"DEMOCRACIA NEOLIBERAL"

Coreia do Sul: entenda o papel de Washington no golpe em curso

País onde o presidente golpista é uma versão local de Sergio Moro abriga a maior base militar dos EUA fora do seu território

Joe Biden e Yoon Suk-yeol.Presidentes dos EUA, Joe Biden, e da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol, representam uma relação estreita e alinhada aos interesses de Washington desde a Guerra Fria.Créditos: Governo da Coreia do Sul
Escrito en GLOBAL el

Está em curso um golpe de Estado na Coreia do Sul, deflagrado na madrugada desta terça-feira (3). O presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol declarou lei marcial no país, justificando a medida como necessária para proteger a ordem constitucional e combater supostas ameaças de forças comunistas pró-Coreia do Norte. O anúncio foi feito em um discurso transmitido ao vivo pela emissora YTN.

LEIA TAMBÉM: Golpe militar na Coreia do Sul: tanques nas ruas e lei marcial em aliança da direita com militares

O decreto de lei marcial entrou em vigor às 23h (horário local), resultando no fechamento do complexo da Assembleia Nacional e na imposição de censura aos meios de comunicação. Forças militares assumiram o controle do parlamento, enfrentando resistência de assessores.

"Sérgio Moro" da Coreia do Sul

Yoon, líder do golpe de Estado na Coreia do Sul, é frequentemente comparado a Sergio Moro, ex-juiz brasileiro, ex-ministro do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro e atual senador da República pelo União Brasil do Paraná, devido a suas transições do judiciário para a política.

Ambos ganharam notoriedade em investigações de combate à corrupção, com Yoon atuando como procurador-geral sul-coreano e Moro como juiz da Lava Jato. Suas carreiras políticas são marcadas por discursos polarizadores e acusações de viés e seletividade.

Enquanto Yoon, descrito como adepto do "K-Trumpismo", se posicionou como salvador contra a corrupção, Moro seguiu trajetória semelhante no Brasil, prometendo "limpar a política". Apesar de suas vitórias eleitorais, ambos enfrentam críticas por suas conexões políticas com a extrema direita e a politização da justiça.

Cai a máscara da "democracia neoliberal"

A despeito dessa crise interna e de alarmantes contradições, a Coreia do Sul é frequentemente citada como um modelo de desenvolvimento econômico, especialmente no contexto neoliberal. Essa visão romantizada de uma economia modelo para outros países tem um ponto de origem: a criação artificial do país.

A história da formação da Coreia do Sul é majoritariamente analisada sob a ótica de Washington e seus aliados. Mas um olhar mais detalhado que fuja dessa perspectiva não hegemônica oferece uma compreensão mais profunda dos fatores internos e regionais que moldaram o país e que explicam o contexto desse golpe de Estado.

Coreia, uma nação ancestral

Para compreender o atual golpe de Estado é preciso compreender a formação da Coreia do Sul. Essa história é frequentemente analisada sob a ótica das potências hegemônicas, especialmente os Estados Unidos. No entanto, uma perspectiva não hegemônica oferece uma compreensão mais profunda dos fatores internos e regionais que moldaram o país.

Durante o período de ocupação japonesa (1910-1945), movimentos nacionalistas coreanos emergiram como formas de resistência. A historiografia nacionalista coreana buscou reinterpretar a história do país, enfatizando a identidade e a autonomia coreanas frente à dominação estrangeira.

Historiadores como Shin Chaeho destacaram a antiguidade e a singularidade do povo coreano, além de sua resistência contínua contra agressões externas.

O artigo "Historiografia nacionalista coreana: analisar a história para fortalecer a nação", publicado pela Revista Intertelas, examina como a historiografia sul-coreana moldou a identidade nacional, especialmente após a divisão da península.

Durante o período pós-Guerra da Coreia, o governo sul-coreano, com apoio dos Estados Unidos, utilizou leis como a Lei de Segurança Nacional e agências como a KCIA para influenciar a produção intelectual, retratando a Coreia do Norte como inimiga da liberdade e promovendo uma identidade alinhada aos valores ocidentais.

Nos anos 1980, uma nova geração de historiadores buscou reinterpretar essa narrativa, enfatizando o conceito de "Minjok"—uma identidade étnica coreana unificada—para superar divisões ideológicas e promover uma visão mais inclusiva da nação.

