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Relações Brasil-EUA completam 200 anos com a extrema direita ensaiando retorno à Casa Branca

Fórum entrevista o professor Virgílio Arraes, especialista em história americana da UnB, que faz uma análise do momento político; Confira também a história das relações entre os países

Lula e Biden / Trump e Bolsonaro.Créditos: Ricardo Stuckert/PR e Alan Santos/PR
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As relações entre Brasil e Estados completam 200 anos neste domingo, 26 de maio. Foi nessa data, em 1824, que o país da América do Norte reconheceu a nossa independência em relação a Portugal e as relações entre as nações começaram oficialmente. Naquele momento, reconhecer as independências das nações do continente americano era a principal diretriz da política externa dos EUA, que já tinham planos de se tornar uma potência e tentavam diminuir a influência europeia no “Novo Mundo”.

Ao longo do século XIX as relações entre os países foram cordiais, justamente por conta desses interesses geopolíticos dos EUA. No entanto, a partir do século XX, o caráter predatório dessas relações se exacerbaria com a ascensão dos EUA como potência global e o papel do Brasil como nação subalterna. Os episódios centrais nessa história são a Segunda Guerra Mundial e o Golpe de 1964.

Ao longo do século XXI, o Brasil conseguiu um maior respeito do vizinho do norte, colocando-se como um apoiador tácito da sua guerra ao terrorismo e, em contrapartida liderando a missão das Nações Unidas no Haiti. Nesse período a China se consolidou como a principal parceira econômica do Brasil, mas os EUA figuram logo atrás. Houve, é verdade, os escândalos de espionagem da NSA a partir de 2013, mas as relações diplomáticas e comerciais entre os países sempre foram marcadas pelo pragmatismo, mesmo com a ascensão de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro que tentaram manipular essas relações de acordo com seus interesses políticos.

Neste 2024, os EUA terão novas eleições e o líder da extrema direita americana aparece como favorito a vencer o pleito. Sobre a possibilidade disso afetar as relações entre os dois países entrevistamos um especialista no assunto, o professor Virgílio Arraes, pós-doutor em História pela Universitè de Montréal e professor da Universidade de Brasília.

“Independentemente da agremiação vitoriosa em novembro próximo, democrata ou republicana, o norte à direita permanecerá, em especial na política externa, haja vista a postura atual da Casa Branca com o Oriente Médio, por exemplo. Dada a frustração de parte do eleitorado próximo do Partido Democrata com Joe Biden no campo social, a vitória de Donald Trump assoma no horizonte, em função da possibilidade de abstenção eleitoral, mas não da conversão do voto”, avalia o professor.

Virgílio Arraes. Reprodução/TV Brasil

Ao longo da entrevista, Arraes destaca momentos históricos desses 200 anos de relações entre os países e aponta as correlações entre os campos democrático e neoliberal de lá e daqui.

“Caso Trump retorne à Casa Branca, a tendência seria a de tentar retribuir o apoio, ao prestigiar em atividades partidárias e não governamentais da ultradireita local – a identificação entre os dois governantes era tamanha em 2020 que o Planalto menosprezou o protocolo diplomático, ao demorar a cumprimentar Biden como vencedor do pleito. Fora da esfera ideológica, o relacionamento entre os dois países deve ser mantido sem alterações significativas, uma vez que a política de Estado sobrepõe à de governo, a não ser que o Brasil dê uma guinada radical a governos manifestamente contrários a interesses norte-americanos. Até o momento, nada indica que o Planalto possa de fato fazer isso, salvo na retórica”, afirma.

Leia a entrevista na íntegra a seguir

Fórum - Neste 26 de maio completam-se 200 anos das relações entre Brasil e EUA. Quais os seus destaques a respeito dessa história e de como chegamos a esses dois séculos?

Virgilio Arraes - Os contatos iniciais entre brasileiros – ainda súditos portugueses - e norte-americanos surgem ainda no período colonial, quando da tentativa de independência em 1789 a partir de Minas Gerais. A ideia de república assomava no horizonte como um dos pontos altos da contemporaneidade, ou seja, do novo regime.

A diferença de regime não impediria, no entanto, a proximidade comercial entre a república estadunidense e o império luso, depois luso-brasileiro, e por fim apenas brasileiro até 1889. Com a derrubada da monarquia, a referência aos Estados Unidos seria maior: basta verificar o nome do país – Estados Unidos do Brasil, nome mantido até os primeiros anos da ditadura militar.

