Em 6 de maio de 2021 havia uma determinação do Supremo Tribunal Federal para que as forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro não realizassem operações armadas nas favelas cariocas, por ocasião da pandemia de Covid-19. Mesmo assim, policiais civis empregaram uma dura operação na favela do Jacarezinho após viralizarem vídeos de supostos integrantes do Comando Vermelho exibindo armas na comunidade, em que cumpririam mandados de prisão dos criminosos identificados. O resultado: 28 pessoas executadas na favela e 1 policial morto durante a ação, no que ficou conhecido como a “Chacina do Jacarezinho”.
Nem mesmo um humilde monumento às vítimas da matança, erguido por força popular na comunidade, foi poupado pelo Estado. Pouco mais de 1 ano após o massacre, em 11 de maio de 2022, o monumento que havia sido inaugurado apenas 5 dias na ocasião do aniversário de 1 ano da ocorrência, foi completamente destruído por policiais.
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Em nota, a Polícia Civil afirmou que destruiu o memorial pois ele seria "ilegal". "O registro de ocorrência que definiu a diligência para retirada do memorial levou em consideração a apologia ao tráfico de drogas, uma vez que os 27 mortos tinham passagens pela polícia e envolvimento comprovado com atividades criminosas, além do fato de que a construção do mesmo não tinha autorização da Prefeitura do Rio de Janeiro", diz o texto da corporação.
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Após tantas humilhações e acusações vindas das autoridades, chegou a vez das famílias de 14 dessas vítimas reagirem. Em comunicado enviado à imprensa pelo escritório do advogado João Tancredo, que defende essas famílias, foi anunciado uma série de processos contra o Estado do Rio de Janeiro no qual as famílias buscam reparação pela perda dos seus entes queridos. Ao todo, 60 parentes dos jovens assassinados entram com ações indenizatórias contra o Estado. Cobram pensão, dano moral e tratamentos para saúde mental. No próximo dia 6 de maio, o maior massacre já registrado em operações policiais no Rio de Janeiro completa dois anos.
Para João Tancredo, o advogado das famílias, os pedidos de indenização se baseiam em incontáveis irregularidades cometidas pela operação que, se ignoradas pelo Judiciário, normalizarão uma escalada ainda maior de violência e terror policial nas comunidades.
“A letalidade no Rio já é das mais altas do mundo. A Polícia Civil tem uma média de quase 5 mortos por operação. No Jacarezinho esse número foi superior em aterrorizantes 460%. O crescimento dessa máquina estatal de matar precisa ser freado, isso nunca reduziu a criminalidade, apenas ampliou sofrimento do povo preto e pobre”, declarou.
Segundo a nota, as ações questionam o desrespeito da operação à decisão do STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, ao direito à investigação adequada e ao direito ao tratamento adequado dos corpos.
A ADPF 635 havia determinado que as operações policiais em comunidades deveriam ser “excepcionais, excepcionalmente cuidadosas e imediatamente justificadas”. Apesar da limitação imposta pela ADPF 635, até 26 de novembro de 2021, 766 pessoas foram mortas pela polícia nas favelas do Rio de Janeiro.
“Tudo foi descumprido no Jacarezinho: não foi excepcional pois o único objetivo era o cumprimento de 21 mandados de prisão; não foi cuidadosa uma vez que foram 28 mortos em 9 horas de operação; e não foi imediatamente justificada, já que o Ministério Público foi comunicado da operação 3 horas após iniciada”, explica Tancredo.
Além disso as ações trazem uma série de denúncias no que se refere à própria investigação criminal do episódio. Autoridades teriam alterado locais de óbito e desprezado provas trazidas pelos moradores da comunidade.
“No caso da execução do pedreiro e pizzaiolo Jonas do Carmo Santo, a polícia afirma que seu corpo foi retirado do local do crime para prestação de socorros no Hospital Municipal Evandro Freire. Entretanto, fotos e relatos dados por testemunhas, mas desprezados pela investigação, mostram Jonas baleado, estirado ao solo e já morto, dentro da favela. A perícia, por sua vez, apontou que, embora o tempo estivesse bom, encontrou o piso molhado e concluiu: ‘constatado via a presença de uma extensa mancha de sangue diluída em água, inferindo tentativa de lavagem’”, diz trecho da nota do escritório de advocacia.
