Todo ano de eleição municipal em São Paulo é a mesma história: a cracolândia volta ao debate público em meio a promessas de campanha que pretendem extingui-la, assim como pressões de diversos setores que vão no mesmo sentido. Nesse início de 2024 não é diferente. E com o Padre Júlio Lancellotti como alvo, que junto à Arquidiocese de São Paulo faz um trabalho humanitário no quadrilátero do crack, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), fundador do MBL (Movimento Brasil Livre), tentou empurrar goela abaixo da Câmara Municipal, sem sucesso, uma CPI que investigaria a “máfia da miséria” na Cracolândia, supostamente operada por ONGs que mantêm contratos com o poder público.
Uma dessas “ONGs” descritas por Rubinho Nunes não é sequer uma ONG. Trata-se do movimento Craco Resiste, composto por ativistas, antropólogos e trabalhadores do serviço do social. Um deles é Roberta Costa, de 37 anos, antropóloga e ativista voluntária do movimento, que falou com exclusividade à Fórum.
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“A Craco Resiste é um movimento social contra a violência policial, pelos direitos humanos e por uma política de redução de danos. Digo isso porque no pedido de abertura da CPI tentaram nos classificar como ONG, mas a gente não tem financiamento ou qualquer coisa que nos caracterize como tal”, explicou.
Na entrevista ela também contou a origem do polêmico nome do movimento e, entre os cinco pontos que na sua opinião mantêm a cracolândia ativa, falou sobre moradia, saúde mental, guerra às drogas e especulação imobiliária. Confira os principais trechos a seguir.
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Craco Resiste
Acho que a primeira coisa que talvez seja interessante falar em relação a Craco Resiste é o seu nome, que é provocador, incômodo. Mas tem um porquê, tem um sentido na sua origem, que foi quando João Doria ganhou a eleição na capital prometendo que no primeiro mês de mandato ele acabaria com a Cracolândia.
E acabaria com a Cracolândia do mesmo jeito que estávamos observado a mais de dez anos. Eu atuo lá desde o fim de 2011, quando teve a operação Dor e Sofrimento [gestão Kassab] em que a ideia era basicamente causar dor e sofrimento nessas pessoas que já têm um monte de dor e sofrimento, tanto estruturais quanto pessoais, para ver se com um pouco mais de dor e sofrimento eles saíam dali. Faz mais de dez anos que estão tentando isso. Obviamente não funciona e é muito caro aos cofres públicos, como mostra o dossiê que fizemos.
A gente já atuava lá, várias pessoas, como educadores sociais, como trabalhadores da região, como militantes de direitos humanos e também os usuários do fluxo, as pessoas que vivem ali, que começaram a nos falar que era preciso resistir pois aquele prefeito viria a violentá-los. Ou seja, a Cracolândia precisava resistir.
Mas a gente ponderou. Será que a Cracolândia precisa resistir? E partindo da importante premissa da redução de danos, de que não fazemos 'para' eles, mas faz 'com' eles, foi decidido coletivamente pela criação do movimento. Então chamamos uma reunião, com todos esses setores envolvidos, que fazia essa pergunta a todos: a Cracolândia deve resistir?
E depois de horas, a conclusão que a gente chegou foi que nós, enquanto sociedade, não resolvermos cinco questões estruturais, a Cracolândia vai continuar existindo e resistindo, independente se a achamos ela 'bonita ou feia', independente da nossa vontade.
Então, a 'Craco resiste' por isso, não é porque a gente quer que ela resista, é porque ela é resultado de cinco grandes problemas estruturais e complexos que os governantes não querem enfrentar. Em outras palavras, num mundo hipotético, se apenas o crack acabasse, sumisse, de hoje para amanhã, a Cracolândia e os problemas, tanto que a geraram, quanto que são gerados a partir dela, continuariam existindo. Ou seja, não basta simplesmente tirar o crack.
5 fatores que fazem com que a cracolândia exista
Moradia
A questão da moradia, do direito à moradia, é fundamental. Políticas de redução de danos de todo o mundo falam em 'housing first', ou a 'casa primeiro'. Não dá para lidar com o uso problemático do crack se você não tem um lugar para dormir, um lugar para morar, um lugar para se organizar e se limpar. Na rua, os efeitos do crack supostamente 'resolve' tudo isso. Sem pleno acesso ao direito à moradia, nós não não vai resolver as questões que envolvem a Cracolândia.
