Fui para Napoli.
Fui de trem, lotadíssimo. Muita gente de pé nos corredores e gente sentada nas escadas, muito diferente do Norte. O trem fez um milhão de paradas. Subiu e desceu muita gente no caminho. De repente apareceu um vendedor de água. Andando com um balde cheio de garrafinhas de água, me fez lembrar os vendedores de bolachas e chocolate nos ônibus de São Paulo. Me senti em casa.
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Depois de umas três horas, cheguei.
A primeira aventura foi encontrar o hotel. Ficava perto, mas como a praça na frente da estação estava em reforma, o cenário era caótico. Precisava atravessar uma rua super movimentada e me senti como uma sueca, esperando na faixa de pedestre que abrisse o sinal enquanto os locais iam atravessando a rua e driblando os carros que passavam em velocidade. Quando o sinal ficou verde comecei a sambar na frente dos carros, driblando os motoristas que não estavam nem aí para as cores do semáforo, daltônicos, acelerando sobre quem estivesse na frente.
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Primeira lição: não existem regras de trânsito, pelo menos aquelas relacionadas a semáforos e faixas de pedestres. Uma van parou do meu lado para o povo entrar e sair, como as lotações no Largo Treze, no bairro de Santo Amaro, que nessa comparação parece um pedacinho da Suíça.
Entrei em outro mundo.
O sul é muito diferente do resto da Itália que eu conheço. Enquanto cidades como Milano, Roma, Torino estão cheias de imigrantes que às vezes se movem desconectados da paisagem, Napoli está cheia de napolitanos, que vivem em equilíbrio com a sua cultura, falam sua língua, comem sua comida, se movem em sincronia, tudo com muita bagunça, muita sujeira e muita dignidade. Muito difícil também de entender o que falam porque se comunicam em napolitano ou então em um italiano arrastado, sonolento, cheio de gestos e de movimento de ombros. Mas não vi nenhum imigrante ...
E a comunicação foi um grande problema, não só no vocabulário, mas também no sentido das falas. Às 21h entrei na estação do metrô, que se confunde um pouco com a de trens porque tem alguns regionais que fazem parte da rede urbana e encontrei um trem parado na plataforma. Era exatamente o que eu queria pegar, mas não encontrei nenhuma maquininha para fazer o bilhete. Um rapaz estava parado na porta do trem conversando com alguém lá dentro e perguntei:
- Como faço para comprar o bilhete do metrô?
O rapaz respondeu primeiro com um olhar de completa surpresa, mexeu as mãos e os ombros e disse:
- Mas a essa hora? Que bilhete? .... e continuou a conversa com alguém lá dentro.
Ok, subi no trem. Sentado na segunda fila tinha um senhor com o uniforme da Ferrovia. Tentei novamente e este senhor respondeu:
- Eu não sou um cobrador, não tenho a menor ideia.
Sentei ao seu lado, relaxei e fiz a viagem sem pagar.
Bem, depois de menos de 48 horas na cidade não é que dá para escrever um guia de turismo, mas algumas coisas são legais de registrar.
Primeiro vou explicar um pouco, e superficialmente, a origem da cidade e consequentemente de seu nome.
Esta região era parte da Magna Grécia, ou seja, de origem grega e não romana. Era uma colônia chamada “Neapolis” que significa “cidade nova”, daí seu nome em versão italiana ser “Napoli”. A relação com Roma veio mais tarde, por volta do ano 300 a.C. e estava baseada em um frágil equilíbrio que alternava ameaças, guerras e declarações de amizade ou fidelidade. Neapolis era mais fraca do que o vizinho do norte mas, mesmo assim, conseguiu manter suas tradições, festas, teatros e não deixou de ser um centro refinado de cultura grega. Depois foi invadida e anexada por vários reinos e conquistadores e a experiência que deixou marcas mais permanentes foi a do período das Duas Sicílias, sob domino espanhol.
De história, por hoje tá bom?
Sobre a Gastronomia, não ouso nem começar o discurso a respeito da pizza, já que é de conhecimento até do mundo mineral (como diz Mino Carta) de que aqui nasceu a pizza no formato que conhecemos, talvez apenas relembrar que também é aqui o berço da pizza margherita, uma homenagem à rainha da Itália, no país recém unificado, em visita à cidade. Para ser servida como a bandeira italiana, o pizzaiolo fez uma pizza tricolore, vermelho, branco e verde (tomate, queijo e basílico). Acho que essa história é já conhecida.
Um pouco menos conhecido, porém, é que vem dessa região a verdadeira mozzarella di búfala. Napoli é a capital da Região da Campania, famosíssima pela produção deste queijo que é tão nobre como o vinho ou os outros produtos agrícolas italianos, que tem também o registro DOP (denominação de origem protegida).
A búfala, animal de origem asiática, tem que ser registrada em cartório e toda sua alimentação, bem como produção do queijo, é completamente controlada. Ah, o nome do queijo? Vem do verbo “mozzare” (tradução livre: cortar) que se refere a parte do processo de sua elaboração, praticada desde a Idade Média. Minha vida ficou muito mais difícil depois de comer ESSA mozzarela aqui, porque nenhuma outra versão deste queijo, produzida no norte da Itália ou no Brasil, pode se comparar em sabor e consistência. Ficou a lembrança,
Tem uma outra tradição napolitana que me apaixona tanto quanto a mozzarella: o presépio.
Em princípio se trata daquela decoração natalícia, a representação da cena de nascimento de Jesus na manjedoura, com Maria e José, a vaca, o burrinho e os três reis magos chegando.
Mas em Napoli nasceu uma tradição a partir de 1700 de se construir o presépio dedicando um certo espaço a cena sagrada, pequeno em comparação com o restante da composição, uma verdadeira obra de arte que reproduz a cidade barroca, o lado profano do cotidiano.
Se trata de um retrato da sociedade napolitana, com bonequinhos (dependendo do presépio muda a escala) feitos em barro e cheio de detalhes nos vestidos (com tecidos), representando cenas do cotidiano como o vendedor de peixe, a senhora que lava a roupa, o menino que brinca, a barraca de frutas ou de carnes, os pastores com seus rebanhos, o rio que passa sob a ponte, a mulher que canta do terraço da casa, o músico que toca, tudo ambientado na cidade napolitana e feitos à perfeição de uma beleza impressionante.
Existem alguns museus dedicados aos presépios barrocos tradicionais, mas se trata de uma tradição ainda viva e encontrei inúmeros ateliers no centro de Napoli que produzem e vendem as figuras para quem quiser montar o seu presépio: pessoinhas e todos os elementos necessários para compor a cidade, como o tijolinho para fazer a casa, a janelinha, o poste de luz, o terraço, a banca com todas as frutas coloridas, os bebês de colo, o tanque de lavar roupa, os animais, tudo muito rico em detalhes.
Uma explicação interessante sobre a cena de Jesus, Maria e José: no presépio napolitano eles não estão em um estábulo nem em numa gruta, estão sempre no meio de ruinas do que seria a cidade greco-romana, entre restos de colunas que poderiam ser de um templo. Representa fisicamente as origens da cidade, construída sobre as ruinas da antiga Neapolis, mas tem também um significado subjetivo, da vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs.
E quem teve a ideia de fazer essa representação tão lúdica da cena do dia 25 de dezembro?
Parece que foi São Francisco de Assis, no início do século XIII. Ao reconstruir com bonecos a cena do nascimento de Jesus, ele contaria aos pobres analfabetos e iletrados a História do Natal.
Não sei se é verdade, mas foi, sem dúvida, super didático!!
Aí, fui passear na beira mar, buscando um local para jantar.
Como estava ficando tarde, parei em um restaurante para perguntar sobre o horário de fechamento. O rapaz me fitou como se olhasse um extraterrestre. Depois pronunciou alguma coisa, tipo: fechar? Horário? Levantou o queixo como quem provoca, franziu a testa e disse:
- Pergunta aos clientes quando eles querem ir embora.
Depois do jantar, voltando para o hotel, vi um ônibus que ia naquela direção, parado no ponto.
Subi no ônibus, não perguntei nada para o motorista, não tentei pagar nenhum bilhete, apenas me sentei e napolitanamente admirei a paisagem!
Abraços!
*Esther Rapoport é graduada em História pela Universidade de São Paulo, mas se dedicou nos últimos 40 anos à indústria do Turismo, tendo trabalhado em diversas empresas do setor além de oferecer palestras e cursos para profissionais do turismo e viajantes curiosos, interessados em ampliar seu repertorio sobre a História dos mais variados destinos do planeta. Mora atualmente na Alemanha
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