O K9, ou “maconha sintética”, é a droga já popular nos Estados Unidos que causa o chamado “efeito zumbi”, em que os usuários perdem a coordenação motora e a consciência, e caminham pelas ruas em estética similar à do icônico tipo de monstro oriundo de filmes e séries de terror como “The Walking Dead”. Essa droga infelizmente já chegou ao Brasil. Entrou pelos presídios paulistas e agora começa a se espalhar pelas ruas das grandes cidades. Na maior delas, São Paulo, a substância é encontrada com certa facilidade e baixo preço na Cracolândia, famosa área do centro que concentra o chamado “fluxo” de usuários de crack e costuma ser alvo de militarização e interesses da especulação imobiliária.
De acordo com levantamento do Estadão publicado em 23 de abril, dos 28,8 mil atendimentos do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, mais de 37% disseram já ter usado o K9. Um ano atrás a cifra estava em 12%. Maconha (81%), cocaína (78%) e o próprio crack (77%) ainda são as mais usadas na região. Mas a K9 já superou os solventes inalantes (26%), os estimulantes sintéticos (15,4%) e os tranquilizantes (9,2%).
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Mas a “droga zumbi”, apesar do alarde, não deve causar maior alarme do que o crack ou a cocaína já causam, disse Milena Cunha, pesquisadora da Unifesp, em entrevista exclusiva à Revista Fórum. Conversamos com ela, que é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC-SP) e pesquisadora do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitamento (Lasintec-Unifesp). Autora de tese discute a violência e militarização no México oriunda da guerra às drogas, ela aponta que o alarde em cima da chegada do K9 enseja discursos fáceis sobre o problema – como a criminalização e a internação compulsória de usuários – além de esconder outros interesses sobre as áreas onde o uso da substância se concentra.
“Mesmo considerando a gravidade dos efeitos do consumo da k9 e da crescente sensação de emergência em torno das drogas K, é interessante começar destacando que as drogas mais consumidas ainda são a maconha, cocaína e crack. A questão mais grave é: o avanço das drogas K dá sustentação a uma narrativa já bem usual entre agentes políticos e de segurança do surgimento de uma dita ‘situação excepcional’ ou ‘emergencial’ que legitimará um reforço securitário marcado por ações pacificadoras e higienistas em regiões como a Cracolândia. Porém, a k9 não se trata de uma situação excepcional”, avalia.
A seguir, Milena explica que o consumo de psicoativos é algo comum na história e cultura da humanidade, e que a aparição de uma nova droga é sempre algo sazonal.
“Foi assim com o crack ou com a introdução da heroína e morfina após a proibição do ópio na China, que é tido como um dos primeiros casos do proibicionismo, e é agora com os opioides nos EUA como a codeína e o fentanil. A tendência é que sempre haja novas drogas. Ou seja, não se trata tanto de entender essa nova substância e suas especificidades, mas sim compreender a lógica proibicionista, suas produções e como ela atravessa um sistema bem complexo que sustenta interesses políticos, econômicos e securitários”, afirma.
Alem disso, também aponta que a tendência é que sempre haja “novas drogas”, pois, antes de tudo, o narcotráfico é um “negócio em busca de lucros econômicos”, e um “negócio com uma alta capacidade de adaptação”, que sempre buscará novos mercados, novas formas de distribuição e novas formas de atingir seu objetivo final que é o lucro.
“Associado a isso, o discurso de emergência em torno da k9 também cumpre com o papel de justificar todo o aparato securitário que vem junto com essas novas drogas tornadas ilícitas. Enfim, é a lógica proibicionista. É necessário para esse sistema proibicionista - militarista e gentrificador - sempre ter uma nova ameaça, que se coloca como ‘ amais danosa’, ‘mais perigosa’ e com potencial de se tornar uma epidemia”, conclui.
Cracolândia e governo Tarcísio
A entrevistada parece se antecipar à informação de que o vice-governador Felício Ramuth (PSD) admitiu ao Estadão que a Polícia Civil paulista tem investigado a entrada da nova “droga zumbi” nas ruas de São Paulo e alertou que “a K9 já é uma realidade”. Nesse contexto, o Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) já apreendeu mais de 157 kg de drogas sintéticas do tipo da K9 desde o último ano.
A matéria-prima para a produção da droga costuma chegar contrabandeada em portos e aeroportos, vinda sobretudo dos EUA e de partes da Europa, Ásia e norte da África. O produto chega num formato semelhante a sais de banho e vão para laboratórios clandestinos onde são cozinhados até chegaram ao ponto de um líquido transparente que será comercializado aos usuários.