O mito fundador da Coreia

O mito de Dangun é uma das narrativas fundadoras mais importantes da Coreia, simbolizando a origem da identidade e unidade nacional coreana. Segundo o Samguk Yusa ("Memórias dos Três Reinos"), uma compilação de textos históricos e mitológicos do século XIII, Dangun Wanggeom foi o primeiro governante do antigo reino de Gojoseon, fundado em 2333 a.C.

A história começa com Hwanin, o "Senhor dos Céus", que permite que seu filho Hwanung desça à Terra para governar e trazer harmonia ao mundo humano. Hwanung estabelece seu reino em uma montanha sagrada, Baekdu-san, conhecida como Taebaek na lenda.

Hwanung é abordado por um urso e um tigre que desejam se tornar humanos. Ele lhes dá uma tarefa: viver em uma caverna durante 100 dias, consumindo apenas alho e artemísia. O tigre desiste, mas o urso persevera e se transforma em uma mulher. Ela se torna Ungnyeo, que ora para ter um filho. Hwanung a ouve e juntos têm um filho: Dangun.

Dangun Wanggeom cresce e, posteriormente, estabelece o reino de Gojoseon, a primeira entidade política reconhecida na península coreana. Ele governa por muitos anos antes de ascender à montanha Taebaek como um ser espiritual.

O mito de Dangun simboliza a antiguidade e a singularidade do povo coreano, conectando sua origem a forças divinas e à harmonia com a natureza. A lenda reforça o conceito de Minjok, ou unidade étnico-nacional, representando todos os coreanos como descendentes de um ancestral comum.

Durante períodos de ocupação estrangeira, como a colonização japonesa, o mito de Dangun foi usado para fortalecer o sentimento de resistência e a ideia de uma nação coreana única e independente. O mito é central para o Daejonggyo, uma religião coreana que reverencia Dangun como um deus ancestral.

Embora o mito seja amplamente reconhecido como uma construção histórica e cultural, ele continua a ser uma parte vital da educação e identidade na Coreia do Sul e do Norte. Monumentos e celebrações, como o feriado nacional "Dia de Gaecheonjeol" (Dia da Fundação Nacional), comemoram Dangun como o fundador da nação.

O mito de Dangun transcende seu papel histórico e mítico, representando a continuidade e a resiliência do povo coreano ao longo dos séculos, em meio a adversidades e desafios.

Divisão da Península e Influências Externas

Após a Segunda Guerra Mundial e a libertação da Coreia do domínio japonês em 1945 a península coreana foi dividida em zonas de ocupação soviética ao norte e estadunidense ao sul. Essa divisão, embora influenciada por potências estrangeiras, também refletiu dinâmicas internas, como divergências ideológicas e políticas entre grupos coreanos.

Ao longo da Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam um papel central no fomento ao anticomunismo na Coreia do Sul - a justificativa central para o golpe de Yoon - especialmente durante o período pós-Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Coreia (1950-1953).

Durante a Guerra da Coreia, os EUA ampliaram seu envolvimento militar e propagandístico para fortalecer o anticomunismo na Coreia do Sul. O conflito foi enquadrado como uma luta existencial contra o comunismo, com forte uso de propaganda para mobilizar a população e justificar a presença militar americana.

Essa estratégia foi parte do esforço estadunidense de contenção do comunismo global durante a disputa com os soviéticos, com foco na península coreana devido à sua proximidade com a China e a União Soviética.

Sob a ocupação de Washington, líderes locais de direita na Coreia do Sul, muitos deles ex-colaboradores do regime colonial japonês, foram colocados em posições de poder. Esses líderes usaram uma retórica fortemente anticomunista para consolidar apoio e eliminar adversários políticos de esquerda.

Em 1948, com o apoio dos EUA, a Coreia do Sul foi formalmente estabelecida como uma república independente. A constituição e o sistema político foram estruturados para favorecer uma liderança anticomunista. Syngman Rhee, o primeiro presidente, reprimiu brutalmente movimentos comunistas e sindicatos, com apoio logístico e financeiro dos EUA.

Repressão de Movimentos de Esquerda

O governo sul-coreano, com assistência dos EUA, liderou campanhas contra movimentos de esquerda e supostos simpatizantes comunistas. O exemplo mais notório foi o Massacre de Jeju (1948-1949), onde forças sul-coreanas, com apoio indireto dos EUA, reprimiram um levante de esquerda na ilha de Jeju. Estima-se que entre 14 mil e 30 mil pessoas tenham sido mortas.

Após a Guerra da Coreia , os EUA influenciaram o sistema educacional sul-coreano para incorporar valores anticomunistas. Livros didáticos e campanhas públicas reforçaram a narrativa de que o comunismo era uma ameaça existencial, promovendo a visão dos EUA como protetores da liberdade.

