PIU GOMES
“Por que você sempre trança seu cabelo?”, indaga a menina branca. “Que Deus é esse?! Que permite que a gente viva desse jeito?!”, questiona a mulher preta. Tanto Ebony Flowers quanto Diox respondem à essas perguntas criando narrativas que retratam personagens afrodescendentes lutando contra preconceitos e desigualdades nas comunidades onde vivem.
Pente Quente, da norte-americana Ebony, é um apanhado de histórias curtas, algumas autobiográficas, outras pura ficção, ambientadas na periferia de Baltimore. Já o brasileiro Diox conta em Estopim, de um fôlego só, o dia a dia atribulado de uma família da Zona Leste da capital paulista quando eclode a epidemia de Covid-19 em 2020.
Em Lena, Minha Irmã Caçula, de Ebony Flowers, aflora toda a dor do preconceito. Outra história real, onde vemos o sofrimento da personagem, atleta em um time colegial de softball que começa a se sentir um animal engaiolado por conta das colegas brancas
A história que abre e batiza a obra de Flowers é real e conta o que acontece quando ela decide fazer o primeiro relaxamento no seu cabelo, aos 15 anos de idade, depois de alguns alisamentos caseiros feitos pela mãe. No salão, enquanto espera o atendimento, compartilha seu sonho: que o cabelo “sacudisse,balançasse e brilhasse como a das mulheres pretas nas revistas e na tv. Eu queria usar brincos de argolonas e me misturar com a garotada do bairro”.
Após sofrer com os produtos químicos, ela descobre que não ficou com o penteado das famosas, toma bronca da mãe orgulhosa pelas origens por ficar colocando o cabelo pra trás da orelha (“parece menina branca”) e o que é pior, é muito zoada pela turma quando chega com os cabelos lisos no colégio. Mas o traço quase cômico dos personagens, num P&B que parece feito no lápis e remete a esboços, não carrega as tintas do drama. Hot Comb, no original, ganhou o prêmio Eisner de Melhor História Curta, em 2020.
Ebony Flowers, ao contrário da maioria dos quadrinistas, nem gostava de HQ’s e começou a desenhar já na universidade. Depois de cursar antropologia, fez mestrado e PhD em Harvard, onde estudou etnografia, ferramenta que aponta como fundamental para fazer quadrinhos.
Talvez por isso seu gibi traga histórias que abordam família e pertencimento (Mãezona e Irmãs e Filhas são exemplos) e também mensagens sobre racismo, sexismo e classicismo, temas presentes em O Espanhol, onde narra uma conversa que teve em Ruanda (onde trabalhou depois de formada) com Jorge, que diz adorar o cabelo das mulheres negras, apesar das comparações (“O seu cabelo é bom , o da minha namorada é pixaim”), e depois de um ode aos apliques, conclui: “Minha namorada muda o cabelo toda semana e é como ter uma namorada nova toda semana. Eu amo mulheres negras!”. Tudo isso enquanto disfarça sua entrada calva.
Mas é em Lena, Minha Irmã Caçula, que aflora toda a dor do preconceito. Outra história real, onde vemos o sofrimento da personagem, atleta em um time colegial de softball, que começa a se sentir um animal engaiolado por conta das colegas brancas, fascinadas por seu cabelo quando descobrem que ele fica cacheado quando molhado e pedem para tocá-lo. Isso se torna uma obsessão para elas e faz com que Lena comece a arrancar os cabelos. Num final melancólico, descobrimos que, depois de anos de terapia, Lena continua arrancando os cabelos.
Entre as histórias, o leitor é apresentado às vinhetas de produtos de cabelo da “Pináculo”, a marca falsa que Ebony criou para o livro e que permitem contar uma história através delas, criando uma narrativa descolada da “branquitude”. Para Ebony, “mulheres negras sempre são marcadas pela opressão, e por isso devemos elogiar seus cabelos nas ruas, já que sempre somos comparadas aos padrões da branquitude. Devemos ter liberdade para fazer o que quisermos com nossos cabelos”.
Dani, a protagonista de Estopim, do quadrinista Diox, faz o que quer com seu cabelo, apesar da pressão feita pela mãe evangélica, Dona Lúcia, para cortar e alisar sua imponente cabeleira afro. A família se completa com os irmãos de Dani, Jonatan e Tiago, e mora em Guaianases, periferia de São Paulo.
Logo de início, duas cenas situam o leitor no universo abordado na HQ: vemos Dani pegar um trem lotado para chegar no emprego, e no final do dia Tiago é abordado de maneira violenta pela polícia ao correr para pegar um ônibus. A arte de Diox já pede passagem, com seu traço singular para os personagens, entre realista e estilizado.
À exceção da belíssima cena do pesadelo de Dani, onde surge um ocre avermelhado, a paleta é dominada por um duotone cinza-azulado, e os fundos se alternam entre gradientes aquarelados de cor ou cenários detalhados. A diagramação abre espaço para grandes quadros e pranchas inteiras, e o conjunto da obra é um deleite para os olhos.
Dani, protagonista de Estopim, acaba de passar para Ciências Sociais e o fato de ser conscientizada politicamente complica a relação com a mãe evangélica. Ela faz o que quer com o cabelo, apesar da pressão feita por Dona Lúcia para cortar e alisar sua imponente cabeleira afro
Dani acaba de passar para Ciências Sociais e o fato de ser conscientizada politicamente complica a relação com a mãe, que reclama de seus questionamentos e de sua postura, inclusive em relação a Jonatan, o irmão mais velho, que repete comportamentos machistas e talvez tenha votado em Bolsonaro. Para piorar a situação, surge um pequeno e catastrófico personagem, o vírus da Covid-19.
A partir daí, Diox nos oferece um retrato duro do que foi a pandemia para as comunidades à margem dos grandes centros urbanos. Como fazer distanciamento social tendo de pegar transporte público lotado? Como adotar as medidas de isolamento se o pastor bolsonarista não fecha a igreja e ainda faz cultos nas casas dos fiéis? Como Jonatan não levará o vírus pra casa, se além de trabalhar de moto no delivery também aglomera nos rolês? Como manter o foco nos estudos, com o despreparo das instituições para o ensino remoto aliado à falta de tecnologia para acesso reinante na periferia? Para o autor, tudo parte do fato “das pessoas falarem muito de privilégios mas se esquecem dos direitos, que deveriam ser para todos, o direito de ficar em casa, de não pegar ônibus cheio”.
Diox sempre morou na Zona Leste e foi lá que começou com quadrinhos, na Oficina Cultural de Itaquera Alfredo Volpi, junto com o amigo de infância João Pinheiro, também quadrinista, e que na orelha de Estopim descreve esse encontro. Sua visão da pandemia, portanto, é de quem a viveu como os personagens da sua narrativa. E talvez por isso também ela se encaminhe para um final inconclusivo porém poético, onde o carinho e o amor entre filha e mãe acenam para uma redenção. Afinal, quem é da periferia sabe como recomeçar todos os dias.
Pente Quente AUTOR: Ebony Flowers EDITORA VENETA, 184 págs., R$ 69,90
Estopim AUTOR: Diox EDITORA VENETA, 184 págs., R$ 79,90