Guerra às drogas
O segundo ponto é a questão da guerra às drogas. Enquanto o uso dessas substâncias for uma questão de polícia e não uma questão de cuidado, a gente tem uma dificuldade muito grande de aprofundar um trato adequado ao problema. Se isso já é uma barreira para a questão da maconha medicinal que só agora está se abrindo, imagine para a cracolândia. Então além de dificultar pesquisas de toda ordem, a proibição também coloca o usuário na mira da polícia, dificultando ainda mais a abertura para um processo de recuperação.
Cárcere e sistema prisional
Diversas pesquisas mostram que grande parte, mais da metade da população da cracolândia, são pessoas egressas do sistema prisional. E sabemos quão falha e quão problemática é a lógica do sistema prisional brasileiro, e em todo o mundo. Sabemos, por exemplo, sem precisar ser um especialista, que por um lado existe grande preconceito e perseguição aos egressos no seu cotidiano, e as dificuldades para se reinserir no âmbito familiar, comunitário e no mercado de trabalho são enormes.
A questão do cárcere é estruturante da cracolândia, porque quando as pessoas saem, pagam as suas penas e não apreenderam nada nesse processo, saem, geralmente, com um determinado círculo social, com um determinado 'proceder', com um determinado jeito de lidar com o mundo, e é na cracolândia que ele vai encontrar os seus pares. Muita gente vai pra lá pra isso, pra encontrar seus pares. É disso que se trata a existência da cracolândia.
Saúde mental
O quarto elemento é a questão do cuidado em liberdade para a saúde mental. Não faltam pesquisas, inclusive divulgadas pela imprensa, que mostram a escalada do aumento de pessoas que sofrem com transtornos mentais no mundo, e especialmente no Brasil e na cidade de São Paulo. Nesse contexto, várias questões muito graves de saúde mental não conseguem ser tratadas nos aparelhos que temos hoje.
A gente tem uma rede de CAPS, que é uma rede muito interessante, que é formulada dentro da lógica antimanicomial, mas que muitas vezes não supre essa capacidade de inserção e essa necessidade de cuidado em liberdade.
Enquanto a gente não tiver todo um circuito em que os teatros, cinemas, praças e outros espaços também sirvam como lugares de cuidado com a saúde mental coletiva, não só os CAPS em si, também será difícil resolver essa questão.
Exclusão social histórica na região
Ali, a região da cracolândia, era a antiga boca do lixo. É onde foram filmadas as pornô chanchadas, é onde era a antiga rodoviária, da prostituição. Então, toda essa questão da circulação, de quem chegava em São Paulo, sempre esteve centralizada ali. Tem toda uma estrutura muito anterior, inclusive ao crack chegar na cidade, que já fazia dali um lugar encontro e lazer de pessoas palperizadas, que não têm outros espaços de circulação e diversão na cidade.
Então, esse é o quinto elemento que faz a Cracolândia existir e resistir. A falta e a necessidade de ter espaços. Quem tem grana tem sua rave, e mesmo os espaços públicos, como Sesc, por exemplo. Será que mesmo sendo gratuito as pessoas que hoje frequentam a Cracolândia caberiam no Sesc? Mesmo que, teoricamente, elas possam entrar?
Precisamos de espaços verdadeiramente públicos e inclusivos para essa população historicamente marginalizada, que é uma população racializada e que lida com todos os estigmas e marcas sociais.
Especulação Imobiliária
Tem uma formulação coletiva que a gente sempre usa, de que a cracolândia é a pá da especulação imobiliária. Ou seja, se você está querendo alguma movimentação, o lobby ou o poder público está querendo comprar determinados imóveis em uma determinada região, manda o fluxo para lá, os imóveis da região diminuem, eles compram, mudam o fluxo para outro lugar e reformam. Então o fluxo consegue ser essa 'pá da gentrificação'. Nesse processo a população pauperizada é jogada para determinado lugar da cidade e as pessoas com determinado poder econômico vão reocupar esses lugares. Isso também impacta o comércio e outros moradores que não estão necessariamente envolvidos com o crack para além de morarem próximos dali.