CHINA EM FOCO

China e América Latina colocam Sul Global no centro do debate sobre direitos humanos

Primeira Mesa Redonda sobre Direitos Humanos entre China e Estados da América Latina e Caribe, realizada no Rio de Janeiro, gerou novas discussões sobre o tema

Reitores da UFF e da Universidade Renmin da China assinam relatório final do evento.Créditos: Júlia Motta
Escrito en GLOBAL el

Primeira Mesa Redonda sobre Direitos Humanos entre a China e os Estados Da América Latina e do Caribe foi realizada nesta terça-feira (10), no Rio de Janeiro. Com o tema  "Diversidade de Civilização e a Escolha do Caminho para a Realização dos Direitos Humanos", o evento foi organizado pela Sociedade Chinesa de Estudos sobre Direitos Humanos (CSHRS, sigla em inglês), em colaboração com a Universidade Renmin da China (RUC, sigla em inglês) e a Universidade Federal Fluminense (UFF).

O evento contou com a presença de mais de 120 altos funcionários do governo chinês, especialistas e acadêmicos na área de direitos humanos da China, países da América Latina e do Caribe, além de representantes de organizações sociais relevantes, think tanks e mídia.

Em entrevista à Fórum, especialistas brasileiros falaram sobre a importância da realização de um evento deste porte e sobre as expectativas para as próximas ações entre os países do Sul Global

Evandro Carvalho, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), apontou que um dos pontos mais significativos do evento é sua realização através da parceria entre a UFF e a Universidade Renmin da China. Para ele, isso demonstra uma disposição institucional e acadêmica para iniciar um diálogo sobre os direitos humanos. 

"A gente precisa abrir os braços para conversar com a China porque ela tem muito a nos ensinar, assim como a gente também tem. Todos os países têm os seus problemas e todos os países têm suas soluções. Esse encontro pode justamente ser um passo significativo para que a gente possa, como países do sul global, estreitar o diálogo sobre desenvolvimento".

Para Manoel Moraes, titular da Cátedra Unesco/Unicap Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, a importância está na realização, pela primeira vez, de um evento que pauta os direitos humanos dentro da transição de um mundo monopolar. "Aquela polaridade entre os Estados Unidos e a Rússia no passado agora está caminhando para um mundo multipolar e, nessa perspectiva, cabe à China um papel de protagonista", diz Moraes, que também é coordenador geral do Centro de Estudos e Ação Social Dom Helder Câmara (Cendhec).

Paulo Abrão, ex-Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH), afirma que o encontro  estabelece a oportunidade de um diálogo intercultural entre a China e os países da América Latina e Caribe. 

"Esse evento tem a importância de aproximar culturas que vão permitir com que nós nos identifiquemos em valores comuns que possam vir a ser transformados em direitos assegurados para as populações e os povos dessas diferentes civilizações. É um exercício dialógico entre culturas, que é a base da construção dos direitos humanos", afirma Abrão, que também é ex-secretário de Justiça do Brasil. 

Abrão ainda acrescenta que, historicamente, o Brasil tem um déficit muito grave de reconhecimento da cultura oriental, de compreender o processo de formação histórica da cultura oriental dentro do mundo ocidental. "O que é muito limitador para que a gente possa identificar novos direitos que sejam condizentes às novas realidades e desafios que a sociedade vive atualmente", diz. 

Retomada do diálogo sobre direitos humanos no Brasil 

Paulo Abrão durante discurso na Primeira Mesa Redonda sobre Direitos Humanos entre a China e os Estados Da América Latina e do Caribe.

Durante o governo de extrema direita do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a pauta dos direitos humanos foi destruída durante um curto período de tempo. Apesar da retomada do debate após as eleições de 2022, o tema ainda encontra grandes desafios na sociedade. 

