Em momentos de desastre, como o visto nas últimas semanas no Rio Grande do Sul, é comum que o sentimento de solidariedade aflore nos mais diferentes setores das sociedades atingidas. No caso dos gaúchos, que enfrentam a dura realidade de ter tido suas principais cidades alagadas pelas cheias dos rios da região, não é diferente. A Revista Fórum conversou com Jean Pereira para conhecer uma dessas histórias. Conhecido como 'Gil', ele é guarda-vidas civil de Imbé, cidade do litoral que está entre as poucas não atingidas pelas inundações,
Guarda-vidas civil no litoral gaúcho há 6 temporadas, Jean se organizou com colegas de ofício e correu para Canoas e Porto Alegre na última semana a fim de resgatar pessoas que estavam ilhadas nos pontos mais sensíveis das inundações. Ele contou como se organizou com seus pares para atender ao chamado humanitário e sobre as dificuldades em resgatar os atingidos.
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Em Canoas, onde sentiu que a situação estava mais caótica, conta que sua equipe de socorristas se juntou a pescadores locais para procurar por desalojados. E não foram poucos os que encontraram. No entanto, nem todos queriam de fato sair das suas casas. Jean conta que teve de fazer diversas vezes o que chamou de "decisão ingrata", ou seja, escolher quem salvaria e quem não salvaria.
Ainda nesse contexto, também relatou a tristeza de voltar no dia seguinte a um local de Canoas onde moradores não tinham quisto resgate na noite anterior, acreditando que a água não passaria dos 2 metros. Estava em mais de 4 metros no retorno. Mas apesar dessa dimensão triste do colapso ambiental vivido pelos gaúchos, Jean se diz feliz por ter ajudado e orgulhoso dos seus colegas de litoral que se mobilizaram.
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"Simplesmente atendemos a um chamado e nos deslocamos sem ganhar nada pra isso. Foi uma coisa linda demais de ver. É uma das partes de toda essa tragédia que a gente fica orgulhoso de saber que os homens das águas [guarda-vidas, pescadores, surfistas] se levantaram e foram ajudar as pessoas. O litoral foi socorrer a capital e as demais regiões afetadas", resumiu.
Confira a seguir os principais trechos da conversa.
Guarda-vidas civil
Eu moro no litoral, em Imbé, surfei a vida toda, sempre tive uma aproximação com o mar, sempre morei na praia. E de cinco anos pra cá acabei me interessando pela profissão de guarda-vidas, fiz o curso e me tornei guarda-vidas civil, ofício que exerço há seis temporadas.
Aqui no Rio Grande do Sul existem o guarda-vidas militar e o civil. O militar é o efetivo, concursado. Eles ficam durante o ano no quartel e durante a temporada de verão são convocados para atuar nas praias e águas internas. Já o guarda-vidas civil tem um contrato temporário e responde a um efetivo que é extremamente necessário porque não existe efetivo militar suficiente para atender as praias.
No final das contas, o guarda-vidas civil é um profissional altamente qualificado porque passa por um processo seletivo bastante difícil. Muitos são moradores das praias, surfistas, pescadores e atletas. E têm uma habilidade com a água absurda. E eu digo que os guarda-vidas civis estão entre os melhores, fico muito feliz de fazer parte desse seleto grupo.
Quando começaram os alagamentos, eles iniciaram com mais gravidade nas regiões da Serra Gaúcha e do Vale do Taquari. Eu, por exemplo, acabei não indo para esses locais. Existia a preocupação de como que eu vou chegar até lá. O guarda-vidas civil, que eu faço parte, não tem um suporte do Estado. Hoje a gente não está efetivado pelo Corpo de Bombeiros, então não tem o suporte deles para isso. Se vamos atuar, é totalmente voluntário, então a gente tem que arrumar carros próprios, embarcações, gasolina, tudo. A gente tem que arrecadar e fazer uma articulação para poder se locomover.
Obviamente, em alguns momentos, a gente pediu ajuda para o Corpo de Bombeiros e foi atendido ali por alguns comandantes de alguns quartéis.
Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre
Alguns colegas nossos foram os primeiros, por exemplo, a saírem aqui de Tramandaí [município vizinho a Imbé]. Foram três guarda-vidas já mais antigos e eles entraram no carro e se mandaram para Montenegro, onde começaram a resgatar. E eles, na verdade, disseminaram e despertaram aquela vontade em todos nós, porque todos estavam um pouco, inclusive eu, desnorteados, sem saber o que fazer ou para onde ir.
Então nos mobilizamos e essas cidades da Serra tinham sido já bem afetadas. No sábado (4) Aparentemente começou a diminuir na Serra e aumentar na Região Metropolitana. Acabamos indo para Canoas, que é uma cidade próxima da capital, Porto Alegre. E aí, quando a gente chegou lá, no sábado 4 de maio, perto do meio dia, já botamos o barco na água.
Conhecemos os pescadores locais e fizemos essa conexão perfeita. Eles com habilidade total naquela embarcação e a gente com habilidade de água, de resgate. Quando a gente começa a entrar, tinha muita gente, centenas de pessoas, milhares de pessoas, em tudo quanto era localidade. Para qualquer lado que tu viravas, tinha pessoas, 5, 10, 20 pessoas na sacada, em cima dos telhados. Além de animais, cachorros e gatos.
Era uma tristeza. Não sabia nem quem levar primeiro. Mas tu tens que tomar uma decisão, né? Se vai nessa ou naquela casa, se vai tirar esses ou aqueles. Se olhávamos para uma casa aqui, e o pessoal estava no terceiro piso com uma distância para a água chegar, então íamos em outra casa ao lado, onde e água já estava mais próxima. Funcionava mais ou menos assim.
É uma decisão ingrata essa de quem levar ou não levar. E aí começaram a chegar outras embarcações, motos aquáticas, lanchas, caiaques e foi feita uma enorme busca.
Acabou que a gente entrou noite adentro do sábado (4) e só parou no outro dia, às 5 horas da tarde. Paramos porque já tínhamos resgatado muita gente. Mas é muito triste. Vimos a água cobrir telhados de 3 ou 4 metros no domingo (5) que no dia anterior o pessoal que estava lá não queria sair pois achava que a água não passaria de 1,5 ou 2 metros.
No domingo a tarde triplicou a quantidade de embarcações e muitas voltavam sem quaisquer resgatados. Foi nesse momento que decidimos voltar ao litoral para preparar uma nova viagem.
Humaitá, zona norte de Porto Alegre
A gente chegou lá na segunda-feira (6) e existia uma informação sobre áreas dominadas por facções e que alguns socorristas estavam até sendo ameaçados. Mas a gente não sabe o que realmente é verdadeiro e o que é fake. Isso é um problema sério. Mas, de qualquer forma, a gente botou o barco na água. Recebemos a informação de uma família que estava ilhada e fomos até o local.
Chegamos lá, era um condomínio de prédios populares, e a família que a gente foi resgatar não queria sair. A gente insistiu, mas no final levamos outra família. A maioria daquele prédio não queria ser resgatada. Passamos por um outro, chamávamos, e era a mesma resposta, só que ali a água estava numa profundidade de um metro.
A situação em Porto Alegre estava um pouco menos caótica que em Canoas. Ajudamos e depois retornamos ao litoral.
Boatos: corpos boiando e assaltos a socorristas?
Sobre a questão dos saques a barcos, eu ouvi lá em Canoas que tinham colocado a arma num jetski e o levado embora. Mas assim, eu não vi esse cara. Ou seja, o dono do jetski não me falou isso, então eu não posso te dizer com precisão. A gente ouve falar, mas eu não posso te garantir que é uma fonte confiável. De modo geral, a gente andava sempre em grupos de vários barcos próximos justamente para evitar isso.
No Humaitá também é a mesma coisa. Se falou que os caras estavam querendo ameaçar, assaltar, enfim. O que eu imagino que aconteça é as pessoas tentarem entrar num supermercado para pegar comida. Mas não vou julgar ninguém, as pessoas estão morrendo de fome. Quem sou eu para avaliar isso?
Sobre a questão de corpos que estariam boiando, a gente não encontrou nenhum. Ouvimos falar, mas também é algo que não se pode confiar totalmente.