A HISTÓRIA SECRETA DO CRACK

O crack nunca foi problema para os ricos, mas uma solução para os negócios

Em seu livro Aliança Sombria, o jornalista norte-americano Gary Webb mostra como a droga foi introduzida pela CIA nas comunidades para enfraquecer os Panteras Negras e como seu lucro foi revertido para financiar a contrarrevolução na Nicarágua

Dose de crack.Créditos: Governo dos EUA via Wikimedia Commons
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O velho ditame marxista de que a “história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa”, está cada vez mais atual. Nas últimas semanas temos visto um curioso episódio da farsesca tragédia brasileira, mais especificamente a paulistana. Vereadores oriundos do MBL, um dos agrupamentos políticos mais desprezíveis de nossa história recente, tentam instalar uma CPI em São Paulo para investigar o que consideram uma “máfia da pobreza” operada por ONGs e pelo Padre Júlio Lancellotti, chamado de “cafetão dos noias”, na região ocupada pela chamada “cracolândia” no centro da cidade.

É desnecessário comentar a perversidade dessas abjetas figuras que uma democracia educada e tolerante como a nossa permite que façam parte da vida pública e política da maior cidade do país. Nesse sentido fica claro que o objetivo da CPI não é “resolver o problema da cracolândia”, mas única e exclusivamente, atacar o padre que, pasmem, alimenta e traz algum conforto para essas massas de pessoas sem perspectivas, desprezadas pelo mercado da exploração laboral e muitas vezes pelas comunidades, e que ou procuram ou são tragadas para o mundo de uma droga que pode definhar e matar um usuário em pouquíssimo tempo.

Mas a perversidade desses vereadores, e de todos aqueles que comungam da mesma ideia, está justamente no fato de que ao atacar o Padre Júlio Lancellotti e demais pessoas e organizações que estão ali presentes, eles estão atuando no sentido de perpetuar a cracolândia. E a razão disto foi lembrada pelo filósofo e youtuber Paulo Ghiraldelli, em vídeo publicado na última quinta-feira (4).

Cracolândia, na região da Santa Ifigênia, em agosto de 2023. Créditos: Jeisoun/Wikimedia Commons

O comunicador relembrou de uma reunião entre o dramaturgo Zé Celso, já falecido, e Silvio Santos, dono do SBT, ocorrida em outubro de 2017, mas cujas imagens só vazaram para a imprensa em julho do ano passado. Eduardo Suplicy e o então prefeito João Doria acompanhavam as discussões em torno da doação ou não, para Zé Celso, do terreno onde está o Teatro Oficina.

Zé Celso argumentava que Silvio poderia lhe doar o terreno e que isto não lhe faria falta às finanças e, paralelamente, ele seria lembrado como um bem feitor da cidade, que proporcionou a existência de um importante equipamento cultural. Mas Silvio Santos não queria nem saber. De olho na grana rápida que um grande empreendimento imobiliário poderia lhe proporcionar, ameaçou o dramaturgo com a levada da cracolândia para o local, deixando até mesmo Doria – que em seu primeiro ano de mandato sugeriu alimentar crianças pobres da rede municipal com ração feita a partir de comida processada em vias de vencimento, a farinata – rosado de vergonha.

“Meu secretário deu uma boa ideia, a gente coloca lá a ‘drogalândia’, como é que é, a cracolândia, e o drogado que mais se destacar no dia ganha um prêmio”, afirmou Silvio Santos.

Como aponta o acadêmico e youtuber, sem perceber, Silvio Santos simplesmente admitiu que os ricaços paulistanos não estão nem um pouco preocupados com a cracolândia. Pelo contrário, a veem, na realidade, como uma solução para os seus negócios. Se querem comprar um prédio inteiro, um quarteirão completo, ou mesmo uma série de imóveis em determinada localidade do centro de São Paulo, “coincidentemente” começam operações policiais contra a cracolândia que, após espalhar os usuários por todo o centro, volta a concentrá-los posteriormente no local cobiçado. O local desvaloriza com a “perigosa e suja” presença dos “noias” e os negócios fluem. Basicamente uma ferramenta para a especulação imobiliária.

