Os ataques repletos de fake news ao Padre Júlio Lancellotti e às ONGs que atuam na Cracolândia não são uma novidade. A cada quatro anos, sempre que a cidade de São Paulo vai escolher um novo prefeito, a região vira alvo dos setores mais reacionários e obscurantistas da megalópole paulistana, sempre com programas de governo que pretendem extingui-la em teoria, mas que servem num primeiro momento, para mobilizar o eleitorado. No entanto, sem a viabilidade prática desse objetivo, acabam por tornar o pequeno quadrilátero em um verdadeiro laboratório para a repressão e em ferramenta para a especulação imobiliária.
Em entrevista exclusiva para a Revista Fórum, o pesquisador Danilo Pescarmona reconta a história da Cracolândia justamente nesses termos, e chama a atenção que as ondas de políticas repressoras e as promessas de acabar com o uso de drogas sempre acompanham as eleições municipais. O entrevistado é mestre e doutorando em filosofia pela Unifesp, psicólogo com experiência de atuação nas políticas públicas de Assistência Social e de Saúde Mental e atualmente é trabalhador da Rede de Atenção Psicossocial em um CAPS Álcool e Drogas na cidade de São Paulo.
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Antes de fazer seu mestrado, concluído com a monografia Sujeito-cachimbo: A produção da subjetividade anormal em um território em confinamento, ele trabalhou entre 2010 e 2013 na Cracolândia, em uma ONG conveniada com a Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, da Prefeitura de São Paulo).
“Na época existia o serviço de Atenção Urbana, em que abordávamos a população em situação de rua, mas nada a ver com uma abordagem policial. Era um primeiro contato em que colhíamos suas histórias e tentávamos conhecer minimamente aquelas pessoas, para em seguida pensar em algum encaminhamento, seja de alimentação, higiene, tiragem de documentos, e outros”, contou.
No dia que gravamos a conversa, fazia muito calor em São Paulo e Danilo tinha acabado de voltar do trabalho, onde tinha realizado atendimentos à população de rua próximo da Cracolândia. Ele explicou que em dias como aquele a vida dos usuários que estão em situação de rua na região piora por conta das dificuldades para se ter acesso a um banho. Ele explica que são poucos serviços que garantem essa possibilidade, mas que sobram botas e cacetetes.
“Um dos pontos que tento pensar na minha dissertação de mestrado é a Cracolândia como um laboratório político das tecnologias securitárias. Esse interesse surgiu depois que acompanhei a Operação Dor e Sofrimento, do prefeito Gilberto Kassab, em 2012, e notei que ela importava uma série de tecnologias que ampliavam a vigilância e a patrulha da região. Ali já tivemos uma prévia do mapeamento via satélite de usuários que só seria implantado oficialmente em 2014 em outros espaços. Resumindo, o espaço realmente foi usado como um laboratório para algumas tecnologias antes de que fossem empregadas em outros espaços. Além disso também ditou os rumos da polícia. Uma operação policial num baile funk, por exemplo, passou a seguir o mesmo modus operandi”, explica.
E de fato, se olharmos para o que ocorreu no baile da DZ7, em Paraisópolis, em 2019, pode lembrar uma operação na Cracolândia. Para além do laboratório de securitização, a cada quatro anos candidatos são eleitos na maior cidade prometendo dar fim à Cracolândia e, logo que o ano vira, novas operações voltam a espalhar o fluxo, sem nunca oferecerem reais saídas para a situação. Após algumas operações policiais, logo o tema sai dos holofotes do debate público e as operações ali passam a ser as de rotina, tanto das forças de segurança como o trabalho da assistência social. E após um hiato de abandono e esquecimento, as vidas daquelas pessoas e daquela região voltam a embalar campanhas nas eleições municipais.
Boca do lixo
Antes da Cracolândia ser reconhecida como tal, em meados dos anos 90, a região era conhecida como Boca do Lixo. Era um espaço conhecido pela prostituição, contravenção e uso de drogas. Mas além de ser o palco das filmagens das pornô-chanchadas, também era uma área onde trabalhadores de baixa renda encontravam para ter seus momentos de lazer.
“Desde a década de 50, na época do governo do Adhemar de Barros já tinham operações policiais ali. Os policiais faziam cordões humanos em torno do chamado ‘Quadrilátero do Pecado’ para prender ou averiguar cada pessoa que estivesse ali”, conta Pescarmona.
Até 1982 a principal rodoviária de São Paulo era bem ali, o que garantia um fluxo grande de pessoas na região, além dos bares e todo o referido comércio legal e ilegal. Ele explica que ali também era uma espécie de bairro dormitório para trabalhadores envolvidos com a economia da rodoviária.