Promulgada em 1948 e ainda em vigor, a Lei de Segurança Nacional utilizado para deflagrar o golpe de Estado em curso, criminaliza atividades consideradas pró-comunistas. A lei foi amplamente usada para silenciar dissidentes políticos e organizações progressistas. Seu impacto foi fortalecido pela pressão americana para manter a Coreia do Sul alinhada ao bloco ocidental.

Os EUA forneceram apoio financeiro e militar ao governo sul-coreano para combater o comunismo. Isso incluiu o treinamento de forças armadas locais e o envio de conselheiros militares. Esse apoio também garantiu a sobrevivência de regimes autoritários que justificavam sua repressão com base no combate ao comunismo.

Impacto duradouro do anticomunismo

O anticomunismo fomentado pelos EUA moldou profundamente a política, a sociedade e a cultura da Coreia do Sul. Apesar da transição para a democracia nos anos 1980, a retórica anticomunista continua presente em setores conservadores do país, sendo usada para justificar políticas e reprimir opositores.

Essa estratégia, embora eficaz para conter o comunismo durante a Guerra Fria, também contribuiu para repressões massivas, polarização política e a violação de direitos humanos em nome da segurança nacional.

A presença militar dos EUA na Coreia do Sul serve como um pilar de dissuasão contra possíveis agressões da Coreia do Norte e como uma demonstração de compromisso com a estabilidade regional. No entanto, essa presença também é fonte de tensões com países como a China e a própria Coreia do Norte, que veem as bases dos EUA como ameaças à sua segurança.

Presença militar dos EUA

Fato é que há uma forte presença militar dos Estados Unidos na Coreia do Sul que remonta à Guerra da Coreia (1950-1953) e permanece significativa até os dias atuais. A presença militar estadunidense em território sul-coreano é uma das mais robustas e estratégicas do mundo, com cerca de 28.500 soldados estacionados em várias bases ao longo do território sul-coreano.

Entre essas instalações, Camp Humphreys, localizada na cidade de Pyeongtaek, destaca-se como a maior base militar americana fora dos Estados Unidos. Com uma área que ultrapassa 14,7 km², a nase abriga o comando das Forças dos EUA na Coreia (USFK, da sigla em inglês), servindo como centro de operações para a coordenação de missões terrestres e aéreas na península.

A instalação é vista como um pilar na aliança defensiva entre EUA e Coreia do Sul, especialmente diante das crescentes tensões com a Coreia do Norte.

Além de Camp Humphreys, outras bases desempenham papéis cruciais na presença militar americana na região. A Base Aérea de Osan, por exemplo, ao sul de Seul, é um importante centro de operações da Sétima Força Aérea dos EUA, responsável pela superioridade aérea e resposta rápida a ameaças.

As forças estadunidenses e sul-coreanas realizam exercícios conjuntos regulares, como o "Freedom Shield" e o "Ulchi Freedom Guardian", que visam melhorar a prontidão militar e a coordenação entre as duas nações. Esses treinamentos são frequentemente vistos como uma demonstração de força diante das ameaças de Pyongyang.

A presença militar dos EUA na Coreia do Sul é parte de um compromisso de longo prazo para garantir a estabilidade regional no Leste Asiático. Além de dissuadir a Coreia do Norte, as forças dos EUA colaboram com as Forças Armadas sul-coreanas em missões estratégicas que incluem operações marítimas, terrestres e aéreas.

Em julho de 2023, um submarino nuclear dos EUA equipado com mísseis balísticos fez uma escala na Coreia do Sul pela primeira vez desde a década de 1980, sinalizando um reforço na dissuasão contra ameaças regionais.

Em outubro de 2024, os EUA e a Coreia do Sul aprofundaram o "planejamento nuclear e estratégico" conjunto, em resposta ao aumento das tensões na península coreana.

Nepoliberalismo dos chaebols

Outra fantasia disseminada pela mídia comercial alinhada aos interesses estadunidenses é que o sucesso econômico do país está intrinsecamente ligado a políticas estatais intervencionistas e à colaboração com conglomerados empresariais, conhecidos como chaebols. Essas políticas foram fundamentais para a industrialização e crescimento econômico, mas também contribuíram para desigualdades sociais significativas.

Os chaebols são conglomerados empresariais familiares que desempenham um papel central na economia da Coreia do Sul. Eles emergiram durante o período de industrialização rápida do país nas décadas de 1960 e 1970 e permanecem uma força dominante no cenário econômico sul-coreano.

