MODA E POLÍTICA

Roupas para resistir ao imperialismo

No mês da moda nos países ricos, conheça as vestimentas dos países pobres que são cheias de significados de luta e resistência

Créditos: Fotomontagem Instagram @peoples.assembly - Moda revolucionária
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Enquanto as semanas de moda de Nova York, Londres, Paris e Milão exibem as marcas mais luxuosas e celebradas do mundo, essas passarelas, repletas de trajes extravagantes, destacam uma realidade distante para muitos.

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O brilho e glamour desses eventos dos países ricos como Estados Unidos, Reino Unidos, França e Itália não apenas reforçam o classismo, mas também alimentam a indústria da moda rápida, o fast fashion, que impacta negativamente o Sul Global com poluição e exploração.

Para se ter uma ideia da dimensão desse estrago, o Norte Global usa os países pobres como lixão de roupas que não querem mais. Até 40% das roupas usadas e exportadas para países da África Oriental, como Quênia e Tanzânia, não têm valor de mercado e nada mais são do que resíduos têxteis. 

Mas há outra moda, longe dessas passarelas festejadas, que merece ser celebrada: a moda da classe trabalhadora. Cada costura, tecido e detalhe nas roupas do cotidiano conta uma história de luta, resiliência e arte.

Essas vestimentas são carregadas de identidade coletiva e representam a resistência contra o sistema que valoriza o luxo em detrimento das realidades sociais e ambientais que o sustentam. É nessa moda, a moda das massas, que se encontra uma verdadeira conexão com a identidade cultural e o espírito de resistência.

Moda decolonial

Uma das maneiras de resistência dos países do Sul Global à hegemonia do Norte Global, no caso da moda, é por meio da decolonialidade.

Essa forma de pensamento crítico tem potencial de impactar a indústria ao promover a conscientização e a valorização das tradições culturais e artesanais de povos historicamente marginalizados, ao questionar as narrativas e estruturas de poder colonialistas que ainda dominam o setor.

Esse movimento de moda decolonial é uma resposta à moda hegemônica, que frequentemente explora o trabalho de comunidades do Sul Global sem lhes dar o devido reconhecimento, além de apropriar-se culturalmente de símbolos e vestimentas.

A decolonialidade propõe a celebração de práticas artesanais de comunidades indígenas e locais, garantindo que essas técnicas tradicionais sejam preservadas e que os artesãos sejam justamente remunerados.

A moda decolonial incentiva o respeito e a autenticidade na utilização de elementos culturais, evitando a apropriação sem reconhecimento ou envolvimento com as comunidades de origem.

A decolonialidade questiona a lógica capitalista da moda rápida, que é altamente poluente e explora trabalhadores de países do Sul Global. Em vez disso, promove a produção lenta e sustentável, valorizando o comércio justo e a economia circular. A moda decolonial busca diminuir o impacto ambiental e promover a equidade no trabalho.

Os designers decoloniais estão assumindo o controle das histórias contadas por meio de suas criações, proporcionando visibilidade às identidades não hegemônicas e rompendo com padrões eurocêntricos. Isso inclui marcas lideradas por designers indígenas, afrodescendentes e de comunidades marginalizadas, que utilizam a moda como uma plataforma para recontar histórias de opressão, luta e resistência.

Vestimentas do Sul Global

Huipil (México e América Central)

Fotomontagem Instagram peoples.assembly e Wikipedia - A artista mexicana Frida Kahlo tinha uma bela coleção de Huipil

O Huipil é uma vestimenta tradicional que mulheres no México e na América Central têm usado há séculos. Ele simboliza a resistência à colonização e a preservação do patrimônio cultural. Essas túnicas folgadas são feitas unindo pedaços de tecido, geralmente de algodão. Elas são adornadas com designs intrincados que contam histórias únicas.

O huipil é um testemunho da luta contínua pela preservação cultural e soberania, e é possível ver muitos zapatistas usando essa vestimenta, conectando os usuários às suas raízes ancestrais, ao mesmo tempo que permanece uma peça prática e duradoura.

A túnica longa e solta, geralmente feita de algodão ou linho, decorada com bordados coloridos e padrões intrincados que variam conforme a região e o grupo étnico que o confecciona. O huipil não só é uma roupa prática, mas também carrega um grande significado cultural e histórico, representando identidade, herança e a continuidade das tradições indígenas.

O processo de confecção do huipil é artesanal, muitas vezes utilizando teares de cintura e técnicas de tecelagem que foram passadas de geração em geração. Cada huipil pode contar uma história, desde o estado civil da mulher até suas raízes e crenças espirituais. O design e os motivos utilizados nos bordados variam dependendo da comunidade, sendo que cada região tem sua própria identidade visual.

