SÃO PAULO

Cracolândia: Guarda Civil está proibida pela Justiça de dispersar usuários

Decisão vem às vésperas das eleições municipais, momento em que historicamente há um aumento de operações na região; Relembre a história do bairro

Guarda Civil Metropolitano na Cracolândia em 24 de junho de 2024.Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil
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A juíza Gilsa Elena Rios, da 15ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, determinou nesta terça-feira (25) que a ação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região conhecida como “cracolândia”, no centro da capital paulista, deve ser limitada. Entre as limitações, impede que os guardas atuem “em qualquer operação de natureza policial militar no território dos Campos Elísios e Luz”.

Na prática, a GCM não poderá mais utilizar balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo ou spray de pimenta para dispersar os usuários que se reúnem na região.

“Entendidas estas como a prática organizada de ações típicas de polícia repressiva e sob formação militar, voltada à conquista de espaços nas vias públicas, com arremesso indiscriminado de munições contra pessoas e a expulsão desmotivada de pessoas de logradouros públicos”, escreveu a juíza.

A decisão atende a um pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública de SP. Em conjunto, os órgãos entraram com uma ação civil pública para frear a ação da GCM, tida como violenta na região. Agora a corporação está obrigada a criar um canal de denúncias da população e um protocolo para apurar casos de descumprimento da presente decisão judicial.

A cracolândia é conhecida por concentrar o chamado “fluxo”, ou seja, esses grupos desornados de usuários de crack e outras pesadas que circulam por ali. Uma parte considerável dessas pessoas, para além do abuso de drogas pesadas, também se encontra em situação de rua.

A reportagem da Agência Brasil esteve na cracolândia no dia anterior à decisão e contou com maiores detalhes como é a ação cotidiana da GCM que a Justiça decidiu regular.

“Presenciamos o uso de spray de pimenta por pelo menos uma vez. Por suas vezes, os guardas fizeram disparos de balas de borracha contra a aglomeração de pessoas. As munições foram disparadas durante uma ação de limpeza, quando o fluxo é deslocado para que a área seja varrida pelas equipes da Prefeitura. As pessoas são retiradas em fila do local gradeado e obrigadas, pela GCM, a ficarem sentadas na calçada oposta até o trabalho ser concluído. Há diversos momentos de tensão, porque, à medida que são deslocadas, as pessoas são revistadas e muitos objetos pessoais são retirados pelos guardas”, diz um trecho do relato.

Na última semana grades foram instaladas na Rua dos Protestantes, local onde o fluxo está desde julho de 2023. Os usuários foram induzidos a permanecer ali após diversos deslocamentos proporcionados pelas forças de segurança em outros pontos do centro da capital paulista.

Fernanda Balera, coordenadora do Núcleo Especializado e Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, disse à Agência Brasil que vê com preocupação as ações da Prefeitura, que envolvem tanto a GCM como a instalação dessas grades e construção de muros ao redor dos locais onde funciona o fluxo.

“Historicamente essas medidas só aumentam a tensão, dificultam os trabalhos das equipes de saúde, assistência, cerceiam a liberdade das pessoas. Então, a gente também está aqui para entender como é que está sendo essa dinâmica”, afirmou.

História da cracolândia é marcada por operações em ano de eleição municipal

A decisão de limitar a atuação da GCM veio às vésperas das eleições municipais, momento em que historicamente há um aumento de operações na região, como contou à Fórum o pesquisador Danilo Pescarmona, psicólogo, mestre e doutorando em filosofia pela Unifesp.

Antes da Cracolândia ser reconhecida como tal, em meados dos anos 90, a região era conhecida como Boca do Lixo. Era um espaço conhecido pela prostituição, contravenção e uso de drogas. Mas além de ser o palco das filmagens das pornô-chanchadas, também era uma área onde trabalhadores de baixa renda encontravam para ter seus momentos de lazer.

“Desde a década de 50, na época do governo do Adhemar de Barros já tinham operações policiais ali. Os policiais faziam cordões humanos em torno do chamado ‘Quadrilátero do Pecado’ para prender ou averiguar cada pessoa que estivesse ali”, conta Pescarmona.

Até 1982 a principal rodoviária de São Paulo era na Luz, o que garantia um fluxo grande de pessoas na região, além dos bares e todo o referido comércio legal e ilegal. A região era uma espécie de bairro dormitório para trabalhadores envolvidos com a economia da rodoviária.

