A Justiça Militar brasileira segue um padrão de aplicação de penas que favorece oficiais e pune com maior severidade os praças e soldados. A hierarquia e a disciplina são os pilares do Direito Penal Militar, mas a prática jurídica do Superior Tribunal Militar (STM) demonstra que, quando se trata de corrupção ou crimes financeiros, oficiais recebem penas desproporcionais ao dano causado ao erário público.
Três casos julgados recentemente pelo STM ilustram essa disparidade na aplicação da lei. Enquanto praças envolvidos em furtos e irregularidades menores receberam penas de reclusão significativas, oficiais envolvidos em fraudes milionárias tiveram penas simbólicas ou substituíveis por restrições de direitos.
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Caso 1: Capitão condenado por peculato – 4 anos de reclusão
No primeiro caso, um capitão do Exército foi condenado a 4 anos de reclusão por peculato. O oficial foi acusado de desviar pneus de viaturas militares, causando um prejuízo estimado de R$ 300 mil. Segundo a denúncia do Ministério Público Militar (MPM), o capitão acessava materiais destinados à manutenção das viaturas e os desviava para uma borracharia, recebendo valores indevidos e repassando os itens a terceiros.
Durante a investigação, descobriu-se que o capitão fez mais de 600 ligações para a borracharia, negociando o destino dos pneus desviados. O esquema só foi descoberto após auditorias internas do Exército identificarem inconsistências nos registros de peças substituídas.
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Apesar da gravidade do crime e do prejuízo ao patrimônio público, a Justiça Militar permitiu a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, flexibilizando a punição imposta ao oficial.
Caso 2: Soldado e civil condenados por furto de munições – 5 anos e 6 meses de reclusão
No segundo caso, um soldado e um civil foram condenados por furtar munições do Exército e revendê-las no mercado ilegal. A investigação revelou que o militar desviava projéteis de calibres 5.56, 7.62 e .50, que foram posteriormente repassados a terceiros. O desvio foi identificado após uma auditoria interna e resultou na abertura de um inquérito policial militar.
Os réus foram julgados pela Justiça Militar, que impôs as seguintes penas:
- Soldado: 5 anos e 6 meses de reclusão, em regime fechado.
- Civil: 3 anos e 12 dias de reclusão, em regime aberto.
A severidade da pena aplicada ao soldado decorre do entendimento de que crimes cometidos dentro da estrutura militar afetam a hierarquia e a disciplina, o que é considerado mais grave do que o próprio impacto financeiro da infração.
No julgamento, o soldado tentou alegar que desconhecia as consequências do desvio, mas a Corte considerou que ele tinha plena consciência do ato. O juiz enfatizou que o militar agiu de forma premeditada e que a violação da disciplina era inaceitável dentro das Forças Armadas.
Caso 3: Fraude de R$ 46 milhões em licitação – apenas 1 ano de detenção
O terceiro caso ilustra a maior disparidade no tratamento judicial. Oficiais de alta patente foram condenados por envolvimento em um esquema de fraude em licitação, que causou um prejuízo de R$ 46 milhões aos cofres públicos. A fraude envolvia contratos superfaturados para a aquisição de equipamentos hospitalares destinados a unidades militares.
Embora o crime tenha sido comprovado e envolvesse uma quantia muito superior aos outros casos, os militares receberam penas de apenas 1 ano de detenção, com possibilidade de substituição por pena alternativa.
O crime de fraude à licitação está previsto na Lei 8.666/1993, com pena estipulada entre 2 a 6 anos de reclusão. No entanto, a Justiça Militar optou por aplicar o mínimo possível, desconsiderando o impacto financeiro e a gravidade da infração. O caso foi mostrado anteriormente por esta coluna.
A lógica da Justiça Militar: proteger a hierarquia, não o patrimônio público
A análise dos três casos revela um padrão claro: a hierarquia e a disciplina militar pesam mais que o dano ao erário público. Crimes cometidos por praças e soldados, mesmo que envolvam valores menores, são punidos com mais rigor do que fraudes milionárias praticadas por oficiais de alta patente.
A distorção fica evidente ao comparar as penas:
- O capitão que desviou R$ 300 mil recebeu 4 anos de reclusão, com possibilidade de pena alternativa.
- O soldado que furtou munições recebeu 5 anos e 6 meses de prisão.
- A fraude de R$ 46 milhões, realizada por oficiais, resultou em apenas 1 ano de detenção, substituível por pena alternativa.
A seletividade da Justiça Militar gera uma proteção sistêmica para oficiais de alta patente, enquanto praças enfrentam penas duras por crimes que, embora graves, causam impacto financeiro menor.
Impunidade e corporativismo dentro da Justiça Militar
O Superior Tribunal Militar é composto majoritariamente por oficiais-generais, o que favorece um sistema de julgamento no qual os altos escalões são tratados com mais benevolência. Isso explica por que fraudes milionárias são punidas de forma branda, enquanto infrações menores cometidas por soldados resultam em penas mais severas.
Essa estrutura levanta questionamentos sobre a imparcialidade do tribunal e sobre a necessidade de reformular a Justiça Militar para que crimes de corrupção dentro das Forças Armadas sejam julgados com o mesmo rigor que delitos comuns.
Enquanto isso, a mensagem enviada pela Justiça Militar é clara: desviar milhões pode ser um problema menor do que desafiar a disciplina interna das Forças Armadas.