Para Abrão, houve uma contaminação ideológica da política pela agenda dos direitos humanos como se ela fosse um elemento divisor da nossa sociedade. Diferentemente das décadas de 1980 e 1990, hoje não há mais um  um consenso de nação e de afirmação de direitos humanos, de acordo com o jurista. Porém, ao invés de abandonar a pauta, ele defende que é preciso reforçá-la para mostrar que ela é a única linguagem possível de convivência social"

"Nós precisamos virar a chave em relação a esse conceito e voltar a entender os direitos humanos como uma base comum de diálogo, independentemente das nossas diferenças políticas ou ideológicas. Não utilizar os direitos humanos como a afirmação dessas diferenças. Esse é um desafio que está colocado nesse aspecto conjuntural".

Ensinamentos China-Brasil

Qi Yanping, professor do Instituto de Tecnologia de Pequim.

Para Evandro Carvalho, um dos principais ensinamentos da China é o estado como indutor de um desenvolvimento sistêmico centrado na população. Ele cita, por exemplo, a infraestrutura de mobilidade da China, que é pensada para integrar todo o país e permitir que as pessoas morem onde quiserem e ainda assim circulem pelo território. 

"O estado realmente cria condições para que as pessoas possam se desenvolver e esse é um ponto que eu acho central no debate sobre direitos humanos", afirma o professor. 

A primeira edição do evento ocorre em meio a um cenário em que os Estados Unidos travam uma guerra cultural contra a China em relação aos direitos humanos. Sobre isso, Evandro afirma que o país norte-americano, hoje, não está em posição de se colocar como o grande porta-voz em defesa dos direitos humanos. 

"Os Estados Unidos têm um histórico de promoção de guerra, de estar contra a resolução na ONU que abra um diálogo para negociação de paz entre Rússia e Ucrânia, de apoiar um massacre que está sendo feito na Palestina, e persistir no embargo contra um povo cubano completamente indefeso. Então, eles não estão em condições de falar que são os porta-vozes e os árbitros maiores do mundo para falar sobre direitos humanos", afirma o professor. 

"E aí quando a gente olha pra China é o seguinte: é um país que não faz guerra histórica há muito tempo, que no âmbito das relações internacionais tem uma agenda comprometida com a paz, que tem mantido relações com os países, sobretudo os países em desenvolvimento, com bases mais igualitárias e respeito à soberania", completa. 

Wilson Madeira, professor da Faculdade de Direito da UFF e integrante do Centro de Justiça Ambiental, afirma que os direitos humanos na perspectiva chinesa têm uma atribuição coletiva, diferentemente do Brasil, onde o tema ficou centrado no direito individual. Para ele, esse é um dos principais pontos de aprendizado. "Se a gente ligar os direitos humanos ao progresso coletivo, a gente também está combatendo a desigualdade".

"Se a gente trouxer o exemplo chinês para o Brasil, a gente vai pensar num direito humano que vai estar aliado à população de favela, que vai estar antenado à questão dos povos indígenas, que estará ligado à questão racial e toda a desigualdade estrutural e social do país. Esses são pontos comuns que trazemos à tona nesse importante debate", afirma o professor. 

Expectativas futuras

Ao final do evento, foi lançado um relatório sobre as discussões nas três palestras paralelas que ocorreram com os temas: "Contribuições da China e dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos para a Civilização dos Direitos Humanos"; "Realização do Direito ao Desenvolvimento e Gozo dos Direitos Humanos Fundamentais" e "Desafios e Soluções Atuais para a Governança Global dos Direitos Humanos".

O documento foi assinado pela diretora da Faculdade de Direito da UFF, Fernanda Pontes Pimentel, e pelo diretor do Instituto ChongYang de Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China, Wang Wen. O reitor chinês reforçou que o evento foi histórico ao propor que os próprios países do Sul-Global pudessem debater a o tema de direitos humanos. "Fizemos história ao colocar nossa própria voz ao falar sobre a situação dos direitos humanos. Nós temos que tomar essa iniciativa e essa é uma conquista do evento de hoje. Criamos história sobre os direitos humanos para nós do Sul Global", declarou.

Siga o perfil da Revista Fórum e da jornalista Júlia Motta no Bluesky.