SÃO PAULO

Aparelhada pela Rota, SSP-SP mente sobre suicídios de agentes da PM

Levantamento do site Ponte.org desmente narrativa do secretário nomeado por Tarcísio; Cientista político da Unifesp explica à Fórum o aparelhamento e a disputa narrativa em torno dos dados

Guilherme Derrita, secretário de Segurança Pública de São Paulo.Créditos: Reprodução
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**ATENÇÃO: A Fórum tem a política de ser transparente com seus leitores, publicando casos de suicídio e fazendo alertas sobre a necessidade de se buscar ajuda em situações que possam levar a pessoa a tirar a própria vida. Se você tem ideações do tipo e precisa de ajuda ou informações, há meios acessíveis que fornecem apoio emocional e preventivo ao suicídio. 

Confira: Centro de Valorização da Vida (CVV) que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita); CAPS e Unidades Básicas de Saúde (Saúde da Família, Postos e Centros de Saúde); UPA 24H, SAMU 192; Pronto Socorro; Hospitais.

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No começo do mês, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, propagou desinformação a respeito de um assunto bastante sério em entrevista à Jovem Pan. Questionado sobre os casos de suicídio de agentes da Polícia Militar, que segundo o apresentador recordou cometem proporcionalmente 5 vezes mais atentados contra a própria vida que o restante da população, Derrite divulgou uma informação falsa.

O secretário disse que em 2023 o número de suicídios entre agentes da PM paulista caiu 20%. A fala completa pode ser assistida aqui.

“Conseguimos reduzir no ano passado em 20% os casos de suicídio. Esse tema foi muito pouco divulgado, mas 20% é um número considerável. E como conseguimos fazer isso? Fazendo o atendimento de saúde mental do policial com a contratação do serviço de uma empresa que tem expertise no assunto e faz telemedicina. O policial carrega aquele estereótipo do guerreiro, de ser intransponível diante das dificuldades, e nunca vai chegar para o colega e dizer que está com depressão. Então ele vai acumulando isso, o que faz com que adoeça cada vez mais. E quando nós disponibilizamos esse atendimento remoto, isso permite com que o policial mantenha o anonimato e tem ajudado muito. Esse sistema foi uma iniciativa da Polícia Militar”, declarou Derrite.

No entanto o site Ponte.org, especializado na cobertura da segurança pública paulista, fez um levantamento a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (Lai) que desmente o secretário.

Segundo o levantamento, o ano de 2023 registrou 31 mortes de policiais militares vítimas de suicídio. É o maior número dos últimos 11 anos e representa um aumento de 63% dos casos em relação a 2022. O site ainda agrega que essa foi a segunda causa de morte de PMs, só atrás das mortes naturais que vitimaram 32 agentes. Em 2023, outros 13 PMs morreram em acidentes e 16 foram assassinados.

Os dados revelados pelo Ponte ainda desmentem a própria narrativa do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) que justifica as operações montadas na Baixada Santista, como a Operação Escudo em 2023 e a Operação Verão em 2024, com o objetivo de combater os homicídios de policiais. Como é de se notar a partir dos dados levantados, os homicídios de policiais vem caindo, enquanto essas operações produzem dezenas de mortos em comunidades pobres.

Em 2012 foram 87 policiais vítimas de homicídios em São Paulo. Nos dois anos seguintes a cifra variou entre 62 e 69. Em 2015 estava em 48 casos e assim foi diminuindo até marcar 16 homicídios em 2023. O ano com o menor número de homicídios de PMs foi 2021, com 12 casos registrados.

Para compreender melhor os dados expostos acima, a Revista Fórum entrevistou o cientista político Acácio Augusto, coordenador do Lasintec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento), da Unifesp, que monitora justamente as ações policiais e políticas de segurança pública paulistas, entre outros assuntos. O pesquisador falou um pouco a respeito de quem é Guilherme Derrite e as razões pelas quais a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo estaria aparelhada pela Rota e alterando dados acerca das mortes de policiais. Confira a seguir um resumo da conversa.

Quem é Guilherme Derrite?

O Derrite é um sujeito que une uma tradição de atuação política de policiais em São Paulo (que remete a figuras como o Romeu Tuma e os seus filhos) com o advento do bolsonarismo. Não podemos nos esquecer que inclusive um dos filhos do Bolsonaro, o Eduardo, é deputado por São Paulo. Também é preciso relembrar figuras que se tornaram políticos depois do Massacre do Carandiru como o Coronel Ubiratan, comandante daquela operação, e o coronel Telhada, eleito pelo PSDB que chefiou a bancada da bala paulista.

Só que o Derrite carrega essa tradição de policiais que entram pra política no estado de São Paulo e também tem a ver com a configuração do bolsonarismo. Ou seja, ele também era um influencer digital. Trata-se de um ex-tenente da Rota que entrou para a política e fazia ações no YouTube, assim como uma série de novos policiais influencers. E ao mesmo tempo tem essa coisa de ter vindo da Rota, o que o faz parecer um cara que conhece do campo.