Além de ser um símbolo de resistência cultural e preservação de tradições, o huipil tem sido incorporado em movimentos decoloniais e anticapitalistas que valorizam o trabalho manual e criticam a apropriação cultural e a exploração das comunidades indígenas.

Frida Kahlo, a icônica artista mexicana, é conhecida por sua arte profundamente pessoal e pela maneira como usou a moda para expressar sua identidade e herança cultural. Um dos elementos mais marcantes de seu estilo pessoal era o huipil, uma blusa tradicional indígena mexicana, típica de várias culturas indígenas da Mesoamérica, como as zapotecas e mixtecas.

Camisa Guayabera (Cuba/América Latina)

Fotomontagem Instagram @peoples.assembly e Governo da Colômbia - Fidel Castro popularizou o uso da vestimenta, adotada por políticos que visitam a América Latina.

Com diversas histórias de origem, a guayabera é uma peça essencial em climas tropicais, conhecida por ser tanto prática quanto estilosa. Ela é caracterizada por ser feita de algodão ou linho leves, possuir vários bolsos e detalhes bordados.

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A adoção da guayabera por Fidel Castro durante a Revolução Cubana a transformou em um símbolo de luta da classe trabalhadora e identidade socialista. Ela continua sendo extremamente popular até hoje em muitos países da América Latina.

Hoje, a guayabera continua sendo uma peça popular em muitos países da América Latina e também em outras partes do mundo, tanto como uma roupa tradicional quanto como um ícone da moda contemporânea.

Faso Dan Fani (Burkina Faso)

Fotomontagem Instagram @peoples.assembly e Wikipedia - Thomas Sankara deu destaque ao tecido local Faso Dan Fani

O Faso Dan Fani é um tecido tradicional de Burkina Faso conhecido por seu significado cultural e político. O nome significa "o tecido do país" no idioma local Dioula, e é amplamente associado à identidade nacional do país.

Esse tecido ganhou destaque nas décadas de 1970 e 1980, especialmente durante a presidência de Thomas Sankara, um líder revolucionário, anticolonialista e pan-africanista de Burkina Faso.

Sankara incentivou o uso do Faso Dan Fani como parte de um movimento de autossuficiência e independência cultural, instando os cidadãos a adotarem produtos locais e rejeitarem roupas importadas.

Ele promovia o tecido como um símbolo de resistência ao imperialismo e à colonização, defendendo a produção local e o trabalho manual como uma forma de promover o desenvolvimento econômico e a soberania cultural.

Mesmo após o assassinato de Sankara em 1987, o Faso Dan Fani continuou a ser produzido e celebrado como um símbolo da luta anticolonial. Com o passar dos anos, o tecido passou por uma revitalização, ganhando popularidade novamente em movimentos culturais e na moda, tanto em Burkina Faso quanto internacionalmente.

O Faso Dan Fani é tradicionalmente tecido à mão, utilizando algodão local, e seus padrões variam entre diferentes grupos étnicos e regiões de Burkina Faso. Ainda hoje, ele é celebrado como um símbolo de orgulho nacional e resistência cultural.

Tecido Kente (Gana/África Ocidental)

Fotomontagem Instagram @peoples.assembly e Portal Geledés - Kwame Nkrumah ajudou a difundir o estilo originário do reino Ashanti.

Os padrões e cores intricados do tecido Kente contam histórias de cultura, filosofia e história. Frequentemente usado por líderes e ativistas, desempenhou um papel nas lutas anticoloniais e no pan-africanismo.

Entre os que ajudaram a difundir esse estilo está Kwame Nkrumah, o líder socialista e de independência que se tornou o primeiro presidente de Gana, era conhecido por usar regularmente o tecido tradicional Kente, que simbolizava a identidade e o patrimônio cultural ganenses. O Kente serviu como inspiração para africanos tanto no continente quanto na diáspora.

O tecido tradicional da África Ocidental, originário do reino Ashanti, lé caracterizado por suas cores vibrantes, padrões geométricos intrincados e significados culturais profundos. Ele é feito a partir de tiras de seda ou algodão, que são tecidas à mão e depois costuradas juntas para formar uma peça maior. Cada padrão e cor no Kente possui um simbolismo específico, muitas vezes relacionado à herança, poder, espiritualidade e status social.

Historicamente, o tecido Kente era reservado para a realeza e usado em cerimônias importantes, como coroações e rituais espirituais. No entanto, ao longo do tempo, ele se tornou amplamente utilizado em diversas ocasiões, simbolizando orgulho cultural e identidade.

