APOROFOBIA

Combater a fome não é crime: o direito ao alimento tem que ser protegido em SP - Por Débora Lima

Tentativa de setores da Câmara dos Vereadores com PL da Fome foi mais uma forma de ataque aos que lutam contra a desigualdade

Débora Lima segura cartaz contra a fome.Créditos: Felipe Penteado
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São Paulo, uma das maiores capitais da América Latina e do mundo, deveria estar sintonizada nos principais debates em voga hoje no planeta: alimentação plena, justiça climática, mobilidade urbana conectada e sem emissão de carbono, economia criativa, centros de oportunidades e inclusão digital dos serviços. No entanto, o que temos visto é a cidade com o maior orçamento do Brasil ser exemplo do atraso. Na última semana, foi aprovado na Câmara dos Vereadores, em primeiro turno, um PL de autoria do vereador Rubinho Nunes que restringe a doação de comida na capital paulista aos mais necessitados, inclusive multando em R$ 17 mil quem fizesse um dos mais básicos atos de solidariedade do ser humano.

De acordo com o próprio vereador Rubinho, a ideia do projeto de lei era não dar vida fácil às "ONGs do centro de SP e militantes do [Padre] Júlio Lancellotti", basicamente serviços que ofertam alimentos de forma gratuita para pessoas em situação de fome e vulnerabilidade, a grande maioria em situação de rua. O parlamentar, que se descreve como cristão nas redes sociais, decidiu – e teve apoio da maioria na Casa em que legisla – que um dos problemas da cidade era justamente a caridade, um fundamento do cristianismo.

Um claro caso de aporofobia, o ódio aos mais pobres, que poderia rapidamente - afinal, aprovado em primeira votação em 32 segundos - ter virado lei não fosse a forte mobilização popular, que fez com que Rubinho Nunes recuasse, observada a clara rejeição que a proposta teve perante a sociedade – incluindo os mais conservadores e religiosos. O vereador de ultradireita, inclusive, fez questão de mencionar, em sua “comemoração” à primeira aprovação do PL 445/23, que apenas o PSOL e o PT tinham sido contrários durante a votação no plenário. Não se trata, portanto, de um caso isolado.

A sanha de punir quem pratica a solidariedade e criminalizar a própria miséria é parte de um projeto ultraindividualista da extrema direita, guiada pelo bolsonarismo que abriga tanto o vereador Rubinho Nunes como o prefeito Ricardo Nunes. Ou seja, esse projeto é mais uma faceta do bolsonarismo na prefeitura da cidade. Basta ver a forma como tratam há muito tempo essas pessoas em situação de vulnerabilidade: remoção de colchões, repressão e violência, retirada forçada de locais na cidade através de arquitetura hostil ou mesmo jatos d’água, além da precarização e encerramento de serviços básicos que amparam e trazem oportunidades para esses mesmos cidadãos e cidadãs, como o antigo “Braços Abertos”, que foi eficaz.

O PL da Fome foi mais uma tentativa de radicalização desse projeto, que já permeia uma política de morte. E que tem encontrado eco inclusive nas polícias, que vêm barrando, através de pedidos abusivos e sem qualquer ordem judicial, a entrega de marmitas em diferentes pontos da cidades, ações importantes que garantem alimento para muita gente. Estamos vivendo isso nas Cozinhas Solidárias, projeto do MTST do qual sou uma das fundadoras e que já serviu mais de 3 milhões de marmitas desde o seu início.

Meu envolvimento com as Cozinhas Solidárias e minha própria relação com a fome, tema que marcou a minha trajetória de maneira muito profunda e sensível, faz com que um projeto de lei que impede o combate à fome mexa comigo de maneira ainda mais particular. O sentimento de indignação, no entanto, não é passivo e nem determinado pelo recuo de um vereador que já mostrou que trabalha para setores muito específicos da sociedade, não para o povo, o qual ele se recusa a ouvir. Nosso sentimento é guiado pela luta e pela crença de que a solidariedade é nosso dever político, cidadão e humano.

É importante essa compreensão coletiva para que a mera possibilidade de criminalização da pobreza e da fome tenha um enfrentamento imediato de nossa parte – do campo progressista e de todos aqueles que entendem combater a miséria como um tema central para avançarmos como cidade. Não podemos recuar frente a esses ataques que encontram força entre aqueles que deveriam representar o povo, mas além disso também devemos propor uma nova ideia de cidade, que acolha os mais vulneráveis, que tenha planos concretos de saúde pública, urbanismo e segurança pública para tornar as ruas mais seguras e o povo mais protegido, sendo a pobreza tratada da forma adequada: com assistência, alimento, moradia e oportunidades. São Paulo tem que ser para todos, e quem tem fome, tem pressa.

*Débora Lima é presidenta do PSOL e coordenadora nacional do MTST e fundadora das Cozinhas Solidárias do MTST.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.