Há no século XX períodos de aproximação e de distanciamento, mas não de rompimento: durante os anos 30, a ditadura de Vargas cortejava a extrema direita na Europa; na década seguinte, a bajulação seria intensa, apesar de não haver reciprocidade; nos anos 50, houve momentos de tensão com Vargas e com Kubitschek;

No decênio seguinte, a discordância resultaria no apoio – naquele momento, aparentemente velado – ao golpe de abril de 1964; na década de 70, a política externa de Jimmy Carter, democrata, entraria em choque com o Brasil por causa da constante violação de direitos humanos. Nos anos 80, ditaduras castrenses na América do Sul não atraíam a mesma simpatia da Casa Branca de anos antes, uma vez que a luta contra a ‘subversão’ e contra o ‘comunismo’ tinha importância menor.

Na década de 90, sem a rivalidade amero-soviética, o neoliberalismo, mesmo de maneira envergonhada, seria subscrito pela esquerda moderada em todo o mundo, a despeito do rótulo: social-democrata, socialista, trabalhista, verde etc. Nos anos seguintes, apesar do reconhecido malogro social do neoliberalismo, ele continua sendo adotado, mesmo em ritmo menos acelerado.

Não há reversão de privatizações de setores estratégicos, saúde e educação são considerados produtos de mercado, políticas sociais não alteram a estrutura da desigualdade, a formação de uniões regionais ou continentais não avança a não ser na parte econômica, a política energética é tratada de modo contábil, não como fator de desenvolvimento amplo etc.

Há pontos de divergência entre os dois países de caráter circunstancial nas relações internacionais como no Oriente Médio, leste da Europa ou Caribe. No entanto, eles não se tornam permanentes ou corrosivos na bilateralidade cotidiana, haja vista a concentração na economia.

Fórum - Quais as expectativas para as eleições dos EUA que ocorrem no final do ano?

Virgílio Arraes - Independentemente da agremiação vitoriosa em novembro próximo, democrata ou republicana, o norte à direita permanecerá, em especial na política externa, haja vista a postura atual da Casa Branca com o Oriente Médio, por exemplo.

Dada a frustração de parte do eleitorado próximo do Partido Democrata com Joe Biden no campo social, a vitória de Donald Trump assoma no horizonte, em função da possibilidade de abstenção eleitoral, mas não da conversão do voto.

Todavia, isso seria suficiente para assegurar o retorno de um conservadorismo ainda maior no poder. Embora a taxa de desemprego esteja baixa, uma vez que a meses ela se encontra abaixo dos 4%, inflação situa-se em torno de 3,5%, com índices menores em alimentação e energia. Apesar disso, a concentração de riqueza amplia-se sem interrupção de modo que indicadores circunstanciais positivos não trazem consigo benefícios significativos à maioria da população.

Nos últimos anos, em três décadas (1993 a 2023), a riqueza de 0,1% da população aumentou quase oito vezes ao passo que a da metade do povo reajustou-se apenas metade. Os dados são do Federal Reserve.

Portanto, a concentração segue inexorável com reflexos eleitorais, ao beneficiar a cada ciclo quatrienal a candidatura com maior capacidade de encantar ou iludir o eleitorado mais desassistido e desanimado, em especial o de maior faixa etária. Assim, a oposição favorece-se no momento, a despeito de seu candidato já ter sido presidente e não ter interrompido a marcha de empobrecimento da sociedade.

Fórum - Quais os efeitos que uma eventual vitória de Trump pode ter nas relações dos EUA com um Brasil hoje governado por Lula?

Virgílio Arraes - O sistema partidário brasileiro aproxima-se do norte-americano desde os anos noventa, ainda que não se iguale a ele. Lá, a divisão exprime-se de maneira sintética por dois grandes partidos de século e meio de existência. Lá, a terceira via, quando cresce, é efêmera; aqui, expressa-se por dois blocos de maior realce, embora mais fluidos, em função da própria constituição.

