As ações policiais nas favelas do Rio de Janeiro não têm hora para acontecer. Sobram relatos nas últimas décadas de incursões em pleno horário de entrada ou saída de escolas, de execuções sumárias de moradores, incluindo crianças, e fechamento de comércios e vias. Sob a justificativa da guerra às drogas, essa barbárie se perpetua e renova a cada período e causa todo tipo de impacto negativo às comunidades. Para além das mortes, as ações impedem o acesso dos moradores a serviços públicos e causam prejuízos às economias locais.
Mas nada disso é novo. A novidade foi a publicação nesta segunda-feira (18) de um estudo do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), intitulado “Favelas na Mira do Tiro: impactos da guerra às drogas na economia dos territórios”, que revela os números dessa guerra que, se não vence as drogas, destrói a vida das classes trabalhadoras e as economias das comunidades.
Te podría interesar
“A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas são os moradores de favelas, pobres e negros os mais prejudicados, inclusive financeiramente, por essa política do Estado. Com a pesquisa, queremos chamar atenção da sociedade para essa realidade”, afirma Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, que abriga o presente estudo.
A pesquisa ouviu 800 moradores dos Complexos da Penha e Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que foram entrevistados sobre os impactos das operações policiais no seus orçamentos anuais.
Te podría interesar
Desses, quase 90% relataram a ocorrência de tiroteios nos seus territórios e 60,4% disseram que ficaram impedidos de trabalhar nos 12 meses anteriores à pesquisa devido às ações.
O principal dado relativo ao impacto nas economias das comunidades aponta que as ações policiais resultam em prejuízos anuais de R$ 14 milhões aos moradores. Aos comerciantes e prestadores de serviços, o prejuízo é de R$ 2,5 milhões por ano, o que representa 34,2% do faturamento médio desses empreendedores.
Em ambas as favelas pesquisadas, 51,2% dos empreendimentos tiveram diminuição em suas vendas e/ou atendimentos, perdendo, em média, 54,8% do faturamento.
O estudo considera que renda média da população acima de 18 anos de idade nesses territórios é de R$ 1.652 por mês. Dessa maneira, o cálculo foi feito através do trabalho que deixa de ser realizado por causa das ações policiais, ou seja, a partir dos dias em que esses subgrupos da população ficam impedidos de trabalhar. A pesquisa aponta, então, uma perda anual de R$ 9,4 milhões. O montante é somado aos prejuízos decorrentes da reposição ou reparo de bens danificados pelas ações violentas, que chegam a R$ 4,7 milhões por ano nos dois complexos.
“É muito dinheiro e é um dinheiro que faz falta. É o custo que essas pessoas estão pagando por uma guerra que elas não pediram para estar. É o custo causado por ações violentas e desordenadas do próprio Estado”, disse a socióloga Rachel Machado, coordenadora de pesquisa do CESeC.
Além dos danos causados pela impossibilidade de manterem suas atividades, os comerciantes também tiveram eletrodomésticos e as estruturas de suas casas danificadas ou destruídas. Na Vila Cruzeiro, quase 20% dos vendedores foram prejudicados, enquanto em Mandela de Pedra, o índice foi de 9%.
Os prejuízos com a reposição ou reparo de bens danificados ou roubados em ações violentas chegam a R$ 63 mil por ano considerando todos os estabelecimentos comerciais das duas comunidades.
“Nesta lógica, predomina uma visão racista e estereotipada desses territórios que naturaliza uma série de violações de direitos aos moradores, o que não seria tolerado nas áreas ricas da cidade. Os dados coletados nesta pesquisa evidenciam os impactos individual e coletivo da violência policial”, completa Julita Lemgruber.
Outros impactos
Além dos prejuízos orçamentários, os moradores também ficaram sem acesso a serviços básicos como água e luz.
Quase 45% dos moradores foram atingidos por falta de energia elétrica por, em média, 35 horas; 32,1% relataram ficar sem internet por cerca de 28 horas e 19,3% foram atingidos por falta de abastecimento de água.
- Impedidos de pegar transporte público: 56,6%
- Impedidos de lazer: 54% dos moradores
- Impedidos de receber encomendas: 33,3% dos moradores
- Impedidos de realizar consulta médica: 32,3%
- Impedidos de estudar: 26%
Territórios
Os locais escolhidos pela pesquisa foram o Complexo da Penha e Complexo de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os dois territórios tiveram a maior incidência de tiroteios decorrentes de ações policiais entre junho de 2021 e maio de 2022, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado.
Dentro desses locais, foram selecionadas as duas favelas mais atingidas pelos tiroteios: Vila Cruzeiro, na Penha, que registrou 8 tiroteios no período estudado, e Mandela de Pedra, em Manguinhos, afetada por 10 episódios de violência armada.
“Os dados do relatório ‘Favelas na Mira do Tiro’ demonstram as consequências de séculos de exploração e violação de direitos para população pobre e preta. As favelas são quilombos urbanos, que resistem dia a dia, apesar do racismo estrutural e das mortes e perdas econômicas provocadas por ele,” avalia Rachel Machado, coordenadora da pesquisa.
Sobre o projeto
Esta é a quarta etapa do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”. A pesquisa reforça o debate sobre os impactos da proibição e da guerra às drogas com dados e análises inéditas em quatro frentes de trabalho: segurança e justiça, educação, saúde e território.
Projetos anteriores
- “Um Tiro no Pé”: revelou o gasto anual de R$ 5,2 bilhões com a implementação da Lei de Drogas (11.343/06) pelo Sistema de Justiça Criminal dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro;
- “Tiros no Futuro”: demonstrou que 74% das escolas cariocas vivenciaram pelo menos um tiroteio com policiais no seu entorno (2019) que causaram prejuízo ao desempenho escolar e à renda futura dos estudantes;
- “Saúde na Linha de Tiro”: analisou o impacto da guerra às drogas na saúde e no acesso aos equipamentos públicos de saúde para os moradores de favelas cariocas;
- “Favelas na Mira do Tiro”: aponta que a violência policial provoca perdas financeiras tanto para moradores como para comerciantes das favelas analisadas.