Em declaração a jornalistas durante a Cúpula do BRICS em Kazan, na Rússia, o chefe da delegação brasileira, o chanceler Mauro Vieira, negou que o grupo tenha um caráter antiocidental e classificou o Brasil como um país do Ocidente.
A fala, em resposta a questionamento da mídia liberal - ventríloqua dos interesses dos Estados Unidos e aliados, que divide o mundo entre "democracia e ditadura" e simplifica questões geopolíticas em uma luta do "bem contra o mal" - Vieira refutou a tese de que o BRICS quer se um contraponto à ordem mundial estabelecida.
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"O Brasil, até onde sei, é um país do Ocidente", rebateu o chanceler. "O Brics não é contra ninguém. Ele é a favor dos membros, é uma plataforma de conversas", complementou.
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Mesa ou cardápio?
A definição de Vieira que classifica o Brasil como um país ocidental não é um ponto pacífico. Há divergências. Inclusive expressas por meio da mídia ocidental hegemônica, como em um editorial do Washington Post de abril de 2023.
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Intitulado "The West hoped Lula would be a partner. He’s got his own plans"(O Ocidente esperava que Lula fosse um parceiro. Ele tem seus próprios planos, em português), o texto avaliou os primeiros meses do terceiro mandato de Lula e concluiu que o presidente brasileiro até então havia adotado uma postura pragmática na política externa, que contrasta com as expectativas dos Estados Unidos e da Europa, ou seja, do Ocidente.
A independência de Brasília não cai bem em Washington, que tenta de várias maneiras conter o mundo multipolar com iniciativas que envolvem fortalecer alianças, conter a expansão de rivais, e manter sua liderança nos campos econômico, militar e ideológico para preservar a ordem internacional dominada pelos EUA.
Nesse contexto, a declaração feita pelo secretário de Estado de Joe Biden, Antony Blinken, durante a Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2024, está aberta a diversas interpretações.
"Se você não está na mesa no sistema internacional, você vai estar no menu", disse Blinken.
Lula busca justamente garantir ao Brasil um lugar "à mesa" das grandes decisões internacionais. Ao considerar a preocupação de Washington quanto à consolidação do BRICS e da construção de um mundo multipolar, não vale qualquer mesa. Tem que ser a mesa e o cardápio que os Estados Unidos e aliados consideram apropriados.
Jardim ou selva?
Outra declaração polêmica que levanta dúvidas sobre o Brasil ser um país ocidental foi feita pelo então alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, em outubro de 2022. Ele comparou a Europa a um "jardim" e o restante do mundo a uma "selva".
"A Europa é um jardim. Construímos um jardim. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade já construiu. A maioria do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim", afirmou.
Para o Brasil ser de fato um país ocidental, pelo menos a partir dessas falas de Blinken e Borrel, precisa combinar primeiro com os EUA e a UE e outras potências ocidentais.
O que define um país ocidental?
A definição de país ocidental pode variar de acordo com o contexto — seja ele geográfico, histórico, político ou cultural. Tradicionalmente, o termo "Ocidente" se refere a países localizados na Europa e nas Américas, embora, ao longo do tempo, essa definição tenha se expandido para incluir aspectos mais complexos.
Sob o ponto de vista geográfico, o Ocidente engloba países situados na parte ocidental do hemisfério norte, especialmente na Europa Ocidental e nas Américas. Isso inclui não apenas os países europeus, mas também suas ex-colônias nas Américas, como os Estados Unidos, o Canadá e a América Latina.
No contexto histórico-cultural, o Ocidente é definido por países cujas culturas foram moldadas pela civilização greco-romana, pelo Cristianismo e pelo Renascimento europeu. A Revolução Industrial e as grandes navegações também desempenharam papéis cruciais, influenciando a expansão colonial e a formação das estruturas econômicas e políticas que hoje associamos ao Ocidente.
Durante a Guerra Fria, o conceito de Ocidente foi ampliado para incluir os países do bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN. Essa definição traz para o "Ocidente" países de outros hemisférios, como Japão, Austrália e Nova Zelândia, que se alinharam com os valores econômicos e políticos dos EUA e da Europa Ocidental.
A perspectiva econômica caracteriza o Ocidente como um bloco de países com economias de mercado avançadas, frequentemente associados ao desenvolvimento tecnológico, inovação e sistemas democráticos robustos. O Ocidente é, muitas vezes, visto como o berço da Revolução Científica e da inovação moderna, tendo suas universidades e centros de pesquisa como referências globais.
No aspecto cultural, o Ocidente é associado a valores como individualismo, liberalismo e direitos humanos, com uma forte ênfase na liberdade de expressão e na igualdade de gênero. Esses valores foram, em grande parte, moldados pela herança cristã, especialmente pelo Catolicismo Romano e pelo Protestantismo, que influenciaram profundamente a cultura e as normas sociais do Ocidente.
Geopoliticamente, o Ocidente é composto por países que participam de alianças como a OTAN e compartilham uma visão comum de segurança coletiva e democracia liberal. Essa aliança transatlântica visa manter a estabilidade e defender os interesses conjuntos dos membros contra ameaças globais.
O Ocidente também é visto como o motor da globalização e da modernização, exportando seus sistemas econômicos e culturais para outras partes do mundo. Entretanto, essa expansão foi historicamente acompanhada pelo colonialismo, com países ocidentais exercendo controle sobre vastas regiões da África, Ásia e Américas. Hoje, esses mesmos países enfrentam os desafios do pós-colonialismo, tentando lidar com os legados do domínio imperialista.