Até 2002, desconsiderada a retórica, mas valorizada a prática, a coligação tucana se identificava com os democratas; a datar de então, a aliança petista a substituiria. Os republicanos, em seu crescente extremismo no século XXI, não tinham correspondência com um partido ou coalização de ultradireita de peso no Brasil. Isso se altera com a eleição de 2018 no país.

Assim, caso Trump retorne à Casa Branca, a tendência seria a de tentar retribuir o apoio, ao prestigiar em atividades partidárias, não governamentais, a ultradireita local – a identificação entre os dois governantes era tamanha em 2020 que o Planalto menosprezou o protocolo diplomático, ao demorar a cumprimentar Biden como vencedor do pleito.

Fora da esfera ideológica, o relacionamento entre os dois países deve ser mantido sem alterações significativas, uma vez que a política de Estado sobrepõe à de governo, a não ser que o Brasil dê uma guinada radical a governos manifestamente contrários a interesses norte-americanos. Até o momento, nada indica que o Planalto possa de fato fazer isso, salvo na retórica.

Fórum - Uma eventual Casa Branca com a extrema direita pode dar guarida aos devaneios bolsonaristas?

Virgílio Arraes - No imaginário da ultradireita, sim; em especial, no segmento mais fervoroso. Todavia, a política externa estadunidense caracteriza-se por pragmatismo, não por idealismo - a aproximação com a União Soviética nos anos 1940, com a China nos anos 1970 e com a Santa Sé nos anos 1980 são exemplos marcantes.

Setores do Partido Republicano poderiam aproximar-se da ultradireita brasileira, mas a Casa Branca adotará a cautela, a fim de que seus interesses e os de suas corporações não sejam prejudicados no âmbito federal – basta conferir a balança comercial bilateral que tem sido favorável aos norte-americanos nos últimos anos.

Assim, a ultradireita brasileira teria de se valer de estados ou de municípios de grande porte onde administra com o propósito de contar com uma ocasional simpatia de uma Casa Branca republicana, concentrada no dia a dia nas parcerias econômicas, não ideológicas.

Confira destaques dos 200 anos de relações Brasil-EUA

Pré-história

Antes de 1824, quando a família real portuguesa desembarcou no Brasil em 1808, e promoveu a transferência da corte para cá, os vizinhos do norte puderam pela primeira vez trazer suas embarcações comerciais ao território que hoje conhecemos como Brasil. No período anterior nossos portos só estavam abertos a Portugal por conta da condição de colônia a que estávamos submetidos.

Ainda no contexto de pré-história das relações entre os países, os EUA foram a primeira nação a estabelecer uma representação diplomática em nosso território. O consulado americano foi aberto em 1815 na cidade do Recife, à época capital da Capitania de Pernambuco.

Século XIX e começo do XX

Em 1890 ocorreu a primeira Conferência Pan-Americana, que contou com a participação de ambos os países e discutiu uma série de temas pertinentes à integração regional, desde cooperação militar até planos econômicos, como uma espécie de união aduaneira.

O caráter mais predatório e neocolonial dessas relações seria mais notado a partir do século XX, após o estabelecimento da chamada “Aliança não escrita” que demarcou um relacionamento mais cordial e aproximado entre os dois países.

Anos mais tarde, na década de 1920 o Brasil já era noticiado pela imprensa dos EUA, sobretudo o Wall Street Journal, como um dos melhores países do mundo para se investir e explorar. O Brasil então passaria a ser visto como um território propício para a testagem de métodos de desenvolvimento da indústria e do próprio capitalismo desde que, é claro, estivesse alinhado ao país da América do Norte. E foi a partir daí que começaram os problemas pra valer, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial e no golpe de 1964.

Segunda Guerra Mundial

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Brasil já era conhecido como um grande aliado dos EUA, o que explica termos nos juntado aos Aliados ao invés do Eixo, mesmo com um governo Vargas que em muitos aspectos demonstrava afinidades com os fascismos europeus – haja vista, por exemplo, o episódio em que Olga Benário, uma comunista judia, foi entregue aos alemães em 1936.

Naquele momento, o Brasil tinha um importante papel na economia mundial da guerra com a produção da borracha oriunda da Amazônia e os EUA tinham um plano para nos invadir, o chamado Plan Rubber (Plano Borracha), caso não os acompanhássemos no conflito. Após anos conseguindo manter a neutralidade, declaramos guerra ao Eixo em 1942, e os EUA então enviaram uma ajuda de 100 milhões de dólares por meio do programa Lend-Lease para financiar as forças que viajariam para a Europa.

