Na noite de 23 de abril, o imigrante senegalês Serigne Mourtalla “Talla” Mbaye foi morto na rua Guaianazes, onde morava no centro de São Paulo. De acordo com testemunhas ele estava sendo perseguido por policiais militares quando teria caído do apartamento em que vivia. No momento da queda, um dos PMs teria gritado que “o lixo está morto”.
Logo após o ocorrido, um verdadeiro caos se instalou no quarteirão. Diversos vizinhos de Talla, muitos integrantes da comunidade senegalesa, protestaram contra sua morte e acusaram os PMs de o terem jogado do apartamento. Houve confusão, correria, xingamentos, bombas de efeito moral, balas de borracha e dezenas de viaturas ocupando a rua. Um imigrante chamado Saliou Ndong chegou a ser detido mas logo foi solto.
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No calor dos acontecimentos a Secretaria da Segurança Pública (SSP) disse à Folha através de nota que a PM foi chamada para atender a uma ocorrência de uma pessoa que havia caído do prédio. O tumulto, segundo a nota, teria ocorrido durante o socorro prestado pelo Corpo de Bombeiros. O Corpo de Bombeiros confirmou, através de sua assessoria, a ida de uma equipe ao local para fazer atendimento, mas negou a agressão aos oficiais.
Mas ao contrário do que disse o Estado governado por Tarcísio de Freitas (Republicas) e sua secretaria chefiada por Guilherme Derrite, ex-PM que já reconheceu publicamente ter sido afastado da Rota por “matar demais”, testemunhas disseram que os PMs já estavam no prédio antes da queda. Talla teria sido abordado e em seguida perseguido pelos PMs - o que consta no boletim de ocorrência da detenção de Saliou Ndong. A principal suspeita da comunidade é de que Talla tenha sido assassinado pelos PMs.
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Dois dias depois, em 25 de abril, foi protocolado pela ativista Amanda Paschoal uma representação ao Ministério Público que exigia a investigação do caso. No mesmo dia, um protesto da comunidade senegalesa pedindo justiça para Talla foi realizado na Rua Guaianazes. E em 30 de abril o ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, cobrou a apuração da SSP-SP.
No entanto, de lá pra cá, o tema parece ter esfriado. Ao menos na imprensa e no debate público que aparentemente se esqueceram do episódio. Nas ruas de São Paulo, no entanto, a chapa segue esquentando e, se por um lado a comunidade senegalesa relata morosidade nas investigações, sobretudo pela não entrega das imagens de câmeras corporais dos PMs à defesa de Talla, também denuncia uma escalada na perseguição policial cotidiana e uma série de crimes que estariam sendo cometidos sistematicamente pelos agentes contra os imigrantes.
O que não te contaram sobre a morte do imigrante senegalês em SP
Entrevistamos Fátima*(nome fictício), uma mulher da comunidade senegalesa bastante ativa e que tem vínculos com lideranças comunitárias e diplomáticas. Mantemos sua identidade em sigilo por questões de segurança. Ela explicou para a reportagem como a comunidade se sente acuada no momento e deu maiores detalhes acerca do que levou os PMs a perseguir Talla.
“Já fazem meses que a polícia está sendo super abusiva com a comunidade africana aqui do centro de São Paulo. Desde o momento que instalaram postos policiais nas ruas 24 de Maio e Guaianazes, esses policiais estão sendo muito brutos com a população africana no geral. Uma vez fizeram uma operação aqui na minha rua e para eu conseguir entrar em casa, tinha que dar uma enorme volta. Eu virei para o policial e perguntei se podia passar. Ele então pediu para eu mostrar o comprovante de residência e, quando viu meu nome africano começou a perguntar: ‘o que você está fazendo? Para onde você está indo?’ E começou a ficar muito bruto com as perguntas. Aí virei para ele e falei: ‘mas o que é que te interessa?’ E ele respondeu: ‘porque o seu povo...’ Nessa hora eu fiquei muito revoltada e ele começou a debochar”, relatou.
Fátima nos conta que os senegaleses têm um perfil bastante particular como imigrantes. Eles vão a outros países, incluindo o Brasil, com o propósito de juntar algum dinheiro e construir suas casas na volta ao Senegal. É diferente de famílias que migram buscando um novo lar permanente.