Apelidada de “maconha sintética”, a K9 leva só o apelido da cannabis sativa, pois não conta com a planta na sua composição. Produzida em laboratório, concentra o THC, princípio ativo da maconha, para produzir um efeito que pode ser até 100 vezes superior. Vendida preços módicos de R$ 5 a R$ 10, e com o efeito muito forte, rapidamente vem se popularizando e deixando as autoridades em alerta.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que tenta mapear, via investigações e trabalhos de inteligência, os laboratórios clandestinos, pontos de distribuição e os esquemas de contrabando das matérias-primas.
“O proibicionismo possui uma positividade, ou seja, ele produz uma série de efeitos e mobiliza uma variedade de setores sociais e instituições. No caso da k9, por exemplo, já foi mobilizado uma tensão em torno da saúde pública, a ativação mais intensiva de forças de segurança e produção de mais justificativas para o acionamento de intervenções securitárias na Cracolândia. Ou seja, abre espaço para criação de clínicas especializadas na k9, ativação de medidas securitárias ‘excepcionais’ focadas na ‘situação emergencial’ criada em torno da k9, estimula a especulação imobiliária na região, e por aí em diante”, analisa Milena Cunha.
Na sua opinião, essas medidas não solucionam o uso da nova substância, nem a questão mais ampla em torno da Cracolândia, mas aponta que ao utilizar a estratégia de “dispersão do fluxo”, que é defendida pelo atual vice-governador de São Paulo, acaba por transferir tais problemas para regiões vizinhas que, futuramente, também serão alvos das mesmas ações securitárias.
“Ou seja, é um ciclo vicioso que possui claros interesses político-econômicos e que mobiliza o controle de corpos transformados tanto em ameaças que precisam ser controladas quanto em vulneráveis que precisam de cuidado. Não há efetivamente a busca por uma solução, mas sim o controle violento do território através de deslocamentos forçados, além da tutela do cotidiano e, no meio disso, promoção de interesses políticos, econômicos que sustentam a lógica proibicionista, militarista e intervencionista da dita guerra às drogas. Junto disso, tais ações também geram uma instabilidade na dinâmica da região que afeta o comércio e os residentes da área, sendo um dos principais efeitos a especulação imobiliária”, explicou.
A “droga zumbi” e possíveis políticas públicas
Só na capital paulista, a Secretaria Municipal de Saúde registrou 1081 casos de intoxicação por canabinóides sintéticos em 2023 e a suspeita de 233 novos casos nesse ano. O psiquiatra Quirino Cordeiro, diretor do Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, disse ao jornal supracitado que o fato deste tipo de droga ser errôneamente conhecido como “supermaconha” ou “maconha sintética” faz com que usuários da “erva natural” sejam atraídos para a nova droga que pode ser fumada, vaporizada ou ingerida como líquido e comprimido.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já alertou aos maconheiros: “essas substâncias têm composição molecular variada e não estão estruturalmente relacionadas aos canabinoides naturais encontrados na planta da cannabis”. Pelo contrário, mistura substâncias e efeitos de drogas como LSD, maconha, cocaína e heroína. Entre seus efeitos podem estar taquicardia, hiperemia conjuntival (os famosos ‘olhos vermelhos’), aumento do apetite e fala arrastada. O abuso ainda pode causar alucinações, delírios, paranoias, agitação psicomotora, psicose, arritmia cardíaca e perda da consciência. São nesses casos que usuários são filmados em situação que lembrará os famosos “zumbis” de séries como “The Walking Dead”, pela forma com aparecem caminhando nas ruas.
Para a entrevistada não se pode tratar a entrada de uma nova droga ou a própria da questão da Cracolândia como um caso isolado, mas é preciso ver como parte integrante das dinâmicas urbanas e sociais da cidade e do contexto mais amplo da América Latina. Ela argumenta contra a implementação de políticas públicas de curto prazo e locais, criticando medidas como a "revitalização" e as ações focadas em dispersão, internação e prisões, que são vistas como ineficazes e até contraproducentes. Também destaca a necessidade de políticas públicas integradas e de longo prazo que abordem a assistência social, a saúde, a moradia e a desestigmatização do uso de psicoativos, sugerindo uma abordagem mais holística e menos punitiva para lidar com o problema da Cracolândia e suas implicações sociais mais amplas.
“Não acredito que uma nova droga tenha capacidade de alteração, mas sim de atualização dessa dinâmica que envolve forças de segurança, interesses político-econômicos, controle social e pacificação de espaços sociais. Cria-se um complexo mercado da (in)segurança que é integrado à lógica proibicionista e à racionalidade capitalista neoliberal, e novamente, tudo sob o manto da situação emergencial criada em torno da k9 e da necessidade de ‘promoção de segurança’”, conclui.