E isso tem a ver com a indicação do nome dele pelo Tarcísio, que quebra uma ordem meio tácita de não colocar um policial pra chefiar a SSP. Além de tudo, o Derrite é um capitão, ele é de baixa patente, mas ao se tornar chefe da SSP, vira chefe da Polícia Civil também. Então cria desconfortos tanto dentro da Polícia Militar quanto da Polícia Civil. Mas ao Tarcísio interessa por ser essa ‘figura do front’, essa figura de combate que, ao mesmo tempo, tem forte apelo nas redes sociais do bolsonarismo.

Por que a SSP está aparelhada pela Rota?

Vou me apoiar em duas notícias recentes. No final de fevereiro, o Poder 360 apontou o acionamento do Ministério Público pela deputada estadual Ediane Maria, do PSOL de São Paulo, que apurava com fontes internas sobre a existência desse aparelhamento. Mas, ainda que isso possa ser tratado como uma especulação, o dado mais objetivo saiu numa matéria de O Globo, de 11 de março de 2024, que mostra que o Tarcísio de Freitas recentemente trocou e transferiu mais da metade dos coronéis da Polícia Militar de São Paulo.

São 64 coronéis da ativa na PM de São Paulo e 34 deles foram trocados. O número 2 da polícia foi exonerado, o José Alexander de Albuquerque Freixo. Ele foi tirado e, no lugar dele, foi colocado o coronel José Augusto Coutinho, que é ex-comandante da Rota.

Ou seja, o Derrite, além dos interesses dele próprio - característicos do bolsonarismo - e desse poder político da polícia, acho que a diferença dele com figuras como Tuma é que esses antigos policiais-políticos atuavam como uma espécie de representantes sindicais do interesse policial. O Derrite não, ele expressa essa ambição maior da polícia no comando da política em geral, ou seja, de uma "policialização da política" de maneira mais ampla. Então, quando ele vai para a Secretaria de Segurança Pública, assume um papel dúbio, uma vez que como capitão deve lealdade aos seus coronéis.

Por exemplo, o Coutinho, que acabou de ser nomeado número dois, era coronel da PM e era chefe do Derrite na Rota. Então, o que ele fez foi se cercar desses coronéis numa manobra, guardadas as proporções, muito parecida com o que o Bolsonaro fez na presidência em relação aos generais. Objetivamente, o dado de aparelhamento da SSP pela Rota, segue três caminhos:

  • Primeiro a Rota, de onde vem o Derrite, e por ele ser um capitão, então ele deve lealdade militar aos seus coronéis;
  • Segundo, essa denúncia no Ministério Público da deputada estadual Ediane Maria que pede apuração desse aparelhamento;
  • E terceiro, essa troca gigantesca de comando, feita por meio de nomeação do Tarcísio, que exonera o subcomandante da PM, José Alexander de Albuquerque Freixo, para colocar no seu lugar o coronel José Augusto Coutinho, ex-comandante da Rota.

Numa tacada só, faz a transferência de 34 dos 64 coronéis da ativa na PM. E, se você olha a decisão, foi feita por conveniência de serviço. É o suficiente para dizer que a Secretaria de Segurança Pública, hoje, está na mão da Rota e dos oriundos da Rota.

Por que falsificar dados como os de suicídios de PMs?

O que está em disputa hoje, no campo inclusive da pesquisa, é um investimento. Ou seja, o investimento político da polícia, que vai muito além da eleição de cargos legislativos e ocupação de cargos executivos.

A experiência democrática, desde os anos 90, com os núcleos de estudos da violência, com os think tanks como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ensinou aos policiais que a disputa política no campo da produção científica e do discurso também é importante.

Então, quando você olha a matéria [do site Ponte.rg; supracitada], claro, objetivamente o cara está mascarando os dados. Mas eu tenho certeza que quem produz esses dados acredita estar fazendo uma espécie de ‘contradiscurso’ de quem eles acham que manipula os dados para dizer, por exemplo, que a polícia mata muito.

Claro que deve ter também uma motivação de prestar algum tipo de contas ao brilho da tropa, quer dizer, a não deixar isso atingir a tropa, porque obviamente você mobiliza a polícia inteira para ficar fazendo operação, trocando tiro o tempo todo em quebrada, favela e viela, e isso vai enlouquecendo os policiais. Ele sai, vai trabalhar, troca tiro, mata, faz um monte de coisa, e volta para ver o filho e a mulher. Isso com certeza cria um sofrimento psíquico grande, que pode levar à decisão de suicídio.

Mas, além disso, a ação dos dados tem a ver com esse investimento discursivo e científico. Agora em março, no Rio de Janeiro, vai acontecer o primeiro Fórum Internacional de Ciências Policiais, que é uma espécie de 'antifórum brasileiro de segurança pública', onde você tem vários policiais, militares, pesquisadores universitários, que fazem uma espécie de 'contradiscurso', onde os estudos sobre mortalidade policial são usados para garantir e para ampliar a capacidade letal da polícia.

Na verdade, há uma disputa, inclusive, dentro dos próprios institutos federais, onde o trabalho de alguns pesquisadores e policiais é criar o que eles chamam de Universidade Federal da Polícia, porque eles partem de uma ideia, que é a mesma ideia que leva o Derrite a ser secretário de Segurança Pública, de que quem conhece segurança pública é o policial. E apenas ele.