MÁRCIA MARQUES
Um caso privado de relação sexual extraconjugal há 10 dias ocupa as primeiras páginas noticiosas de jornais digitais, sejam eles da mídia tradicional, conservadora, sejam da mídia independente, que se autodeclara de esquerda. A “notícia” ganhou ares de novela do bizarro com apresentação da história em todos os formatos –texto, imagem, áudio e vídeo. Neste domingo, 20 de março, o caso continuou rendendo. Houve até uma “reportagem” com a cronologia do caso, talvez para ajudar a compreensão de quem está por fora do assunto. Uma colunista chegou a sugerir –citando o nome– a esposa envolvida no caso para participar do reality show Power Couple 6 –que deve ser conhecido por iniciados/as neste tipo de programa que se espalha por emissoras de tevê (aberta ou por assinatura) e também em plataformas na internet, com ofertas no modelo gratuito e também no pago.
A busca de audiência apoiada na miséria humana é antiga. As emissoras de rádio foram as primeiras a desenvolver o modelo de contar histórias de crimes e de crises familiares bizarras, especialmente as que envolvem traição. São sempre programas sexistas, machistas, rasos
A busca pelo conjunto de palavras “mulher do personal” no Google resulta num conjunto de títulos –não importa em qual veículo– que exploram o estilo das revistas de novela, misturando personagens e artistas sem qualquer cerimônia, ou com os antigos jornais policiais impressos, que ofereciam a miséria humana em títulos convidativos, além da sequência do caso: “Caso personal trainer: morador de rua diz que mulher o convidou”; “sem-teto agredido após sexo com mulher do personal se interna no hospital”; “mulher do personal diz ter tido alucinações”; “polícia investiga sangue encontrado no carro”; “casamento continua, diz personal: “novos áudios revelam detalhes”; “morador de rua com esposa de personal: novo vídeo”; “Power couple 6: quem sabe mulher que traiu...”; “personal e esposa vão continuar juntos?”; “entrevista com personal que agrediu mendigo...”; “mendigo se pronuncia...”; “mendigo que fez amor com mulher de personal”. Uma das mídias chegou a entrevistar uma psicóloga para avaliar se a mulher do personal trainer deveria ter sido internada –a família informou que ela estava em surto. O bizarro atrai cliques. Cliques são business para os clicados, que “vendem” os dados dos “clicantes” por uns bons dinheiros. A busca de audiência apoiada na miséria humana é antiga. As emissoras de rádio foram as primeiras a desenvolver o modelo de contar histórias de crimes e de crises familiares bizarras, especialmente as que envolvem traição. São sempre programas sexistas, machistas, rasos, mas não é disso especificamente que se está tratando aqui. Em São Paulo, na década de 1970, um dos programas de rádio (depois levado para a televisão) de maior audiência na cidade era “O homem do sapato branco”, que cabe como uma luva na descrição já feita. Do início da manhã ao fim da tarde, as emissoras de tevê aberta, hoje, buscam audiência com programas que acompanham ações da polícia e elogiam a violência policial. No Uruguai, no período dos governos da Frente Ampla, de José Mujica, estes programas passaram a ter restrições de horário, só podendo ser apresentados depois das 11 da noite.
As entidades representativas dos jornalistas têm códigos de ética e comissões de ética para regular e controlar o exercício profissional. Estes documentos são claros sobre o que deve mover o fazer jornalístico. Mas, por enquanto, os cliques estão ganhando da ética. De lavada
As mídias de redes deram uma dimensão mais ampla –do ponto de vista do alcance– a este voyeurismo perverso. Os memes em torno do caso ajudaram a promover o espalhamento destas informações carregadas de preconceito (de gênero, no caso da moça; e de classe, em relação ao sem-teto), folclore e nenhum respeito à vida privada, às dores das pessoas envolvidas. Os memes funcionam como caixa de ressonância, mas neste caso específico, se assentam no que foi publicado por veículos que têm credibilidade. Para o leitor, as mídias de caráter jornalístico têm este capital social, porque o fazer jornalístico se assenta na busca pela veracidade dos fatos, pela pluralidade, pela idoneidade das fontes –pessoas ou documentos– e, principalmente, pela ética. Mas, onde está a ética? As representações sindicais e associativas de jornalistas têm códigos de ética e comissões de ética para regular e controlar o exercício profissional. Estes documentos são claros sobre o que deve mover o fazer jornalístico: respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; defender os direitos dos cidadãos (e cidadãs), incluídas as minorias; não expor pessoas ameaçadas, exploradas, sendo vetada a sua identificação, com a única ressalva: a identificação se dá apenas quando há interesse público; não divulgar informações de caráter mórbido; não usar câmeras escondidas.
As matérias, no geral, não mostram preocupação com estas questões. O historiador Jones Manuel, pré-candidato do PCB ao governo de Pernambuco, fez notas em seu perfil no twitter sobre o comportamento caça-cliques que as mídias de esquerda, sempre tão críticas ao que consideram falta de ética da mídia tradicional. Ele lembrou que uma pessoa em sofrimento mental, por conta da pressão midiática, pode chegar ao ato extremo de se suicidar. As comissões de ética de sindicatos, da Federação Nacional dos Jornalistas e da Associação Brasileira de Imprensa têm autonomia para instaurar processos quanto a estes casos. Por enquanto, os cliques estão ganhando da ética. De lavada. Márcia Marques é jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília