Durante meus já idos anos de boemia universitária, quando em torno de uma mesa, ou numa sala, os debates políticos se acaloravam, lembro um amigo que exclamava entre baforadas, ‘Meus caros, o buraco não é bem mais fundo… O buraco não tem fundo’, e com isso iniciava suas análises sobre a avidez sem limite do mercado, avançando sobre nossas vidas com garras afiadas.
Nesses dias, em que o inimaginável se torna notícia, e que o Congresso brasileiro, sob a regência da extrema direita, e, dentro dela, a ‘Bancada Evangélica’, avança sobre os corpos das mulheres sem piedade, ouso cavar um pouco mais em busca de uma explicação para a aparente irracional, fundamentalista e idiota ideia de punir as mulheres por aborto, inclusive quando estupradas, inclusive com penas que chegam ao dobro das penas dos estupradores.
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Convenhamos, tal imbecilidade vem de um grupo parlamentar que age contra os trabalhadores e os direitos trabalhistas, a favor das mega corporações e do agronegócio latifundiário, grileiro e venenoso, em favor de milicianos e uma economia tecnocrata e aporofóbica. É óbvio que tais representantes não estão imbuídos de um espírito religioso, pois a religiosidade neles funciona como a meia fina calçada na cara de um bandido, para disfarçar suas verdadeiras feições, monstros que são.
Não há dúvida de que a misoginia é marca forte do caráter deformado desses cães selvagens soltos pela ignorância pseudoneopentecostal programada. No entanto, tais larápios não se levantam e trabalham apenas para agradar aos seus currais eleitorais. Agradar ao gado com seu discurso contrário a qualquer aborto é apenas um benefício a mais dessa empreitada. O que eles realmente intencionam é mais grave ainda do que o mal que prometem às meninas e às mulheres. Eles querem foder é o povo inteiro.
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Nenhuma mulher de classe média ou abastada, que tenha recursos financeiros para abortar discretamente pagando pela colaboração de médicos e clínicas clandestinas, é ou será atingida pela criminalização do aborto. Ele será coibido, dificultado e impossibilitado nas camadas mais pobres da nossa sociedade.
É tão falsa a oposição religiosa ao aborto que não temos notícias de perseguição, investigação e punição das clínicas clandestinas que operam nas regiões nobres desse país, ano após ano, atendendo às mulheres que as podem pagar. O que seria então que realmente faz com que os deputados de direita, extrema direita e alienados fundamentalistas se organizem para votar um projeto tão vergonhoso?
Na primeira década deste século, apesar do mugido grosseiro do gado, que alega que assistência social e bolsa família faria com que os pobres tivessem mais filhos, ocorreu exatamente ao contrário. Com as classes sociais mais vulneráveis acessando mais recursos e direitos, entre eles a educação e a saúde, vêm assimilando mais comportamentos de controle da concepção e, consequentemente, verifica-se um declínio significativo da natalidade.
Isso não é interessante para o “mercado”. O mercado, que a direita e os pseudocristãos defendem com unhas e dentes nojentos, precisa que a natalidade entre os pobres seja alta, que cresça e que mantenha as fileiras de desempregados e miseráveis. São essas fileiras que mantêm o salário mínimo num patamar desumano, que encorajam o pobre a desempenhar o melhor de si oito horas por dia, enfrentando também horas de transporte, alimentando-se e à sua família de forma insuficiente, mesmo quando trabalham, e sem reclamar, sem fazer greve, sem quebrar a porra toda. Quando não há trabalho para todos, são os pobres que disputam entre si por um rendimento pífio, e não os empregadores que precisam se tornar atrativos.
Também não é de interesse do crime organizado, que coopta desempregados e desesperados para suas fileiras, que as classes vulneráveis se organizem, se equilibrem no planejamento familiar e ascendam socialmente e na qualidade de vida. Isso ameaça toda a ecologia do seu sistema.
O Projeto de Lei 1904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares eleitos por gente sem consciência de classe, apesar das aparências, não responde a um princípio religioso, ainda que torto. O mercado e o crime organizado precisam que o excedente dos trabalhadores seja parido. “Crente” aplaudir é só efeito colateral desejável.
*Aurélia Hubner Peixouto é doutoranda em Design no IADE, Universidade Europeia, Professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa no IFES e autora de videopoemas em Poemas Perdidos.