*Matéria publicada em 10 de maio de 2024 na edição 110 da Revista Fórum Semanal
O Brasil assistiu atônito, na última semana, ao colapso ambiental do Rio Grande do Sul decorrente das fortes chuvas que atingiram o estado e alagaram quase todos os seus municípios, incluindo a capital Porto Alegre, e deixaram quase 2 milhões de pessoas afetadas diretamente. Este foi o quarto evento climático extremo ocorrido em terras gaúchas nos últimos 12 meses.
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Conforme têm apontado ao debate público uma série de pesquisadores, ambientalistas, biólogos e meteorologistas, trata-se de um efeito da chamada crise climática que se por um lado atingiu em cheio os gaúchos, por outro, terá uma relação de interdependência com o restante do continente sul-americano e do mundo.
As inundações ocorrem por conta do aquecimento do centro da América do Sul – que também corresponde ao centro do Brasil. Esse superaquecimento é derivado do abuso de combustíveis fósseis que causaram um efeito estufa em todo o planeta e, em nível local, da transformação da região em um vasto “deserto de soja” com o desmatamento das áreas de biomas nativos, como Cerrado, o Pantanal e a Amazônia, por conta da expansão das fronteiras agropecuárias, sobretudo para atender o agronegócio.
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Nesse contexto, uma forte onda de calor – que concentra alta pressão atmosférica – se formou na região e impediu que as frentes frias que vêm do Atlântico Sul e da Antártida cheguem ao centro país. O extremo sul do Brasil [RS e sul de SC] está justamente na área de intersecção entre essas frentes frias e a onda de calor. E bem, quando ambas se encontram, chove. E chove muito.
Para compreender melhor esse quadro, a Revista Fórum entrevistou dois acadêmicos e ambientalistas. Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais e professor de Ecologia da Faculdade de Biologia na Universidade Federal do Pará, em Altamira. Paulo Horta é biólogo, pós-doutor em Ecologia Marinha e professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Confira a seguir os principais pontos das conversas.
Crise climática
Paulo Horta - Essa massa de ar quente da onda de calor representa um bloqueio atmosférico que impede a dissipação dessa umidade que está caindo sobre o Rio Grande do Sul. Então em vez da frente fria chegar e chover ao longo do território subindo em direção a São Paulo, ela estacionou ali em cima e infelizmente o que vimos foi esse processo de precipitação intenso e extremo, que gerou efeitos dramáticos. É muito importante as pessoas saberem que dado o aquecimento do oceano esse cenário pode ser ainda pior no futuro próximo se a gente continuar na pegada que estamos.
Rodolfo Salm - Acabei de entrar no aplicativo Windy para dar uma olhada, e o que vemos? Muita chuva ali na zona de convergência intertropical, no norte da América do Sul, passando pelo Amapá, mas o meião do Brasil sem chuva. Tem alguma chuva no Nordeste e muita chuva no Sul, evidentemente. Mas o meião do Brasil está seco, e essa é uma seca que em muitos casos está adiantada, ou seja, veio antes do período previsto.
Combustíveis fósseis e desmatamento
Paulo Horta - A queima dos combustíveis fósseis, que inclusive, vai ter no Rio Grande do Sul algumas termoelétricas, está na causa das emissões dos gases de estufa junto com o desmatamento. Ou seja, tudo aquilo que a gente produziu nos últimos 150 anos está chegando nesse momento e resultando nessa tragédia de escala bíblica, uma tragédia que foi anunciada. Nós tínhamos relatórios que podiam ajudar a preparar o Brasil para esse tipo de evento e infelizmente eles foram engavetados.
Não só foram desconsiderados como nós acabamos produzindo inúmeros retrocessos que levaram ao aumento da emissão. Seja desregulando e alterando a legislação ambiental, favorecendo o desmatamento ou favorecendo a queima do combustível fóssil.
Em Santa Catarina a gente faz uma transição ecológica fake que segura a queima e a mineração de carvão até 2040. No Rio Grande do Sul as termoelétricas sobrevivem e ganham novos fôlegos. Então, de fato, o cenário das emissões brasileiras, no lugar de melhorar, tende a piorar. A gente vê as queimadas esse ano subindo, a exploração de petróleo também não para de crescer, e seguimos avançando sobre novas fronteiras do pré-sal. Parece que, de fato, a gente foi um péssimo aluno e não aprendeu a lição.
Estamos deixando um legado terrível, não só para as gerações futuras, mas para o presente também. Como alguns colegas têm dito, esse pode ter sido o verão mais fresquinho do resto das nossas vidas. Então, de fato, estamos diante de um momento de necessidade de profunda reflexão para mudar o rumo dessa história.
Rodolfo Salm - O desmatamento aumenta a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, que aumenta o aquecimento global, aumenta o aquecimento dos oceanos e vai gerar crises como essa. O desmatamento muda o centro da América do Sul – que já é uma área mais seca naturalmente – porque a floresta tem uma função resfriadora. Então quanto mais você tira a floresta, mais essa área central fica quente e seca e você exacerba os problemas. Isso é uma coisa separada do aquecimento global, cuja principal contribuição é o uso de combustíveis fósseis. Mas sem dúvidas, ajuda a acelerar esse processo.
Cultura do colapso
Paulo Horta - Essa tragédia vivida pelos gaúchos é resultado dessa cultura colapsista. É a cultura do colapso. Ela sabe que vai produzir o colapso climático, ambiental, social, econômico. E ela insiste até que esse colapso se concretize. E o que a gente vê é que essa ética egocêntrica, extrativista - que explora pessoas e explora a natureza - em grande medida já vive muito disso. Vive desse capital especulativo e desses momentos em que, infelizmente, deve-se decretar calamidade pública. E em situação de calamidade pública não se faz licitação. Nesse sentido, infelizmente, há um monte de gente se aproveitando da desgraça alheia com bilhões e bilhões de reais gastos com obras ou com intervenções que efetivamente não têm produzido adaptação e mitigação. Por exemplo, as pontes são reconstruídas do mesmo jeito, as casas são reconstruídas nos mesmos lugares.
É muito importante que a lição definitiva desse episódio seja a de que essa cultura colapsista não pode prosperar. Precisa dar lugar a uma ética do cuidado, uma outra ética, uma outra relação das pessoas entre si, entre nós e a natureza, e entre nós e o clima.
Eu acho que é muito importante que governos como o governo do Leite, que de alguma forma desregulamentou leis, facilitou o processo de avanço dos retrocessos ambientais e climáticos, que esses governos não sejam reeleitos. A sociedade precisa acordar para esse ano de eleição, para que nós possamos fazer alguma coisa antes que tragédias ainda piores aconteçam.