Esses grupos começaram a ganhar destaque durante a presidência de Park Chung-hee (1961-1979), que implementou políticas econômicas orientadas pelo Estado para transformar a Coreia do Sul em uma potência industrial. O governo forneceu financiamento, subsídios e proteção tarifária aos chaebols, incentivando-os a liderar setores estratégicos, como manufatura, tecnologia e construção naval.

Os chaebols operam em múltiplos setores, desde eletrônicos e automóveis até construção, finanças e química. Exemplos incluem Samsung (eletrônicos, construção, seguros etc.), Hyundai (automóveis, construção, finanças), LG (eletrônicos, produtos químicos) e  SK (energia, telecomunicações)

Essas empresas são controladas por famílias fundadoras que mantêm a administração por várias gerações. O controle é frequentemente exercido por meio de estruturas complexas de participações cruzadas entre subsidiárias.

A relação entre os chaebols e o governo foi um fator crucial para seu crescimento. Em troca de apoio financeiro e proteção, os chaebols impulsionaram a industrialização e exportações. Esses grupos foram essenciais para a rápida modernização da Coreia do Sul, transformando o país de uma economia agrária para uma das economias mais avançadas do mundo.

No entanto, essa concentração de poder econômico trouxe desafios. O domínio dos chaebols marginalizou pequenas e médias empresas, aumentando a concentração de riqueza e as desigualdades sociais. 

Os chaebols frequentemente enfrentaram escândalos de corrupção envolvendo conexões políticas. Tentativas de regular ou limitar o poder dos chaebols têm encontrado forte oposição, tanto das famílias controladoras quanto de setores políticos.

Embora os chaebols sejam motores do crescimento econômico, eles enfrentam críticas por práticas trabalhistas rígidas, falta de transparência e resistência à inovação interna. A sucessão familiar e a governança corporativa também são alvos de debates, com pressões para democratizar suas estruturas de poder.

Modelo de desenvolvimento e neoliberalismo

O desenvolvimento econômico sul-coreano, como mostra a história dos chaebols, é resultado de uma combinação de estratégias, incluindo planejamento estatal e abertura ao mercado global.

A realidade é bem diferente do que leva a crer algumas interpretações que sugerem que o crescimento foi impulsionado por políticas neoliberais que promoveram a liberalização econômica e a integração global. Na verdade, o Estado desempenhou um papel central na coordenação do desenvolvimento, desafiando a narrativa de que o neoliberalismo foi o principal motor do progresso econômico.

Apesar do crescimento econômico, a Coreia do Sul enfrenta desafios relacionados à desigualdade social. A concentração de riqueza nos chaebols e a implementação de políticas neoliberais resultaram em disparidades significativas.

A crise financeira de 1997 exacerbou essas desigualdades, levando a um aumento do trabalho precário e à erosão da rede de segurança social. Essas questões foram destacadas em produções culturais, como o filme "Parasita" e a série "Round 6", que retratam as tensões sociais decorrentes das desigualdades econômicas.

Desdobramentos do golpe

O golpe de Estado em curso na Coreia do Sul não apenas expõe as fragilidades das instituições democráticas do país, mas também revela os impactos de décadas de militarização e influência externa.

Sobre o golpe em curso, o governo dos Estados Unidos informou de forma protocolar está acompanhando de perto a crise política na Coreia do Sul, manifestando "grave preocupação" após o presidente Yoon Suk Yeol declarar lei marcial no país

O vice-secretário de Estado dos EUA, Kurt Campbell, afirmou nesta terça-feira:

"Estamos vendo os acontecimentos recentes na Coreia do Sul com grande preocupação. Temos toda a esperança e expectativa de que qualquer disputa política seja resolvida pacificamente e de acordo com o Estado de direito."

Além disso, um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA declarou que a administração está em contato com o governo sul-coreano e segue de perto a situação.

Embora demonstre "preocupação" com a situação da Coreia do Sul, foi Washington o responsável por forjar a aliança entre forças conservadoras, militares e a retórica anticomunista ao longo da Guerra Fria. Esse caldeirão temperado pelos EUA criou um ambiente propício para ações autoritárias sob a justificativa de preservar a segurança nacional exatamente como o golpe em curso.

Diante disso, o futuro da democracia sul-coreana depende não apenas da resistência interna, mas também de como a comunidade internacional, especialmente os Estados Unidos, responderá a este momento crítico.

Siga os perfis da Revista Fórum e da jornalista Iara Vidal no Bluesky

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar