ARGENTINA

EXCLUSIVO - Jornalistas argentinos fazem balanço do primeiro mês de Javier Milei

Presidente ultraliberal cumpre promessa de campanha e impõe pesado ajuste neoliberal à população além de tentar aumentar seu poder via Ley Omnibus; Expectativa é de aumento dos protestos populares conforme deterioração econômica for sendo sentida

Javier Milei, presidente da Argentina.Créditos: Mídia Ninja
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Nesta quarta-feira (10) o mandato de Javier Milei como presidente da Argentina completa seu primeiro mês. E nesses 31 dias, o polêmico presidente ultraliberal que conversa com cachorros, vivos ou mortos, de quem recebe conselhos políticos, tem dado o que falar.

Logo de cada, em 10 de dezembro, deu um discurso de posse anunciando seu forte ajuste neoliberal, que obrigaria um “sacrifício” do povo argentino para “desfazer o que foi deixado pelo peronismo”, para só então, o povo e o país voltarem a prosperar. Em outras palavras, dias piores e mais difíceis se apresentam aos argentinos, mas até quando?

Rapidamente ele apresentou o seu Decreto de Necessidade de Urgência (DNU), que busca derrubar o valor do peso argentino, destruir a legislação trabalhista permitindo até mesmo que salários sejam pagos em carne ou bananas, além de promover todo tipo de desregulamentação que favoreça as grandes corporações e o mercado financeiro.

E em 27 de dezembro, enquanto os argentinos se organizavam para manifestações contra o DNU, ou seja, quando ocorriam os primeiros protestos, Milei já anunciava a sua Ley Omnibus, que altera centenas de leis e normativas que regem a Argentina. Entre as mudanças, é claro, um aumento dos poderes do Executivo durante o seu mandato, a privatização de todas as estatais e o controle restrito e total do Ministério do Interior sobre os protestos populares e sociais.

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A Revista Fórum conversou com três jornalistas argentinos, Marco Teruggi, Ariadna Dacil Lanza e Úrsula Asta, para fazer um balanço desse primeiro mês de mandato, que promete disparar uma série de protestos ao longo do próximo período.

Úrsula Asta, Marco Teruggi e Ariadna Dacil Lanza, jornalistas argentinos entrevistados para a reportagem. Créditos: Reprodução

“É preciso levar em consideração que se trata de um governo que assume de forma minoritária no Congresso e o DNU é justamente um mecanismo que busca driblar essa falta de apoio inicial no Legislativo. Atualmente ele não tem maioria, o que tem são partidos, especialmente aqueles que compuseram o governo de Maurício Macri [anterior ao de Alberto Fernández], que estão dispostos a acompanhar os projetos do Executivo. Enquanto outra parte quer reparos. Milei tem dificuldades no Congresso, mas isso não significa que não consiga aprovar parte das suas iniciativas”, explica Dacil Lanza, que trabalha na Agência Télam.

“Além disso, a vice-presidente Victoria Villarruel, do grupo político de Macri, tem se afastado de Milei e não tem demonstrado apoio público aos seus projetos”, agrega a jornalista. Villaruel, que é presidente do Senado e vice-presidente da República, é importantíssima para aprovação dos textos, mas ela não compareceu á reunião no Gabinete Presidencial nesta terça (9) que tinha como objetivo debater a articulação política em torno da aprovação da Ley Omnibus.

“Em primeiro lugar, assinalaria que Javier Milei não mentiu em nenhum dos seus pontos de agenda e promessas de campanha. Ele disse que não iria haver qualquer gradualismo, mas mudanças bruscas, um ‘choque’, como anunciado em seu discurso de posse citando Margareth Thatcher, porque não havia ‘alternativa’. O que temos é um choque de tipo neoliberal, com um plano privatizador de tudo o que é estatal e desregulador em favor das grandes corporações e do mercado financeiro; e uma tentativa de concentração de poder no Executivo, que segundo a Ley Omnibus seria de dois anos podendo ser prorrogado por mais dois, ou seja, a totalidade do mandato. É uma espécie de refundação reacionária, ou reset autoritário, que buscou deixar qualquer resistência sem reação, pela quantidade de elementos introduzidos nesse choque e pelo alto grau de radicalização dos mesmos”, avalia Marco Teruggi, que além de jornalista também é sociólogo.

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Agora, explica Teruggi, o palco vai tanto para o Congresso, em função de quantos deputados são necessários para aprovar o DNU e a Ley Omnibus; como para o Judiciário, desde tribunais do Trabalho até a Suprema Corte, que recebem ações e mais ações para barrar os projetos; e, é claro, as mobilizações populares nas ruas.

“Agora temos que ver qual é, digamos, não a velocidade da degradação econômica das maiorias, senão quando Milei começa a perder de maneira notória sua popularidade, pois tanto a classe média e as pequenas empresas, como as classes populares, são as principais vítimas do ajuste”, conclui.

Já a jornalista e comunicadora popular Úrsula Asta, da Rádio Gráfica, lembra o anúncio do ministro da Economia, Luis Caputo, que impôs uma desvalorização de 120% ao peso argentino, além de promover demissões em massa nas estatais e uma pulverização dos salários nas classes médias. Ela descreve a reação dos movimentos sociais.

“São medidas que coroam o que é o início de um projeto político que envolve um plano de ajuste e despojo para as maiorias e uma enorme transferência de recursos na direção de alguns setores. A partir do DNU implementou uma série de modificações profundas ao sistema econômico, de trabalho e político, sobre os quais distintos setores apresentaram ações jurídicas contra essa política. Entre os mais destacados estão as centrais sindicais, a CGT e a CTA, as maiores do país, e que conseguiram na Justiça frear os ataques mais diretos às organizações sindicais, ainda que em outros temas o DNU está vigente,” avalia Úrsula Asta.

O DNU, que ainda precisa passar no Congresso, é o principal assunto debatido hoje na Argentina enquanto diversos setores protocolam ações para barrá-lo, como conta a jornalista.

“Nesse primeiro mês já vemos as consequências disso com o aumento da inflação pesando no bolso dos argentinos. E ninguém pode dizer que foi enganado, ou que não sabia que seria assim, porque o que Milei assumiu com algumas dessas promessas demonstra uma profunda vocação em transformar a Argentina em uma colônia. Em cada nova norma, seja no DNU, seja na Ley Omnibus, há um poderoso setor da vida argentina sendo mirado: águas, solo, recursos naturais, cultura, economia, tudo. No futebol, por exemplo, tentam transformar os clubes em associações anônimas, tentando fazê-los deixar de ser clubes sociais como são hoje. E esse projeto traz consigo, é claro, uma forte repressão da mobilização popular”, pontou Úrsula.

Popularidade de Milei

Mas para além das manifestações, o balanço negativo desse primeiro mês de governo já se expressa na popularidade de Milei. Segundo a pesquisa Zuban Cordoba, divulgada no último dia 3 de janeiro, ele havia perdido um ponto percentual de aprovação por dia de mandato. Um verdadeiro recorde.

“A popularidade Milei consequentemente vai cair por conta das consequências econômicas. Por isso que ele também foi muito rápido, desde a primeira hora do governo, em impor sua agenda, prevendo essa queda na popularidade. A tentativa de Milei, em termos de construção narrativa, é dizer que ‘temos que atravessar esse sacrifício necessário’, ou, ‘estar pior hoje para estar melhor amanhã’. A pergunta é: até quanto tempo isso vai se sustentar entre aqueles que o votaram”, questiona Teruggi.

O sociólogo ainda detalha essa base social. Entre os 30% que foram com Milei já no primeiro turno, está seu núcleo duro. E entre aqueles que teriam votado em Patricia Bullrich e embarcaram na canoa de Milei logo em seguida, um público um pouco menos fiel em teoria. Acontece que há um paradoxo.

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“Paradoxalmente, esse eleitorado proveniente de Bullrich pode ser aquele que consiga suportar por mais tempo os ‘tempos de sacrifício’ de Milei, justamente por ser demarcadamente antiperonista. Estariam dispostos a atravessar desertos sempre e quando o peronismo não esteja no poder. Já a outra parte, o núcleo duro, me parece uma incógnita. É possível que ele perca popularidade nesse setor, uma vez que já existem relatos de eleitores arrependidos”, completa Teruggi.