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Já no caso de Matheus Gomes, uma foto do seu corpo sentado em cadeira de plástico sobre uma poça de sangue circulou na internet. A cadeira não sumiu e poderia ser periciada, no entanto não há qualquer investigação ou registro de que Matheus estivesse armado como aponta a polícia. Apenas em relação às mortes de Richard Gabriel da Silva Ferreira e Isaac Pinheiro de Oliveira os policiais acabaram denunciados por forjar as cenas do crime. Os jovens foram mortos dentro de casa quando já estavam rendidos.
“O que se viu foi a transferência da obrigação de investigar para os familiares. Os policiais responsáveis pelas execuções sequer foram afastados e, cruelmente, continuavam atuando na localidade. Cada vez que os familiares falavam com o Ministério Público recebiam a pecha de sua incapacidade de levar testemunhas”, explica o advogado.
Ações indenizatórias
De acordo com Tancredo, as ações indenizatórias pedem, como forma de reparação o pagamento de três tipos de indenização. Um deles versa sobre o dano causado pelas próprias execuções e os pedidos variam de R$ 100 mil a R$ 500 mil. Já em relação à violação do direito a uma investigação adequada e ao tratamento dado dos corpos, os valores são de R$ 50 mil e R$ 100 mil respectivamente.
Além disso, os familiares também cobram indenizações em forma de pensão, que vão de um salário mínimo a R$ 3 mil mensais, além do pagamento para tratamento de saúde mental. Os beneficiários são os filhos e dependentes das vítimas.
As famílias que agora processam o Estado choram as mortes das seguintes vítimas: Cleyton da Silva Freitas de Lima, Diogo Barbosa Gomes, Guilherme de Aquino Simões, Isaac Pinheiro de Oliveira, Jonas do Carmo Santos, Marlon Santana de Araújo, Márcio da Silva Bezerra, Mateus Gomes dos Santos, Maurício Ferreira da Silva, Natan Oliveira de Almeida, Richard Gabriel da Silva Ferreira, Rodrigo de Paula de Barros, Toni da Conceição e Luiz de Magalhães Fagundes.
O que foi a Chacina do Jacarezinho
À época dos acontecimentos, este jornalista entrevistou Raul Zibechi, analista político e jornalista uruguaio que estuda há mais de 20 anos os movimentos sociais e comunitários de toda a América Latina, tendo produzido uma série de livros e artigos sobre o tema. A entrevista tratava não apenas da realidade brasileira, como de diversos outros países do continente. Em dado momento da conversa, foi feita uma análise da Chacina do Jacarezinho. Para ele, se tratava de um recado claro dos setores milicianos infiltrados no próprio Estado do Rio ao Supremo Tribunal Federal, que havia proibido operações nas comunidades.
“Vejo que essa operação no Jacarezinho foi uma mensagem para o STF e, como disse José Claudio Alves, um dos mais profundos estudiosos da violência no Rio, o Estado fluminense é as máfias articuladas entre os complexos da polícia militar e milícias – esse é o Estado no Rio, não sei se em outros lugares também é assim, mas é perceptível que o modelo tem se ampliado durante o governo Bolsonaro. Portanto, esse Estado profundo, mafioso e violento diz ao STF: ‘nós fazemos o que queremos’. E o STF não pode fazer nada. Ainda, essa operação não foi contra o narcotráfico, mas contra o Comando Vermelho que é o único que não negocia, ou ao menos não negocia como eles gostariam, com as milícias. Ou seja, todos os narcos dão um arrego para as milícias ou para a polícia militar, o que dá no mesmo, para manter a impunidade e o negócio. O Comando Vermelho é mais complicado nesse sentido e ainda domina territórios importantes para o negócio, mesmo que esteja em retrocesso", analisou.
Em seguida, Zibechi aponta para a construção de um Estado narcoparamilitar e narcoparapolicial, assim como ocorre na Colômbia.