Além de sua importância cultural em Gana, o Kente também ganhou destaque global, sendo reconhecido como um símbolo da diáspora africana e de solidariedade com as lutas pela liberdade e identidade.

Hoje, o tecido Kente é usado em todo o mundo, tanto em contextos formais quanto informais, como uma expressão de conexão com as raízes africanas e com os movimentos anticoloniais.

Keffiyeh (Palestina/Região Árabe)

Fotomontagem Instagram @peoples.assembly e Flickr (Mhamad Kleit) - Leila Khaled ajudou a difundir o uso do keffiyeh como símbolo da resistência palestina

O keffiyeh/kufiyyeh é um adereço tradicional árabe. Embora exista em várias cores, o preto e branco se tornou o mais popular. Normalmente é feito de algodão e adornado com padrões tecidos distintivos que retratam a vida palestina.

As listras pretas grossas simbolizam antigas rotas comerciais, o design de rede de pesca representa os laços dos palestinos com o Mar Mediterrâneo, e as linhas curvas lembram oliveiras.

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O keffiyeh se tornou um símbolo da resistência palestina durante a década de 1960 e a Primeira Intifada. Nos últimos anos de genocídio em Gaza e com o aumento da violência na Cisjordânia, o keffiyeh ganhou destaque global como um símbolo de solidariedade contra o genocídio israelense.

Uma personagem que ajudou a projetar a imagem do keffiyeh como símbolo de solidariedade palestina foi a ativista Leila Khaled, conhecida por sequestrar um avião.

Em 1948, aos quatro anos de idade, Leila foi forçada a deixar a Palestina durante a Nakba, o êxodo imposto ao povo palestino pelos colonialistas sionistas, e fugiu para o Líbano com sua família. 

Aos 15 anos de idade Leila se juntou ao Movimento Nacionalista Árabe e mais tarde se tornou membro da Frente Popular para a Libertação da Palestina. 

Tornou-se a primeira mulher a sequestrar um avião em 1969, ao confiscar o voo 840 da TWA, que ia de Roma a Tel Aviv. Em setembro de 1970, sua segunda tentativa de reter outra aeronave, que fazia o voo 219 da El Al, que ia de Amsterdã para Nova York, falhou, e ela foi presa na Grã-Bretanha. 

Mais tarde, ela foi libertada em troca de reféns. Ela publicou uma autobiografia em 1973 narrando suas experiências como revolucionária e continua sendo um ícone da resistência palestina até hoje.

O uso do keffiyeh por mulheres como ela transformou o lenço de um item prático masculino para um símbolo de resistência e inspiração.

Jaqueta Nehru (Índia)

Fotomontagem Instagram @peoples.assembly e First Look Fashion - Jawaharlal Nehru, o primeiro-ministro da Índia independente, popularizou o uso desse estilo.

A jaqueta Nehru se tornou um símbolo da independência da Índia em relação à colonização britânica. Esta vestimenta de tecido khadi, com comprimento até o quadril, foi popularizada por Jawaharlal Nehru, o primeiro-ministro da Índia independente, que usava essa peça de inspiração tradicional em uma época em que as roupas ocidentais estavam se tornando a norma.

O design minimalista, porém tradicional, da jaqueta refletia a visão de Nehru de uma Índia moderna, liberta de seus opressores coloniais. Popular até hoje, a jaqueta Nehru continua sendo um símbolo da resistência indiana ao imperialismo.

Nehru usava essa jaqueta como parte de seu compromisso com a promoção de uma identidade indiana distinta, que rejeitava a moda ocidental imposta pelos colonizadores britânicos.

A jaqueta se tornou um símbolo de orgulho nacional, independência e autossuficiência. Nehru escolheu o khadi, um tecido feito à mão, como parte de seu movimento de resistência ao imperialismo, enfatizando a importância de valorizar a produção local e as tradições culturais.

Até hoje, a jaqueta Nehru continua a ser um ícone da moda, tanto na Índia quanto internacionalmente, associada ao movimento anticolonial e à luta pela independência, e é frequentemente usada por figuras políticas e culturais que buscam evocar um senso de história e patriotismo.

A peça se popularizou no século 20 com um estilo caracterizado por seu colarinho mandarin (colarinho curto e sem abas), corte minimalista e comprimento geralmente até o quadril.

A peça é feita de tecidos como algodão ou khadi - tecido artesanal feito de algodão, lã ou seda, fiado e tecido à mão, que tem profundas conexões históricas e culturais com a Índia - frequentemente usada em eventos formais e em situações que exigem uma vestimenta elegante, mas com um toque tradicional.

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