O mundo está em ebulição e as tensões na geopolítica global fazem aflorar a retórica simplista do "bem contra o mal" sob a liderança dos Estados Unidos.
Esse recurso pode simplificar conflitos complexos, obscurecer as verdadeiras causas e consequências das ações políticas e militares. Além de desumanizar o adversário e dar sinal verde para graves violações dos direitos humanos, como genocídios e crimes de guerra.
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A mídia hegemônica brasileira, por exemplo, abraçou sem titubear essa visão simplista para explicar as transformações geopolíticas em curso reforçando seu papel de ventríloqua de Washington.
Um exemplo desse alinhamento aos interesses dos EUA é o título de matéria de sexta-feira (25/10) publicada pelo jornal O Globo: "Eixo do mal 2.0: Como Coreia do Norte, China, Irã e Rússia formaram um 'quarteto do caos' para o Ocidente".
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O texto reproduz a acusação feita pela revista britânica The Economist, em 22 de setembro. Intitulado "A new “quartet of chaos” threatens America" (Um novo "quarteto do caos" ameaça os Estados Unidos, em português), o artigo classificou China, Irã, Coreia do Norte e Rússia como o "quarteto do caos".
Segundo a revista, o intercâmbio entre essas nações teria como pilar central a troca de tecnologia militar e industrial. Irã e Coreia do Norte estariam fornecendo drones e mísseis à Rússia, que, por sua vez, compartilharia dados estratégicos e equipamentos ocidentais capturados com o Irã para análise. Além disso, Pequim teria uma participação relevante no fornecimento de microeletrônicos e maquinário para a Rússia, ajudando a manter a produção militar ativa.
Outras perspectivas
Embora a revista The Economist tenha rotulado China, Irã, Coreia do Norte e Rússia como um "quarteto do caos", muitos especialistas, inclusive nos Estados Unidos, enxergam as interações entre essas nações de maneira mais complexa.
Em vez de serem vistas como desestabilizadoras globais, essas potências podem ser compreendidas como atores que buscam resistir ao isolamento e preservar sua soberania em um cenário internacional dominado por potências ocidentais.
A cooperação entre esses países, seja militar, tecnológica ou econômica, é uma resposta às pressões externas e à busca por autonomia em um mundo cada vez mais multipolar.
Enquanto o Ocidente vê a cooperação entre China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como uma ameaça à segurança global, essas nações argumentam que exercem seu direito de formar alianças para proteger seus interesses soberanos, buscar novas parcerias em um mundo multipolar e resistir ao que percebem como um imperialismo ocidental.
Para esse quarteto, o verdadeiro desestabilizador é o domínio ocidental, que tenta impor sua ordem em detrimento das potências emergentes e das nações que desafiam sua hegemonia.
Esses países alegam que a crescente coordenação entre eles é uma resposta direta às sanções econômicas, interferências políticas e ao isolamento imposto pelos Estados Unidos e seus aliados.
Realismo ofensivo
Uma das vozes que a mídia ocidental cala e que faz uma análise diferente do discurso propagado por Washington é a do estadunidense John Mearsheimer. O cientista político e professor na Universidade de Chicago é conhecido por seu trabalho na área de realismo ofensivo, uma teoria das relações internacionais.
Mearsheimer ganhou destaque com seu livro "The Tragedy of Great Power Politics", publicado em 2001, no qual ele argumenta que os Estados Unidos e outras grandes potências estão sempre competindo pela supremacia global.
Ele avalia que a expansão da Otan em direção à Rússia, as sanções econômicas contra o Irã e a China, e o isolamento imposto à Coreia do Norte são fatores que impulsionam essas nações a buscar formas alternativas de cooperação.
Cooperação estratégia
Outro ponto de vista rotineiramente silenciado na cobertura da mídia ocidental para analisar as transformações em curso na geopolítica global é o de Mark Weisbrot. Estadunidense, economista e co-diretor do Center for Economic and Policy Research (CEPR), um think tank com sede em Washington, D.C., ele foca em pesquisas econômicas e políticas públicas, com uma perspectiva progressista.
Weisbrot argumenta que muitos dos laços comerciais e militares entre China, Rússia, Irã e Coreia do Norte são formas de cooperação estratégica que buscam contornar as sanções ocidentais e fomentar o desenvolvimento interno.
A China, por exemplo, tem se engajado em grandes projetos de infraestrutura através da Iniciativa do Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, que busca integrar economias emergentes por meio de projetos de infraestrutura.
Essas iniciativas, embora criticadas no Ocidente, são vistas por Weisbrot e outros como tentativas de criar um sistema econômico menos dependente das instituições financeiras ocidentais e dos mercados controlados pelo dólar.
Autonomia e autossuficiência tecnológica
Outro estadunidense, o especialista em segurança internacional Alexander Cooley, também traz uma perspectiva que foge da visão de Washington. Cientista político, atualmente é professor no Barnard College, afiliado à Universidade Columbia.
Em seu livro "Great Games, Local Rules", Cooley argumenta que o compartilhamento de conhecimento entre China, Irã, Coreia do Norte e Rússia não deve ser visto unicamente como um elemento de desestabilização.
Ele defende que essas nações estão em busca de autossuficiência tecnológica, em parte como resposta a anos de sanções, embargos e exclusões de mercados ocidentais.
A China, por exemplo, tem investido maciçamente em ciência e tecnologia para reduzir sua dependência de tecnologias ocidentais, o que é visto como uma forma de proteger sua soberania digital e tecnológica.
