Uma ação que chocou o mundo pela brutalidade com que vitimou milhares de pessoas indiscriminadamente, entre ‘combatentes’ e civis, usando um método que nem as produções exageradas de Hollywood criariam, é muito mais surreal do que se pode imaginar. O caso dos pagers e walkie-talkies explodidos por Israel na Líbano, que resultou em pelo menos 40 mortos e aproximadamente quatro mil feridos, foi algo muito, mas muito mais complexo do que aquilo dito agora.
A versão até então veiculada era a de que agentes do Mossad, a agência de inteligência israelense, teriam conseguido colocar uma pequena carga explosiva, entre 20 e 50 gramas, embutida na própria bateria, em cada um dos milhares de dispositivos arcaicos utilizados pelos integrantes do grupo Hezbollah. Os aparelhos teriam então chegado ao Líbano e sido distribuídos a seus usuários. A certa altura, por ordem do governo do primeiro-ministro de extrema direita Benjamin Netanyahu, os detonadores remotos foram acionados e as pessoas saíram explodindo junto com os ‘bips’ e rádios comunicadores. Só que a coisa foi bem além disso.
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Depois de uma sucessão de assassinatos seletivos de integrantes da alta cúpula do Hezbollah, que começou em 2020, sempre utilizando tecnologia moderníssima, como drones que fazem uso de inteligência artificial e outros dispositivos acionados remotamente via satélite, os dirigentes do grupo islâmico começaram a encucar com o uso de celulares, uma vez que esses aparelhos são facilmente rastreados e podem ser interceptados com os mecanismos ultramodernos utilizados por Israel. Há pouco menos de dois anos, a direção do Hezbollah, que já vinha utilizando pagers, resolveu que este dispositivo obsoleto e fora de moda, além de limitado, seria a melhor forma de se comunicar sem riscos, optando pela aquisição em massa deles.
Acontece que mesmo antes do Hezbollah determinar a implantação dos antigos ‘bips’ como principal mecanismo de comunicação do grupo, quando apenas alguns dirigentes o utilizavam, o Mossad percebeu que tal decisão era uma questão de tempo, e se antecipou. A inteligência israelense montou, então, uma empresa de fachada na Hungria e entrou em contato com a companhia taiwanesa Gold Apollo, que fabrica os pagers, manifestando interesse em produzir os aparelhos naquele país europeu do Leste, como se fosse uma representante autorizada a montar, embalar, vender e distribuir os dispositivos. Tudo, claro, se passando por empreendedores de verdade.
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Foi uma questão de meses para que o Hezbollah decidisse por implantar os pagers para todos e saísse procurando uma empresa capaz de fornecê-los. Quanto mais perto, melhor, até porque o frete ficaria mais barato e os custos, em geral, reduzidos. A tal B.A.C. Consulting, sediada em solo húngaro, de fato produzia pager e os vendia para clientes de verdade, pessoas e firmas comuns, mas era apenas um disfarce dos serviços de inteligência israelenses, que por fim conseguiram os contratos com o Hezbollah para produzir e enviar milhares de ‘bips’.
A B.A.C Consulting, que na verdade era uma farsa muito realista do Mossad, conseguiu também contratos para enviar walkie-talkies para a facção árabe sediada no Líbano. A partir daí, foi só os especialistas em explosivos da máquina de guerra de Israel confeccionarem as baterias explosivas e as implantarem nos aparelhinhos, assim como escutas ambientais. Era verão no hemisfério norte, ainda em 2022, portanto há dois anos, quando a B.A.C. Consulting (leia-se Mossad) passou a despachar os ‘bips’ com baterias recheadas de PETN, um perigoso componente explosivo, direto para o porto de Beirute.
Como também conheciam tudo sobre a rede de radiofrequência em que os pagers funcionavam, assim como os walkie-talkies, os Israelenses poderiam interferir na comunicação dos dispositivos. E foi isso que fizeram nos últimos dias, após a decisão do gabinete de Netanyahu de que chegara a hora de detonar os aparelhos. Os comandos foram remotos e diretamente realizados pelo próprio sistema das máquinas.
No caso dos pagers, uma mensagem como sendo de autoria da alta cúpula do Hezbollah foi emitida para todos os usuários, com um sinal de alerta sono diferente. Era justamente para gerar curiosidade e fazer com que o dono do aparelho fosse às pressas ver o que se passava. Transcorridos alguns segundos, suficientes para que o usuário tomasse o ‘bip’ nas mãos para ler a mensagem, as explosões ocorreram. Quem estava com ele na cintura e não o retirou para ler, teve a região da bacia destroçada pela detonação.
À direção do Hezbollah coube admitir a eficiência da ação do inimigo, que pegou todos de surpresa, e prometer que tal ousadia não passaria em branco. Do lado de Israel, após a implantação de um esquema tão sofisticado e inacreditável, a grande perda foi a das escutas, que diariamente alimentavam as agências de inteligência do país, mas que acabaram indo pelos ares quando os pagers e walkie-talkies explodiram.