*Matéria publicada em 10 de maio de 2024 na edição 110 da Revista Fórum Semanal
O Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil, vem sofrendo na última semana com um verdadeiro colapso climático e social. Desde o último dia 28 de abril, quando começaram as fortes chuvas em terras gaúchas, os leitos dos principais rios do estado tem transbordando como nunca e alagado não apenas cidades do interior mas a própria capital, Porto Alegre, que está quase que completamente debaixo d’água. A maioria esmagadora das vítimas, obviamente, são pessoas mais pobres, que vivem nos locais mais afetados.
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Entre os cinco maiores desastres climáticos da história gaúcha, este é o quarto a atingir o estado em menos de um ano. No ano passado, ocorreram tragédias em junho, setembro e novembro, deixando, somadas, 75 mortos.
Imagens de pontes sendo dilaceradas como papel pela força das águas, do aeroporto Salgado Filho parecendo um cais de porto, das pessoas desesperadas nos telhados das casas aguardando salvamento e de bairros inteiros sem luz e sem água em todo o estado chocaram o Brasil e o mundo. Mas não foi por falta de aviso que vimos essa tragédia padecer. É a crise climática, ou, ainda pior, sua antessala.
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Uma onda de calor ocasionada pelo abuso de combustíveis fósseis e pelo desmatamento desmedido atinge o Sudeste e o Centro-Oeste e transforma o outono em alta temporada de verão. Essa onda de calor gerou uma pressão atmosférica sobre o centro da América do Sul e segurou as águas oriundas das frentes frias que sobem da Antártida e da Argentina ao Brasil. Essas águas aéreas se acumulam no extremo sul do país e, ao esbarrarem na rebarba da onda de calor, deságuam.
Linha do tempo do colapso
Tudo começou na noite de 27 abril, sábado, quando uma microexplosão atmosférica atingiu a região com epicentro na cidade de Santa Cruz do Sul, trazendo uma combinação de tempestade com chuva de granizo e ventos fortes. Já naquela data, e de olho no dia seguinte, a prefeitura decretou situação de emergência. Cerca de 750 casas foram danificadas.
As águas não pararam de cair nos dias subsequentes e na terça-feira, 30 de abril, a prefeita de Santa Tereza, Gisele Caumo (PP) se dirigiu a uma ponte danificada para gravar um vídeo de alerta para a população evitar o local. No meio da gravação, a ponte que só tinha um pequeno trecho danificado, foi levada embora pelas águas. Cenas semelhantes ocorriam na região, que fica na Serra Gaúcha.
Em 2 de maio (quinta-feira) foi a vez da Barragem 14, entre Cotiporã e Bento Gonçalves, romper. E aí começou, de fato, o colapso. Primeiro porque as autoridades locais determinaram a evacuação da região. Segundo por conta da própria geografia gaúcha. Há uma série de rios que nascem ou passam na Serra Gaúcha e no interior do estado e deságuam todos no mesmo lugar: o lago Guaíba, que banha a capital. O Guaíba, por sua vez, irá desaguar através de um pequeno espaço, na enorme Lagoa dos Patos. Essa, por sua vez, deságua no Oceano Atlântico, também por uma pequena área de intersecção.
O problema é que ao mesmo tempo em que as águas não paravam de descer, o mar vivia um período de maré alta, e a capacidade de escoamento ficou muito mais reduzida. Por isso, a partir do último final de semana, dias 3, 4 e 5 de maio, vimos a cidade de Porto Alegre e toda a sua Região Metropolitana inundarem. Em primeiro de maio o governador Eduardo Leite (PSDB) decretou estado de calamidade pública. Em 2 de maio o presidente Lula (PT) já havia ido ao estado pela primeira vez, com uma comitiva de ministros, a fim de prestar auxílio aos atingidos.
Na sexta-feira (3), os muros do Cais Mauá, no centro de Porto Alegre, construídos justamente para conter as cheias do Guaíba, já estavam a ponto de ceder. Naquele momento as ruas da região já estavam alagadas. Na zona norte, paralelamente, a barreira 14 cedeu por conta da pressão das águas e o Instituto de Pesquisas Hidráulicas das UFRGS recomendava a evacuação de 14 bairros da capital. A população, desesperada, corria para se abastecer nos supermercados e tentar sair da cidade, enquanto movimentos sociais e comunitários pediam doações para atender aos desabrigados. Imagens de avenidas da capital dos gaúchos completamente cheias já povoavam a imprensa e as redes sociais.
A CEEE Equatorial, empresa de fornecimento de energia elétrica anunciou cortes de eletricidade no centro da cidade, como forma de prevenção a maiores danos e o Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgotos), por sua vez, precisou cortar o abastecimento de água de 21 bairros por não conseguir operar devido às inundações.
No sábado (4) foi a vez do Dique da Fiergs (próximo à Federação das Indústrias do Estado do RS) ceder e obrigar uma evacuação às pressas da população da zona norte, enquanto o Guaíba atingia, até então, o nível mais alto da sua história: 4,79m. Cenas de caos tomaram conta da região, conforme relatos publicados na imprensa e nas redes sociais. Pessoas foram flagradas correndo pelas ruas a fim de fugir das águas, enquanto comerciantes tentavam salvar mercadorias e motoristas trafegavam na contramão, também com a intenção de ir para um lugar seguro.