“Já estive na Maré, no Alemão, na Providência, em várias favelas do Rio e em muitas comunas de Medellín, e é exatamente o mesmo modelo. A milícia controla e põe impostos no transporte, nos botijões de gás, na TV, na internet, e essa é a sua fonte de financiamento. Se você estaciona o carro em um determinado lugar, eles vêm e te cobram. Isso é uma espécie de máfia, e essa máfia é o Estado em Medellín e no Rio (…) E se olhamos para o mapa do Rio, vemos bairros como o Jacarezinho, que não entravam na lógica de presença das milícias”, afirmou.
Em maio de 2022, após a Chacina do Jacarezinho completar 1 ano e logo em seguida de uma outra chacina, no Complexo da Penha, o jornalista Gil Luiz Mendes publicou no site Ponte.org, uma entrevista Caroline Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (UFF). No título, um dado interessante para o debate: “Rio de Janeiro tem 593 chacinas policiais em 14 anos”
“O que a gente têm observado, de fato, é que as operações são mais frequentes nos territórios em disputa ou nas áreas de Comando Vermelho, e muito menos frequentes nas áreas de milícia. A gente tem esse dado no nosso relatório sobre milícias, sobre bases políticas e econômicas. Essa operação em particular nem se colocou como uma operação de combate ao tráfico de drogas. Ela se propôs como uma operação para cumprimento de mandado de prisão e judiciais que estavam indo ser executados e estavam procurando criminosos. Supostas lideranças do Comando Vermelho de três estados que estariam escondidas ali”, explicou Caroline Grillo. Ela falava sobre a Chacina da Penha, mas as circunstâncias são as mesmas do Jacarezinho.
Também o presidente Lula (PT) criticou a operação. À época sequer era pré-candidato. “É grave uma operação policial terminar na morte de 25 pessoas. Isso não é segurança pública. É a ausência do Estado oferecendo educação e emprego a causa de boa parte da violência. Os brasileiros estão morrendo sem vacina, de fome e pela violência. Vidas brasileiras importam”, escreveu no Twitter.
Além de Bolsonaro não ter feito nenhum comentário, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filhos do presidente, lamentaram, apenas, a morte do policial, ignorando as outras vítimas fatais da operação. Já o então vice-presidente, general Hamilton Mourão, taxou as vítimas como “tudo bandido” e “verdadeiras narcoguerrilhas”.
Também à época, o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos fez críticas à violência policial no Rio de Janeiro e pediu investigações imparciais sobre a chacina do Jacarezinho. A entidade diz que o caso confirma o uso excessivo da força por parte de policiais no Rio. “Estamos profundamente perturbados pelos fatos”, disse Ruppert Colville, porta-voz da ONU.
Documentos comprovam execuções
No mês seguinte ao massacre, documentos obtidos pelo Globo apontam que 27 dos 28 mortos na Chacina do Jacarezinho, a mais violenta e letal das operações policiais do Rio de Janeiro, foram atingidos por nada menos do que 73 tiros.
Os laudos apontam, ainda, que quatro dos mortos foram atingidos pelas costas: Isaac Pinheiro de Oliveira, Rodrigo Paula de Barros, Cleyton da Silva Freitas de Lima e Jonathan Araújo da Silva.
Para comprovar a chacina causada pelos policiais, uma das vítimas apresentava um ferimento provocado por um disparo feito à curta distância, ou seja, execução. Trata-se de John Jefferson Mendes Rufino da Silva, de 30 anos.
Dois cadáveres apresentavam as vísceras à mostra, no momento em que deram entrada no Instituto Médico Legal (IML). Um deles é Luiz Augusto de Oliveira Faria.
O corpo de Richard Gabriel da Silva Ferreira foi atingido por seis tiros: dois tiros no peito, um na barriga, um nas costas e dois, um em cada um dos braços. Parentes dos mortos afirmam que todos foram executados. Parece que não há dúvida.
Três corpos tinham, além de feridas provocadas por tiros, escoriações por arrasto. Em cinco das seis casas onde os homicídios aconteceram, peritos encontraram marcas de sangue de corpos que foram arrastados. O socorro às vítimas demorou cinco horas.