em Washington que não reconhece os riscos para os valores e interesses do país ao engajar-se nas mesmas atividades que critica em outros países. Faça o que digo, não o que faço.

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