“Trabalhadores de baixa renda movimentavam a região na época da rodoviária. Quando a rodoviária se mudou para o Tietê, todo esse ecossistema social e econômico também se mudou e a progressiva saída dos trabalhadores foi deixando a região cada vez mais deserta e abandonada. Nesse contexto, a prostituição e a contravenção já perdiam espaço, dentro do mundo do crime, para o tráfico de drogas, que passa a exercer uma hegemonia sobre aquele território”, explica.
Esse processo demorou cerca de uma década para ser concluído e a Cracolândia finalmente ganhar esse nome, entre 1993 e 1994. Curiosamente, a mesma época em que a existência do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi também reconhecida pelas autoridades e pela imprensa de forma geral.
Operação dor e sofrimento do Kassab
Durante os primeiros 20 anos da Cracolândia, o território foi sendo cada vez mais dominado pelo fluxo de usuários nas ruas. Aos poucos foram surgindo políticas de repressão e de assistência social que se configurariam, mais tarde, no que conhecemos hoje. Já nos anos 90 e 2000 se falava, a cada campanha eleitoral, no fim daquele espaço como um quadrilátero preenchido por usuários de crack. Mas a coisa pegaria pra valer em 2012, em plena gestão Gilberto Kassab.
Naquele ano haveria eleições, e o prefeito, que tentaria a reeleição, estava com a popularidade baixa após aprovar um turbilhão de leis de zeladoria consideradas inúteis por boa parte da população, como a proibição do oferecimento de vinagretes em barracas de pastel na cidade. Além disso, teria adiante o petista Fernando Haddad como adversário, que prometia revolucionar as políticas da Cracolândia introduzindo o já debatido conceito de “redução de danos”. Kassab então se apressou e, para atender a um velho projeto de gentrificação da região, a famosa “Nova Luz”, que viraria nome de operação anos depois, ele deu início à operação Dor e Sofrimento em 3 de janeiro de 2012.
“O discurso oficial é o de combate ao tráfico e, naquela época já se falava que o PCC dominava a região. A operação previa retirar todos os usuários de lá e prender os traficantes para aplicar o projeto Nova Luz. Estava prevista a construção de um Boulevard ali e de uma série de obras arquitetônicas que tinham o objetivo de ‘revitalizar’ a região. Em termos de securitização, a presença policial ali passou a ser mais ostensiva após a operação. Entre 2010 e 2011 tínhamos viaturas fazendo patrulhas pontuais e uma base da Guarda Civil Metropolitana ali no Largo Coração de Jesus. A partir de 2012 eram mais policiais e com uma variedade maior de tecnologias sendo empregadas, tanto no monitoramento das ruas como no equipamento dos agentes, como aquelas armaduras de estilo ‘Robocop’, que é uma tecnologia israelense”, conta Danilo Percarmona.
Outro ponto importante nesse contexto, conforme citado pelo pesquisador, é a presença da Porto Seguro ali na região, uma das maiores empresas de seguros do país. Segundo ele, a empresa também é uma das investe nas tecnologias de monitoramento da região. “Essas tecnologias são testadas ali, nesse contexto de guerra urbana, então vai haver parcerias público-privadas nesse sentido”, conclui.
Braços abertos – Haddad
Mas os esforços de Kassab foram em vão e, além de não “resolver o problema da Cracolândia” ele perdeu apoio político. Nas eleições de 2012, que não participou pois já havia sido reeleito no pleito anterior, não conseguiu eleger seu candidato - o ex-prefeito José Serra (PSDB). Serra havia sido eleito em 2004 com Kassab como vice e deixou a Prefeitura para se candidatar ao governo Estadual em 2006. Kassab assumiu e foi reeleito em 2008. Mas em 2012 o pleito foi vencido Fernando Haddad (PT) contra o próprio Serra no segundo turno. O novo prefeito começou o ano de 2013 formulando a política chamada de Braços Abertos que seria implementada no ano seguinte.
A nova lida começou muito elogiada. A prefeitura oferecia moradia em pequenos hotéis e pensões da região para os usuários em situação de rua, além de um pequeno pagamento para serviços de limpeza do local.
“Foi um avanço perto das políticas rudimentares de antes. Já estava trabalhando em outros lugares, pois a prefeitura descontinuou o serviço que eu trabalhava, e acompanhei o Braços Abertos um pouco mais de longe. Saí bem no começo da implantação do programa. Foi uma tentativa de trazer dignidade à região e de implementar uma verdadeira política de drogas, pautada pela redução de danos. Apesar de ter acabado, o saldo foi positivo enquanto durou”, comentou o pesquisador.