Presença da Guarda Civil Metropolitana na Cracolândia em 24 de junho de 2024. Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil

“Trabalhadores de baixa renda movimentavam a região na época da rodoviária. Quando a rodoviária se mudou para o Tietê, todo esse ecossistema social e econômico também se mudou e a progressiva saída dos trabalhadores foi deixando a região cada vez mais deserta e abandonada. Nesse contexto, a prostituição e a contravenção já perdiam espaço, dentro do mundo do crime, para o tráfico de drogas, que passa a exercer uma hegemonia sobre aquele território”, explica.

Esse processo demorou cerca de uma década para ser concluído e a Cracolândia finalmente ganhar esse nome, entre 1993 e 1994. Curiosamente, a mesma época em que a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi também reconhecida pelas autoridades e pela imprensa de forma geral.

Durante os primeiros 20 anos da Cracolândia, o território foi sendo cada vez mais dominado pelo fluxo de usuários nas ruas. Aos poucos foram surgindo políticas de repressão e de assistência social que se configurariam, mais tarde, no que conhecemos hoje. Já nos anos 90 e 2000 se falava, a cada campanha eleitoral, no fim daquele espaço como um quadrilátero preenchido por usuários de crack. Mas a coisa pegaria pra valer em 2012, em plena gestão Gilberto Kassab.

Naquele ano haveria eleições, e o prefeito, que tentaria a reeleição, estava com a popularidade baixa após aprovar um turbilhão de leis de zeladoria consideradas inúteis por boa parte da população, como a proibição do oferecimento de vinagretes em barracas de pastel na cidade. Além disso, teria adiante o petista Fernando Haddad como adversário, que prometia revolucionar as políticas da Cracolândia introduzindo o já debatido conceito de “redução de danos”. Kassab então se apressou e, para atender a um velho projeto de gentrificação da região, a famosa “Nova Luz”, que viraria nome de operação anos depois, ele deu início à operação Dor e Sofrimento em 3 de janeiro de 2012.

“O discurso oficial é o de combate ao tráfico e, naquela época já se falava que o PCC dominava a região. A operação previa retirar todos os usuários de lá e prender os traficantes para aplicar o projeto Nova Luz. Estava prevista a construção de um Boulevard ali e de uma série de obras arquitetônicas que tinham o objetivo de ‘revitalizar’ a região. Em termos de securitização, a presença policial ali passou a ser mais ostensiva após a operação. Entre 2010 e 2011 tínhamos viaturas fazendo patrulhas pontuais e uma base da Guarda Civil Metropolitana ali no Largo Coração de Jesus. A partir de 2012 eram mais policiais e com uma variedade maior de tecnologias sendo empregadas, tanto no monitoramento das ruas como no equipamento dos agentes, como aquelas armaduras de estilo ‘Robocop’, que é uma tecnologia israelense”, conta Danilo Percarmona.

Outro ponto importante nesse contexto, conforme citado pelo pesquisador, é a presença da Porto Seguro ali na região, uma das maiores empresas de seguros do país. Segundo ele, a empresa também é uma das investe nas tecnologias de monitoramento da região. “Essas tecnologias são testadas ali, nesse contexto de guerra urbana, então vai haver parcerias público-privadas nesse sentido”, conclui.

Presença da Guarda Civil Metropolitana na Cracolândia em 24 de junho de 2024. Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil

Mas os esforços de Kassab foram em vão e, além de não “resolver o problema da Cracolândia” ele perdeu apoio político. Nas eleições de 2012, que não participou pois já havia sido reeleito no pleito anterior, não conseguiu eleger seu candidato - o ex-prefeito José Serra (PSDB).

Serra havia sido eleito em 2004 com Kassab como vice e deixou a Prefeitura para se candidatar ao governo Estadual em 2006. Kassab assumiu e foi reeleito em 2008. Mas em 2012 o pleito foi vencido Fernando Haddad (PT) contra o próprio Serra no segundo turno. O novo prefeito começou o ano de 2013 formulando a política chamada de Braços Abertos que seria implementada no ano seguinte.

A nova lida começou muito elogiada. A prefeitura oferecia moradia em pequenos hotéis e pensões da região para os usuários em situação de rua, além de um pequeno pagamento para serviços de limpeza do local.