Protestos

Úrsula Asta nos explica que “logo das medidas de Milei serem anunciadas, houve protestos. Tiveram um músculo organizativo, baseado em autodefesa e na dignidade do povo argentino. Isso ocorreu tanto em relação ao DNU, quanto a Ley Omnibus. Centrais sindicais, movimentos sociais e distintos setores se congregaram diante do Palácio da Justiça para exigir junto ao Poder Judiciário que o DNU não avançasse. Nesse mesmo dia, Milei anunciava a Ley Omnibus. Depois dessa mobilização houve em toda Buenos Aires e em diversas províncias panelaços e movimentos em cada esquina. O que inclusive rompeu o protocolo repressivo”.

Teruggi concorda: “Esses movimentos que vão de panelaços, organizados ou espontâneos, manifestações setoriais e uma mobilização nacional, são importantes para pressionar os poderes Legislativo, Judiciário e também políticos que têm a prerrogativa de enfrentar os arroubos autoritários do Executivo. E levando em conta que além do choque neoliberal e da tentativa de aumentar seu poder institucional, Milei ainda toca uma política de repressão dos protestos, o que se espera é a continuidade das mobilizações, seu crescimento e um ciclo que começa a tomar forma e pode forjar novas lideranças e novos discursos. O que Milei tenta fazer é impossível de ser feito sem que encontre um alto grau de resistência na sociedade argentina. Se terá êxito eu não sei, isso dependerá da combinação rua-Congresso-Poder Judiciário”.

Dacil discorda: “As manifestações não foram sumamente massivas e também não prosseguiram. É preciso ponderar que ocorreram em dezembro, em meio as festas de fim de ano e ao recebimento do décimo terceiro salário, o que naturalmente desmobiliza. Por outro lado, já se anunciam tarifaços nos transportes, no gás de cozinha, na luz e na água, o que pode provocar algum descontentamento social nos próximos meses”.

Para ela, mais do que a mobilização das centrais sindicais, dos movimentos sociais e dos setores que naturalmente rechaçam Milei, um novo “estallido social” dependerá, sobretudo, da própria articulação do governo para fazer passar sua agenda. E, na medida em que essa agenda vai passando, o descontentamento popular tenderia a aumentar conforme os efeitos forem sendo sentidos.

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“As coisas vão depender do próprio governo. Não dependem tanto da oposição, dos movimentos sociais e das centrais sindicais, mas do quanto o presidente e o governo vão ser capazes de fazer sua articulação política. Se conseguirem passar o que querem, impactando os bolsos dos argentinos, as chances de um estallido social aumentam. Há um setor grande da sociedade que o apoia, mas a questão é até onde vão aguentar o choque, o ajuste”, explicou.

Foi convocada uma greve geral nacional para o próximo dia 24 de janeiro e enquanto é preparada essa mobilização, que incluirá paralisações nos transportes, nas fábricas e em todas as atividades, ocorrem panelaços e manifestações setorizadas, como a de hoje, dos trabalhadores da cultura. Também ocorre nesta quarta o plenário da CGT (a maior central sindical da Argentina) que reúne delegados de todo o país para definir os detalhes da mobilização.

“Temos que ver como isso transcorre ao longo do tempo mas está tendo uma resposta valiosa para a etapa que a Argentina vai viver ao longo do período, de profunda dor social, mas também de resistência”, conclui Úrsula.

Paralelos com a ditadura militar

Marco Teruggi, além de sociólogo e jornalista, também é sobrinho de Diana Teruggi, assassinada pela ditadura militar argentina, e sua prima – filha de Diana – foi sequestrada quando tinha apenas 3 meses de vida em 1976. Desde então a família procura por Clara Anahí Teruggi e está inserida nos poderosos movimentos de familiares de vítimas do regime.

“Como parte desse movimento, que na Argentina é amplo e multitudinário, há um fator de preocupação em particular que tem a ver justamente o que será a política de memória e justiça. A vice-presidente eleita, por exemplo, Victoria Villarruel, é uma política que trabalhou para encobrir essas reivindicações e os fatos a respeito da ditadura. O novo chefe do Estado-Maior do Exército, Carlos Alberto Presti, é filho de Roque Carlos Presti, que foi um dos ordenou o ataque sobre a casa da minha tia, quando foi assassinada. Portanto, esta dimensão está totalmente presente”.

“Milei encarna uma ideia de revanche e uma ideia de que existe um inimigo interno no país que deve ser eliminado. Isso é o que traz algum paralelo. Sobretudo no pensamento contrário ao protesto popular. Mas ainda estamos por ver, nos próximos meses, como tudo isso irá se desenvolver”, finaliza.