No mesmo ano foi criada a Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos que enfraqueceu eventuais ataques alemães nas vias marítimas que eram ocupadas por mercadorias e pelo transporte de tropas. Em seguida os Pracinhas lutaram na Itália e a guerra, como um todo, foi vencida pelos Aliados.

Golpe de 1964

Os EUA nunca admitiram oficialmente o apoio ao golpe de Estado que inviabilizou o Brasil por mais 20 anos ao colocar os militares no poder. No entanto, sobram trabalhos acadêmicos e jornalísticos que mostram o quanto os EUA facilitaram o golpe e apoiaram o regime ao longo do seu período, no contexto da Guerra Fria.

De acordo com documentos secretos revelados em 2004 ficou comprovado o apoio silencioso que deram aos militares golpistas com o envio de armas e outras formas de apoio.

“Eu acho que devemos tomar todas as medidas que pudermos e estarmos preparados para fazermos tudo o que podemos fazer”, disse o então presidente americano Lyndon Johnson aos seus servidores que estavam por aqui. Lincoln Gordon, o principal agente dos EUA que ajudou na articulação do golpe, temia que as reformas propostas pelo presidente brasileiro João Goulart transformassem o Brasil numa ‘nova China’.

Ao longo da ditadura, que acabaria em 1985, o apoio dos EUA ao regime foi unilateral e jamais insinuou que os militares exerciam uma ditadura. Com o fim desse período, os EUA rapidamente reconheceram a nova democracia brasileira. Mas àquela altura já seríamos completamente dependentes economicamente e culturalmente dos EUA, substituindo a relação colonialista com Portugal e Inglaterra do século anterior.

Século XXI e a espionagem da NSA

O século XXI já começou agitado, com o ataque às Torres Gêmeas de Nova York em 11 de setembro de 2001. Após o episódio o Brasil foi o primeiro país a propor a retomada do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, ou Tratado do Rio, que coloca que um ataque a um país signatário significa um ataque a todos esses países. No entanto, sob Fernando Henrique Cardoso e logo em seguida sob Lula, o Brasil soube negociar o não envolvimento militar na chamada Guerra ao Terror, que resultou nas invasões do Afeganistão e do Iraque. Lula, inclusive, foi um forte opositor da invasão do Iraque promovida por George W. Bush.

Mas apesar das diferenças de opinião dos mandatários, as relações entre os países nunca foi considerada ruim e uma série de viagens dos chefes de Estado – Lula e Bush – reafirmaram a amizade entre os países. Em 2004 o Brasil lideraria a Minustah – controversa força de paz da ONU no Haiti. Em 2007 seria assinado o Acordo de Camp David, que promovia a produção e o comércio do etanol brasileiro. E mais tarde, em 2009, o recém-eleito Barack Obama teceu uma série de elogios ao Brasil e ao presidente Lula.

Mas em 2011 essa relação estaria estremecida pela primeira vez. Documentos revelados pelo WikiLeaks de Julian Assange revelaram tentativas dos EUA de impedir o desenvolvimento do programa espacial brasileiro, pressionando países como a Ucrânia a não transferir tecnologia espacial ao Brasil. Os EUA também se opuseram ao uso do Centro de Lançamento de Alcântara pelo Brasil para lançar satélites que incluíam componentes americanos, como parte de uma política de longa data contra o programa de foguetes espaciais do Brasil.

Dois anos depois, em julho de 2013, o jornalista Glenn Greenwald escreveu uma série de artigos para o jornal O Globo em que revelou que autoridades brasileiras, incluindo a então presidenta Dilma Rousseff, teriam sido vigiadas pela NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA.

A descoberta – feita por meio de documentos vazados por Edward Snowden - levou Dilma a convocar uma reunião de emergência e o embaixador americano no Brasil a dar explicações. O Brasil denunciou publicamente a espionagem como uma violação de sua soberania e cancelou os preparativos de uma visita de Estado aos EUA. A tensão escalou, resultando em Rousseff abordando o assunto diretamente com Obama no G20 e mais tarde condenando a prática de espionagem na Assembleia Geral da ONU. Mesmo após as revelações, reportagens indicaram que a espionagem continuou.