“Foi um avanço perto das políticas rudimentares de antes. Já estava trabalhando em outros lugares, pois a prefeitura descontinuou o serviço que eu trabalhava, e acompanhei o Braços Abertos um pouco mais de longe. Saí bem no começo da implantação do programa. Foi uma tentativa de trazer dignidade à região e de implementar uma verdadeira política de drogas, pautada pela redução de danos. Apesar de ter acabado, o saldo foi positivo enquanto durou”, comentou o pesquisador.

O que incomodou os setores mais conservadores da sociedade paulista foi o fato de que o Braços Abertos fornecia, dentro do âmbito da redução de danos, cachimbos para os usuários não se cortarem ao improvisar o artefato com latinhas. E nessas idas e vindas dos debates público e institucional conseguiram travar essa política que pretendia se expandir. Com a derrota de Haddad nas eleições de 2016, os Braços Abertos e a redução de danos deram lugar a mais Dor e Sofrimento e a mais tentativas de implantar a Nova Luz. Dessa vez sob a batuta de João Dória.

Por volta das cinco da manhã de 21 de maio de 2017, um domingo, durante a realização da Virada Cultural, polícias civil e militar empreenderam a primeira megaoperação daquela nova série que buscava combater a chamada “feira livre de venda e consumo de drogas”, como definiu o discurso oficial da prefeitura. Meses antes, uma primeira bateria de operações já teria chacoalhado a Cracolândia e o centro de São Paulo, mas naquele momento, imagens “inéditas” da feira de drogas divulgadas pela imprensa paulista atiçaram novas operações do prefeito João Dória.

Presença da Guarda Civil Metropolitana na Cracolândia em 24 de junho de 2024. Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil

Ao vivo nos principais canais de televisão, as câmeras seguiam policiais civis fortemente armados atirando balas de borracha e abordando frequentadores do bairro. Cães policiais latiam desesperadamente e a destruição total de tudo o que havia sobrado pela rua passava na televisão em tempo real. Tudo isso com narração e comentário ao vivo, como em um jogo de futebol. Mas o cenário era de filme apocalíptico.

O Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, avaliou in loco para este jornalista, que cobria a operação para o Correio da Cidadania, que “essa operação militar é semelhante a outras. Algumas mais cinematográficas que outras, umas com mais contingente policial, outras com menos, mas todas agem da mesma forma. Atuam na cena de uso, sempre de forma inesperada. Dessa vez, a polícia ocupou a região para evitar que os usuários se reaproximem de lá, o que se configura uma disputa de território. Em todas as operações anteriores a questão imobiliária esteve presente e dessa vez parece ser mais decisiva na medida em que demolem prédios, despejam pessoas e fazem controle de entrada e saída de pessoas. Tudo leva a crer que é para abrirem concessões ao mercado imobiliário”.

O padre ainda lembrou que a Porto Seguro “construiu ali, já há algum tempo, um teatro de 34 milhões de reais” e mencionou a existência de interesses imobiliários ligados ao turismo ao afirmar que “vemos mais uma vez o capital se sobrepor à questão humana, já que não há nenhuma garantia de que essas pessoas serão atendidas, cuidadas ou acompanhadas: o que há é uma pulverização das pessoas por toda a cidade. É mais do mesmo”, concluiu.

Dois dias depois, em 23 de maio e em meio ao terror que se seguiu no bairro, um prédio foi demolido pela prefeitura e, durante sua demolição, uma parede caiu sobre uma pensão vizinha, lesionando ao menos dez pessoas, algumas ficaram em estado grave. Além disso, comerciantes tinham seus estabelecimentos lacrados pelas forças de segurança.

“A especulação imobiliária sempre existiu. No projeto Nova Luz, você tinha uma ideia de que na Santa Ifigênia seria um polo tecnológico. Havia o interesse de trazer empresas como IBM, Microsoft e outras para ocupar a região. A mudança da arquitetura do local é feita pelo Jaime Lerner, que foi prefeito de Curitiba, e previa a construção de boulevards, de shoppings, esse tipo de coisa. Inclusive, de um tempo para cá, eu venho pensando que essas mudanças de fluxo, obedecem a uma lógica da especulação imobiliária, que é a ideia básica de primeiro você desvalorizar a região, para depois você supervalorizá-la. E, se pensarmos nessa movimentação de fluxo, ela também faz parte dessa ideia de um laboratório”, conclui Pescarmona.