Em Canoas, na Região Metropolitana, a situação também já era de calamidade pública, com as ruas inundadas e o trânsito de barcos e helicópteros que tentam resgatar atingidos. Dias antes, cerca de 50 mil pessoas, moradoras de quatro bairros da cidade, já tinham sido evacuadas por conta das cheias do Rio dos Sinos. No sábado (4), o Hospital Pronto Socorro da cidade precisou ser evacuado e os pacientes foram transferidos ao Hospital Nossa Senhora das Graças.
No domingo (5) eram contados mais de 1 milhão de imóveis sem água, num estado onde há pouco menos de 12 milhões de habitantes. Chutando baixo, um quarto da população. 418 mil residências também ficaram sem luz e 17 hospitais fecharam enquanto outros 75 só podiam funcionar parcialmente. Para completar o quadro de colapso estadual, 12 barragens estavam quase cedendo à força das águas.
Na segunda-feira (6), a Arena do Grêmio, um dos principais clubes de futebol do RS, amanheceu completamente alagada. O Beira-Rio, do Internacional, que fica na margem do Guaíba, já estava alagado desde o sábado anterior. Jogos da dupla Grenal e do Juventude de Caxias do Sul foram adiados no Brasileirão.
O aeroporto Salgado Filho, completamente tomado pelas águas, suspendeu oficialmente seus voos por tempo indeterminado. Além disso, nessa data, bairros tradicionais como Menino Deus, Cidade Baixa e Humaitá começaram a ser evacuados.
Na tarde de segunda foi feito o desligamento da Casa de Bombas 16, que atende ao Menino Deus e à Cidade Baixa, e é um equipamento público que ajuda a escoar as águas do Guaíba que chegam à cidade. No entanto, por conta do alagamento da própria instalação, operadores passaram a sofrer com choques elétricos e, por isso, o local precisou ser desligado.
De acordo com o Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgotos), a Casa de Bombas funciona com alagamentos de até 3 metros. Mas as ruas de Porto Alegre já registravam inundações de pelo menos 5 metros, sobrecarregando o equipamento público. Além da Bomba 16, as bombas 13 e 14 também estavam desativadas desde o final de semana. Já a Bomba 15, de acordo com a Prefeitura, operava parcialmente. A Funai ainda informou que 80 comunidades indígenas foram afetadas, o que atingiu pouco mais de 8 mil famílias.
Nesta sexta-feira (10) a Defesa Civil anunciou que municípios do sul do estado, que circundam a Lagoa dos Patos e seu encontro com o Oceano Atlântico, estão sob risco de fortes inundações e que a população deve evacuar “com antecedência” e de “forma ordeira” para evitar maiores transtornos.
Picaretas e bolsonaristas
Ao longo da semana vimos uma série de figuras públicas se locupletando em cima do colapso. O deputado federal Luciano Zucco (PL-RS) fez uso de suas redes sociais para solicitar “doações" às vítimas. Em vídeo divulgado ele indica o PIX vinculado ao CNPJ do Instituto Harpia Brasil. Contudo, trata-se de uma associação civil dedicada a formar lideranças de extrema-direita com sede em Goiás. A entidade tem relação, inclusive, com o movimento Invasão Zero que atua no sul da Bahia contra sem terras, indígenas e quilombolas.
Para ampliar a lista de maldades dessa turma, o coach Pablo Marçal, espalhou a mentira deslavada de que a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul estaria exigindo nota fiscal das doações feitas para socorrer a população. Ele foi desmentido por um coronel da Brigada Militar e agora é investigado por mais essa fake news. Quem também fez coro a essa bobagem foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Mas os maiores papelões ficaram por conta do governador Eduardo Leite e do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB). No âmbito municipal, os investimentos para prevenção de enchentes caíram para zero durante a gestão de Melo. O já citado Dmae, por outro lado, conta com um pífio orçamento de R$ 428 milhões e viu, em 10 anos, o número de servidores cair pela metade. Atualmente são 1072 pessoas trabalhando no órgão.
Ao site Matinal, ex-diretores do antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) criticaram a prefeitura, especialmente a atual gestão. Um deles, Carlos Todeschini, que atuou entre 2001 e 2004 no órgão, afirmou que o sistema de proteção não recebeu manutenção e, por isso, falhou.
Já Eduardo Leite não apenas atropelou o Código Ambiental do Rio Grande do Sul em 2019, modificando sem qualquer debate público e político 480 pontos da legislação ambiental que fora discutida por quase 10 anos, como também se utilizou da posição de mandatário e da estrutura do Estado para promover o “Pix SOS Rio Grande do Sul”, que arrecadou dezenas de milhões de reais na última semana vendendo-se como uma doação que seria utilizada para atender a questões emergenciais. No entanto, como o próprio governador admitiu em entrevista coletiva na última terça-feira (7), os fundos não serão usados para isso, mas para uma posterior reconstrução do Estado.
E pior: as doações sequer vão para o poder público ou ONGs, mas são direcionadas a uma suspeitíssima entidade privada chamada Associação dos Bancos do RS, que não tem um site ativo na internet e nem redes sociais. A chave Pix já existia em setembro do ano passado, quando o Vale do Taquari foi inundado. No entanto, o decreto que cria o “comitê gestor” que irá administrar os fundos arrecadados só foi publicado no Diário Oficial do Estado no domingo (5). A própria Casa Civil de Leite é quem o encabeça.
*Colaboraram Júlia Motta e Alice Andersen