O programa tinha limites. À época passei uma noite nas ruas da região escrevendo uma reportagem para o extinto e modesto jornal independente O Cícero. Um artista que vivia na Rua Glete, Índio Badaross, comentou alguns dos seus dramas. Um deles era o da moradia. São Paulo vivia um forte período de seca e calor extremo naquele início de 2014 e um dos problemas apontados pelo artista-usuário era justamente o calor dentro das pensões, e o perigo que enfrentava de ter seus poucos pertences roubados. Mas admitia que era melhor daquela forma, do que com a hostilidade policial militar constante de outrora.
O que realmente incomodou os setores mais obscuros da sociedade paulista foi o fato de que o Braços Abertos fornecia, dentro do âmbito da redução de danos, cachimbos para os usuários não se cortarem ao improvisar o artefato com latinhas. E nessas idas e vindas dos debates público e institucional conseguiram dar uma travada na política, que pretendia se expandir. Com a derrota de Haddad nas eleições de 2016, os Braços Abertos e a redução de danos deram lugar a mais Dor e Sofrimento e a mais tentativas de implantar a Nova Luz. Dessa vez sob a batuta de João Dória.
“Existia uma política de trabalho, de moradia e de saúde funcionando. Foi de fato a política mais sofisticada que acaba no governo Doria. Ele anuncia isso como fazendo parte do seu programa de governo, antes mesmo de concorrer à eleição. Ainda como pré-candidato, seu primeiro projeto era extinguir o programa de Braços Abertos. A direita brasileira não faz questão de entender certas coisas”, analisa Pescarmona.
Operação Nova Luz do Dória
Por volta das cinco da manhã de 21 de maio de 2017, um domingo, durante a realização da Virada Cultural, polícias civil e militar empreenderam a primeira megaoperação daquela nova série que buscava combater a chamada “feira livre de venda e consumo de drogas”, como definiu o discurso oficial da prefeitura. Meses antes, uma primeira bateria de operações já teria chacoalhado a Cracolândia e o centro de São Paulo, mas naquele momento, imagens “inéditas” da feira de drogas divulgadas pela imprensa paulista atiçaram novas operações do prefeito João Dória.
Ao vivo nos principais canais de televisão, as câmeras seguiam policiais civis fortemente armados atirando balas de borracha e abordando frequentadores do bairro. Cães policiais latiam desesperadamente e a destruição total de tudo o que havia sobrado pela rua passava na televisão em tempo real. Tudo isso com narração e comentário ao vivo, como em um jogo de futebol. Mas o cenário era de filme apocalíptico.
O Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, avaliou in loco para este jornalista, que cobria a operação para o Correio da Cidadania, que “essa operação militar é semelhante a outras. Algumas mais cinematográficas que outras, umas com mais contingente policial, outras com menos, mas todas agem da mesma forma. Atuam na cena de uso, sempre de forma inesperada. Dessa vez, a polícia ocupou a região para evitar que os usuários se reaproximem de lá, o que se configura uma disputa de território. Em todas as operações anteriores a questão imobiliária esteve presente e dessa vez parece ser mais decisiva na medida em que demolem prédios, despejam pessoas e fazem controle de entrada e saída de pessoas. Tudo leva a crer que é para abrirem concessões ao mercado imobiliário”.
O padre ainda lembrou que a Porto Seguro “construiu ali, já há algum tempo, um teatro de 34 milhões de reais” e mencionou a existência de interesses imobiliários ligados ao turismo ao afirmar que “vemos mais uma vez o capital se sobrepor à questão humana, já que não há nenhuma garantia de que essas pessoas serão atendidas, cuidadas ou acompanhadas: o que há é uma pulverização das pessoas por toda a cidade. É mais do mesmo”, concluiu.
Dois dias depois, em 23 de maio e em meio ao terror que se seguiu no bairro, um prédio foi demolido pela prefeitura e, durante sua demolição, uma parede caiu sobre uma pensão vizinha, lesionando ao menos dez pessoas, algumas ficaram em estado grave. Além disso, comerciantes tinham seus estabelecimentos lacrados pelas forças de segurança.
“A especulação imobiliária sempre existiu. No projeto Nova Luz, você tinha uma ideia de que na Santa Ifigênia seria um polo tecnológico. Havia o interesse de trazer empresas como IBM, Microsoft e outras para ocupar a região. A mudança da arquitetura do local é feita pelo Jaime Lerner, que foi prefeito de Curitiba, e previa a construção de boulevards, de shoppings, esse tipo de coisa. Inclusive, de um tempo para cá, eu venho pensando que essas mudanças de fluxo, obedecem a uma lógica da especulação imobiliária, que é a ideia básica de primeiro você desvalorizar a região, para depois você supervalorizá-la. E, se pensarmos nessa movimentação de fluxo, ela também faz parte dessa ideia de um laboratório”, conclui Pescarmona.