Caso seja adotada a visão civilizacional de Samuel Huntington exposta no livro "O Choque de Civilizações", o Ocidente é definido como uma civilização própria, distinta de outras grandes civilizações, como a islâmica, confucionista, hindu, entre outras. O Ocidente, segundo essa visão, é uma entidade cultural e política separada, cujas instituições e valores são diferentes das de outras regiões do mundo.
A definição de um país ocidental é multifacetada e vai além da simples localização geográfica. Inclui aspectos históricos, culturais, econômicos e políticos que moldaram uma identidade ocidental ao longo dos séculos. Seja pela herança greco-romana, pela ascensão do capitalismo durante a Guerra Fria ou pela promoção de valores liberais e democráticos, o Ocidente se estabeleceu como uma força dominante na construção da ordem mundial moderna.
A busca da identidade brasileira
A identidade do Brasil, que inclui a definição de ser ou não um país ocidental, é um tema complexo, permeado por múltiplas influências culturais, raciais e sociais. Entre o pensamento de intelectuais brasileiros há muitas nuances para ajudar a pensar quem somos como país.
Gilberto Freyre, em sua obra "Casa-Grande & Senzala", destacou a mestiçagem e o sincretismo cultural como aspectos centrais da formação da identidade brasileira. Para Freyre, a colonização portuguesa foi mais flexível em relação às raças e culturas que encontrou no Brasil, criando uma sociedade híbrida e única. No entanto, sua visão é criticada por minimizar os aspectos violentos da colonização e da escravidão.
Já Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil", abordou a formação da sociedade brasileira com foco na herança patrimonialista e personalista da colonização portuguesa. Ele argumenta que as relações pessoais e familiares prevalecem sobre as instituições impessoais, o que afeta a cultura e o funcionamento do Estado brasileiro. Holanda também destacou a cordialidade como uma característica do brasileiro, que influencia o comportamento social e político do país.
Darcy Ribeiro via a identidade brasileira como fruto de uma fusão entre influências indígenas, africanas e europeias, formando uma civilização nova e autônoma. Ele reconhecia os traços de exploração colonial, mas mantinha uma visão otimista sobre o potencial cultural e político do Brasil.
Fernando Henrique Cardoso (FHC), antes de sua presidência, ajudou a desenvolver a teoria da dependência, que analisa a posição do Brasil na divisão internacional do trabalho. Ele argumenta que o Brasil, inserido tardiamente no capitalismo global, se tornou dependente de capital estrangeiro e das potências hegemônicas, perpetuando a desigualdade e o subdesenvolvimento.
Florestan Fernandes, um dos principais sociólogos brasileiros, focou em como a modernização capitalista no Brasil perpetuou as estruturas coloniais de exploração. Ele destacou que a elite econômica, atrelada ao capital internacional, exclui as massas populares do desenvolvimento, analisando a inserção desigual do Brasil no sistema capitalista global.
Caio Prado Júnior, outro importante pensador marxista, argumentou que o Brasil foi inserido no capitalismo global como uma colônia destinada a fornecer matérias-primas, o que moldou uma estrutura econômica dependente e voltada para fora, impactando as características sociais e políticas do país.
Olhares femininos sobre brasilidade
A formação da identidade brasileira, marcada pela desigualdade racial, de gênero e de classe, foi tema central nas obras de diversas intelectuais brasileiras.
Vânia Bambirra, teórica marxista da dependência, foi além de FHC ao analisar o Brasil dentro da divisão internacional do trabalho e posicionou o país como uma economia periférica no sistema capitalista global. Ela enfatizou que o Brasil é uma nação dependente e subordinada aos países centrais, sendo explorada pelo imperialismo e pelo capital estrangeiro.
Lélia Gonzalez, uma das principais teóricas do pensamento social no Brasil, trabalhou na interseção entre gênero, classe e raça, criticando a marginalização da população negra e indígena na construção da nação. Ela destacava a invisibilidade dessas populações na história oficial e o impacto do racismo e do colonialismo na formação da sociedade brasileira.
Outra pioneira, Heleieth Saffioti, uma das primeiras vozes do feminismo marxista no país, concentrou seus estudos nas relações entre capitalismo e patriarcado, argumentando que ambos operam juntos para oprimir as mulheres. Em sua obra fundamental "A Mulher na Sociedade de Classes", Saffioti analisou como raça, classe e gênero foram moldados pelo desenvolvimento capitalista, perpetuando a exploração das mulheres, especialmente das trabalhadoras.
Iolanda de Lima Barbosa, também socióloga e feminista marxista, focou suas análises nas questões de classe e gênero, abordando como a escravidão e a desigualdade racial estruturaram o capitalismo no Brasil. Sua crítica à marginalização da mulher negra reflete a continuidade das opressões impostas pela herança colonial e pela economia capitalista.
A historiadora Virgínia Fontes, por sua vez, explora as dinâmicas do capitalismo contemporâneo no Brasil e na América Latina. Em suas análises, Fontes destaca a inserção subordinada da região no sistema capitalista global e o impacto do imperialismo nas classes populares, defendendo a resistência contra essas influências.
Já a economista Tânia Bacelar é conhecida por suas contribuições à economia política do desenvolvimento brasileiro. Embora sua abordagem não seja puramente marxista, Bacelar estuda as desigualdades regionais e sociais, discutindo o papel do Brasil como país periférico no capitalismo global e como essas desigualdades afetam a vida da população.
Os vários Brasis
Afinal, o Brasil é ou não um país do ocidental? Vai depender de quem responder a essa questão. Um homem branco e rico, como um "faria limer", muito provavelmente vai se identificar com Miami, na Flórida (EUA). Caso o questionamento seja dirigido a uma mulher preta a periférica é mais provável que ela se localize em uma cidade do continente africano, como Abuja, a capital da Nigéria.
Há mais de um Brasil dentro do Brasil. Inclusive um país ocidental.
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