As recentes revelações trazidas pela delação premiada de Mauro Cid e pela denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) expõem uma realidade incontestável: as Forças Armadas brasileiras carecem de uma reforma urgente em sua formação. O envolvimento de oficiais superiores em uma trama para deslegitimar o processo eleitoral e atentar contra a democracia não é um fenômeno isolado, mas sim a manifestação de um problema estrutural enraizado na cultura militar brasileira.
Envolvimento militar e risco à democracia
A PGR apontou, na denúncia, que generais da ativa e da reserva, entre eles Augusto Heleno e Braga Netto, participaram ativamente de uma organização criminosa com o objetivo de impedir a posse de um governo democraticamente eleito.
A delação de Mauro Cid revela que esses militares mantinham contatos frequentes com grupos políticos e planejavam abertamente ações de desestabilização do regime democrático. A partir das mensagens obtidas na investigação, fica claro que a articulação entre líderes militares e políticos antidemocráticos ocorreu com o aval de setores formados dentro da doutrina militar, que ainda enxergam a política como uma área de possível intervenção castrense.
Trocas de mensagens e registros obtidos pela investigação indicam que a tentativa de golpe de Estado foi debatida internamente por membros das Forças Armadas, evidenciando um alinhamento político-ideológico que contraria o papel constitucional dessas instituições. A atuação desses militares confirma que há brechas na formação militar que permitem a perpetuação de visões autoritárias e antidemocráticas.
O legado de 1964 e a cultura militar
A prática de associar as Forças Armadas a projetos políticos não é recente. Nos quartéis, a narrativa sobre o golpe militar de 1964 é apresentada sob uma perspectiva que o exime de suas violações, tornando-o uma ação justificável e, por vezes, glorificada.
Um exemplo concreto disso é a 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, localizada em Juiz de Fora, Minas Gerais, conhecida como “Brigada 31 de Março” — uma referência direta ao golpe de 64. O próprio nome da unidade militar evidencia como a história do autoritarismo é preservada como um legado positivo dentro da instituição, sem a devida contextualização sobre os crimes cometidos durante a ditadura.
A delação de Mauro Cid comprova que essa visão histórica distorcida influencia diretamente as atitudes de militares em posições de comando. A naturalização da ruptura democrática como instrumento legítimo dentro das Forças Armadas faz com que a ideia de golpe de Estado permaneça como uma possibilidade plausível em determinados círculos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Essa abordagem distorcida cria uma percepção equivocada nos militares sobre o papel que devem desempenhar na sociedade, alimentando o revisionismo histórico e a crença de que intervenções militares podem ser legítimas.
Formação militar e riscos institucionais
A delação de Mauro Cid e os documentos anexados pela investigação deixam claro que oficiais militares viam o retorno a um regime de exceção como uma alternativa viável, o que demonstra falhas profundas na formação desses agentes.
A educação militar, ao longo das décadas, focou mais na criação de agentes políticos do que na formação de profissionais voltados à defesa nacional dentro dos marcos democráticos. Em vez de garantir que os militares atuem como servidores do Estado brasileiro, a formação atual muitas vezes os transforma em potenciais agentes de ruptura institucional, com lealdades não à Constituição, mas a grupos políticos específicos.
Além disso, a denúncia da PGR demonstra que a existência de um grupo articulado entre militares e políticos foi fundamentada em uma visão ultrapassada do papel das Forças Armadas, que ainda se enxergam como tutoras da República. Essa percepção reforça a necessidade de uma revisão ampla da formação dos militares, colocando o compromisso democrático como eixo central do ensino nas academias militares.
Falta de fiscalização e controle externo
Além disso, há evidências de que a estrutura militar brasileira carece de um maior controle externo. A falta de fiscalização sobre os currículos dos cursos militares permite que discursos ultraconservadores sejam disseminados entre os oficiais sem qualquer contestação.
É fundamental que as instituições militares passem por uma revisão curricular abrangente, garantindo que a formação de seus integrantes esteja alinhada com os princípios democráticos e com o respeito aos direitos humanos.
A atual conjuntura expõe um vácuo institucional que precisa ser preenchido com medidas que reforcem a responsabilidade e a transparência dentro das Forças Armadas.
A necessidade de uma reforma estrutural
Diante desse quadro, é fundamental discutir uma reforma estrutural na formação dos militares. A formação acadêmica nas instituições militares deve incluir um ensino mais aprofundado sobre democracia, direitos humanos e a história recente do Brasil, com um olhar crítico sobre os impactos do golpe de 64 e da ditadura.
Além disso, é essencial o fortalecimento do controle civil sobre as Forças Armadas, garantindo que sua atuação esteja alinhada às necessidades da defesa nacional e não a projetos de poder.
A criação de mecanismos de auditoria e supervisão independentes poderia ajudar a mitigar esse problema, garantindo que a formação dos militares ocorra dentro dos parâmetros constitucionais.
A solução passa por uma reforma profunda na estrutura curricular das academias militares, retirando o viés ideológico e substituindo-o por uma formação voltada à defesa do Estado brasileiro, da soberania nacional e da segurança das instituições democráticas.
Algumas medidas são fundamentais:
- Revisão curricular – Introduzir o estudo crítico do regime militar, incluindo as violações de direitos humanos e os abusos cometidos pela ditadura.
- Maior controle civil – O Ministério da Defesa e as Forças Armadas devem ter um conselho civil que acompanhe a formação e a atuação dos militares.
- Treinamento em valores democráticos – Oficiais devem ser preparados para atuar dentro da legalidade, respeitando a Constituição e os limites de sua função.
- Fim das celebrações ao golpe de 64 – O Estado brasileiro não pode mais tolerar que unidades militares prestem homenagens a um regime que violou direitos fundamentais.
Um alerta para o Brasil
Os fatos revelados pelas investigações são um alerta inadiável: a permanência de uma cultura antidemocrática dentro das instituições militares representa uma ameaça real ao Estado de Direito.
Reformar a formação dos militares não é apenas uma questão pedagógica, mas um imperativo para a estabilidade institucional do Brasil. O fortalecimento da democracia exige que as Forças Armadas sejam reconfiguradas para atuar estritamente dentro dos limites constitucionais, abandonando qualquer inclinação a projetos de ruptura institucional.
O Brasil não pode mais ignorar os sinais de alerta: sem uma reforma profunda e urgente, as instituições militares continuarão a ser um fator de instabilidade política e um risco à democracia.