Da mesma forma, o Irã desenvolveu suas capacidades militares e nucleares em resposta às décadas de sanções e isolamento, que, segundo Cooley, o forçaram a desenvolver uma estratégia de autossuficiência.
Multipolaridade
O conceito de multipolaridade – desprezado, ofuscado e mal interpretado pela cobertura da mídia hegemônica ocidental ao reverberar a ideia de um novo "Eixo do Mal" – vê o mundo contemporâneo como cada vez mais descentralizado, com o poder global sendo distribuído entre várias potências. Exemplo desse movimento foi a recente Cúpula do Brics realizada em Kazan, na Rússia.
Nesse contexto, a crescente interconexão entre China, Irã, Coreia do Norte e Rússia pode ser vista como parte de um movimento natural rumo à multipolaridade, em vez de uma tentativa coordenada de "caos".
Essa leitura é feita, por exemplo, por Fareed Zakaria. Para o jornalista estadunidense, comentarista político e autor de origem indiana, o surgimento de novas potências globais fora do eixo ocidental é uma tendência inevitável, e a tentativa de conter ou isolar esses países pode ser contraproducente.
Respostas a sanções e isolamento
Para Trita Parsi, iraniano radicado nos Estados Unidos, muitos dos laços entre o "quarteto do caos" são reforçados por políticas ocidentais de sanções econômicas e isolamento político. Ele é fundador do Conselho Nacional Iraniano-Estadunidense (NIAC, da sigla em inglês), analista de política externa especializado nas relações entre o Oriente Médio, especialmente o Irã e os Estados Unidos.
Ele argumenta que o Irã e a Rússia, por exemplo, foram forçados a buscar novas alianças devido ao isolamento imposto pelo Ocidente. Parsi afirma que, longe de fomentar o caos global, essas nações estão criando redes de sobrevivência econômica e militar para evitar colapsos internos.
Sanções de Washington
Os Estados Unidos e seus aliados impuseram diversas sanções econômicas e diplomáticas contra o Irã, Rússia, China e Coreia do Norte, em resposta a ações que consideram contrárias aos interesses deles.
O Irã sofre com sanções abrangentes, incluindo restrições às exportações de petróleo e produtos petroquímicos, congelamento de ativos financeiros e proibição de transações com entidades iranianas. Essas medidas buscam pressionar o governo iraniano a abandonar seu programa nuclear e cessar o apoio a grupos classificados como terroristas por Washington e aliados.
Desde a invasão da Ucrânia em 2022, os EUA e aliados impuseram sanções significativas contra a Rússia, incluindo restrições ao sistema financeiro, controles de exportação de tecnologia avançada e congelamento de ativos de oligarcas russos.
A Coreia do Norte enfrenta sanções internacionais devido ao seu programa nuclear e de mísseis balísticos. As medidas incluem restrições às exportações de carvão, ferro, chumbo e produtos marítimos, além de limites às importações de petróleo e produtos relacionados.
Embora as sanções contra a China sejam menos abrangentes, os EUA implementaram medidas restritivas relacionadas a práticas comerciais desleais, propriedade intelectual e questões de segurança nacional. Isso inclui tarifas adicionais sobre produtos chineses e restrições a investimentos em certas empresas tecnológicas.
Contraponto geopolítico
Alguns analistas, como Stephen Walt, cientista político estadunidense que é professor de Relações Internacionais na Harvard Kennedy School, apontam que as acusações contra China, Rússia, Irã e Coreia do Norte muitas vezes refletem as tensões geopolíticas mais amplas entre o Ocidente e as potências emergentes.
Para Walt, a política externa dos EUA e da Europa é em grande parte responsável por alimentar essas rivalidades, e a cooperação entre essas nações é, muitas vezes, uma resposta às estratégias de contenção ocidental, mais do que uma tentativa ativa de desestabilizar o sistema global.
Retórica de "bem contra o mal"
A retórica de "bem contra o mal" tem sido amplamente usada por países ocidentais para justificar políticas e ações internacionais, especialmente no contexto de confrontos com países como Rússia, China, Irã e Coreia do Norte. A narrativa apresenta o Ocidente como defensor dos valores democráticos, enquanto esses países são retratados como ameaças à ordem mundial.
Na guerra da Ucrânia, por exemplo, a Rússia é vista como uma força autoritária que desafia a soberania de uma nação vizinha, com líderes ocidentais, como o presidente dos EUA, Joe Biden, retratando a defesa da democracia ucraniana como uma batalha moral contra regimes autoritários.
Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, adota uma retórica semelhante ao criticar o apoio da China à Rússia, reforçando a narrativa de que o Ocidente representa o "bem maior", enquanto as potências rivais representam o "mal".
Embora simplificadora, essa visão polarizada frequentemente ignora as complexidades geopolíticas e serve como justificativa para sanções e intervenções militares.
Após o ataque terrorista contra os EUA, no dia 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush usou o conceito de "Eixo do Mal" para obter apoio político à chamada Guerra ao Terror. A invasão do Iraque em 2003 foi justificada a partir dessa ideia.
De forma semelhante, Israel recorre à retórica de "bem contra o mal" para justificar suas ações militares contra o Hamas em Gaza, retratando o grupo como uma ameaça existencial para legitimar suas ações na região.
Essa narrativa maniqueísta, embora eficaz em termos de mobilização política e justificativa de ações, tende a obscurecer as motivações mais profundas e os interesses envolvidos nas relações internacionais.
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