Isto aconteceu diversas vezes. Além desta mais recente, sob a batuta de Ricardo Nunes, uma megaoperação da mesma natureza, naquele mesmo ano de 2017 e sob as ordens de Doria, chegou a derrubar paredes de um hotel da região com as pessoas dentro e fechar uma série de comércios populares – e legais – que funcionavam próximo à Praça Princesa Isabel.

O interessante, e chocante, disso tudo é que o que ocorre é a versão farsesca da história do crack. A tragédia já ocorreu, na gênese do tráfico da substância, décadas atrás nos EUA. A história foi contada no livro Aliança Sombria (Dark Alliance, no título original) do famoso jornalista investigativo Gary Webb.

A Aliança Sombria foi editada a partir de uma série de reportagens de Webb para o San Jose Mercury News, em 1996, na qual ele seguiu os passos do caso Irã-Contras e a partir dele passou a ir atrás de famosos traficantes, desvendando rotas do narcotráfico conhecidas da CIA e fazendo uma denúncia de “gente grande”. Webb foi acusado por todos os lados de utilizar falsas fontes e manipular informações, foi ameaçado de morte, perdeu o emprego, sofreu bullying midiático nos EUA e morreu em 2005. Segundo a versão oficial, nosso valoroso colega cometeu suicídio. Mas há controvérsias.

Gary Webb. Reprodução

Segundo a obra do repórter “suicidado”, nos anos 80 a CIA comprava crack e heroína dos contras da Nicarágua para financiá-los, dando-lhes capital de giro para a compra de armas para empreender a luta contra a recém vencedora Revolução Sandinista que depôs o ditador Anastásio Somoza em julho de 1979 cujas políticas contrapunham naquele país os interesses dos Estados Unidos.

E com o atacado em mãos, a CIA começou a promover o varejo. E o bastião capitalista da moral e dos bons costumes, o mesmo para o qual o patriota Bolsonaro bateu continência, passou a vender e distribuir drogas para seu próprio povo. Fabricou traficantes milionários e diversas cracolândias começaram a pipocar em cidades como Los Angeles, Oakland e San Francisco, na costa oeste.

Curiosamente, esses traficantes tinha carta branca para atuar em comunidades negras e terras indígenas, levando, com o craque, a desagregação das próprias comunidades e suas articulações políticas.

O livro de Gary Webb. Reprodução

Larry Pinkney, veterano líder do Partido dos Panteras Negras (PPN), fundado em outubro de 1966, em Oakland, deu anos atrás uma entrevista ao site brasileiro ‘A Verdade’, acusando o governo dos Estados Unidos de ter promovido uma guerra química contra os Panteras Negras naquela mesma época. Denúncia que é comprovada na investigação de Webb.

“É um fato irrefutável que o governo dos Estados Unidos fez uso de guerra química, não apenas contra o Partido dos Panteras Negras, mas também contra os negros de forma geral e outras comunidades. Não é mera coincidência que despejos de lixo e materiais perigosos são preferencialmente lançados próximo a comunidades pobres e negras e nas terras de populações indígenas nativas,” denuncia Pinkney.

Larry Pinkney, dos Panteras Negras. Reprodução/Youtube

“É também um fato irrefutável que o governo dos Estados Unidos fez uso de um horrível tipo de subterfúgio pelo qual drogas pesadas ficassem facilmente disponíveis especialmente em comunidades negras. Isso foi algo devastador para as comunidades negras, e suas terríveis consequências são sentidas profundamente até os dias atuais. Além disso, hoje, o fenômeno do crack e da cocaína não só não é coincidência, como também serve tanto para facilitar a violência como a desunião nas comunidades negras e em outras, enquanto, ao mesmo tempo, promove outra arma legal para o governo botar na prisão massas de pessoas pobres,” afirmou.

Ainda segundo Larry Pinkney, “o fato é que o governo (dos Estados Unidos) é profundamente cúmplice do uso de drogas que ocorre hoje, pois essa situação serve para manter negros e outras comunidades neutralizadas e sob controle. A assim chamada guerra às drogas do governo, a exemplo de sua guerra ao terrorismo, é falsa e constitui mecanismo para repressão e controle político. A responsabilidade do governo dos Estados Unidos nesse horror pode ser resumida em apenas duas palavras: subterfúgio e negação,” finalizou.

Padre Júlio Lancellotti de mãos dadas a manifestantes do Movimento Passe Livre em 2016. Créditos: Raphael Sanz