Nesse contexto, e dadas as condições de documentação muitas vezes precárias, ou mesmo a vontade de pagar menos impostos, muitos não têm contas em bancos e guardam suas poupanças em dinheiro vivo, em casa. Um ofício muito comum entre os senegaleses é o de comerciante de eletrônicos, ao lado de assistência técnica e técnico tecnologia da informação. O problema é que em paralelo a isso funcionam na região uma série de redutos de revenda de celulares e computadores roubados.
O esquema criminoso é bastante brasileiro, mas é claro que também terá pessoas oriundas das comunidades imigrantes que povoam o centro de São Paulo. E basta uma meia verdade para que se tenha um subterfúgio. Segundo Fátima tem sido cada vez mais comuns os relatos de PMs que invadem domicílios sob o pretexto de combater os esquemas de roubos de celular, para ameaçar a integridade física ou jurídica dos imigrantes africanos em troca de gordos arregos em dinheiro vivo. Fala-se em extorsões na ordem de R$ 10 mil pelo menos a cada episódio.
“Na rua Guaianazes, infelizmente, acontece um fluxo muito intenso de venda de celular roubado. Só que eles associam qualquer senegalês a isso. No meio de abril foram em um congolês e cobraram 15 mil reais. Em dinheiro vivo. O cara teve que pagar e ainda levaram os computadores dele para quitar o 'pagamento'. Ele é técnico de TI”, contou.
Talla, o imigrante assassinado morava na mesma rua Guaianazes e, segundo a comunidade, teria descido para comprar um jantar, uma vez que há restaurantes senegaleses bem ali. “Na hora que ele desceu, começou aparentemente uma operação, porque já faz algumas semanas que os policiais estão invadindo os apartamentos africanos sem mandado. Estão invadindo e esculachando todo mundo”, disse Fátima.
“Um detalhe muito importante: nós senegaleses somos de maioria muçulmana, então não existe possibilidade de suicídio, de se jogar. É muito raro de acontecer. Os policiais entraram, invadiram o domicílio do Talla e começaram a fazer várias ameaças. Ficaram perguntando o que ele tinha e estavam muito perto da janela. E aí a versão do pessoal que estava ali e viu, foi que ele foi jogado.Tanto que tem vídeo do Talla caído no chão, já morto, com a mão amarrada. Mas na hora que foram levar o corpo, desamarraram”, relatou.
Ela também conta que todos da comunidade sabem que Talla é trabalhador e não mexe com celulares. Por isso tanta revolta com a sua morte. O caso é investigado pelas autoridades paulistas.
“As investigações ainda não enviaram os vídeos das câmeras corporais para a gente. Há pouco tempo a embaixadora do Senegal no Brasil veio a São Paulo e o pessoal da PM levou um presente pra ela, um negócio que diz que estão apurando, mas até agora nada, absolutamente nada de concreto. E continua a perseguição. Ontem (quarta-feira, 15 de maio) mesmo teve mais uma operação ilegal na Guaianazes. Ontem mesmo teve operação no mesmo lugar que mataram Talla. Os policiais na verdade agora estão mais abusados que o normal. A comunidade se sente assustada e ameaçada. Vazaram a foto do policial que realmente assassinou o Talla, um policial que costuma abusar do poder tanto aqui no centro como lá no Brás. A galera já conhece ele de outros carnavais. Eu realmente não sei o que esperar dos próximos capítulos”, finalizou Fátima.
Outro lado
Questionamos a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo por e-mail acerca das denúncias aqui expostas. Em nota enviada na sexta-feira (17) à reportagem, o órgão reafirma que os fatos estão sendo investigados.
"Todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM). Conforme a análise das Câmeras Operacionais Portáteis (COPs), os moradores autorizaram a entrada dos policiais no imóvel. As imagens captadas integram o conjunto de provas dos inquéritos e estão à disposição do Ministério Público e Poder Judiciário, conforme requisição. A Corregedoria da instituição está à disposição para a formalização de denúncias", diz a SSP.
A SSP conclui a nota dando maiores detalhes acerca das investigações por parte da Polícia Civil.
"O 2º Distrito Policial (Bom Retiro) também investigou o caso e relatou o inquérito policial à Justiça no último dia 27. No entanto, o procedimento retornou para cumprimento de cota requisitada pelo Ministério Público. Os policiais do 3º Distrito Policial (Campos Elíseos) trabalham para atender à solicitação".