Em meio às discussões sobre como será planejada a reconstrução do Rio Grande do Sul, há alguns sinais preocupantes. Primeiro, a prefeitura da capital gaúcha anunciou ter firmado um acordo com a consultoria Alvarez & Marsal para prestação de serviços pro bono (sem custos) para elaboração de um "plano macro preliminar". Seriam realizados um diagnóstico e um plano emergencial de ações, seguidos de um cronograma de implementação das iniciativas.
A mesma firma também estabeleceu um "contrato sem ônus" com o governo estadual que, por sua vez, anunciou que fará acordos semelhantes com a McKinsey e a EY (antes chamada de Ernst&Young).
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O vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes (sem partido), tentou justificar. "Não teríamos problema em contratá-la por dispensa de licitação, a lei permite. Mas entendemos, em acordo com a Alvarez & Marsal, que nesse momento poderá trazer questionamentos de natureza ética e levantar suspeitas de diversas naturezas. Não haverá contrato com recursos públicos para não haver mácula nessa relação."
O fato de aparentemente "não haver recursos públicos" na relação não significa que o interesse público não possa ser lesado. Aliás, existe a possibilidade, não negada, de haver uma contratação com custos no futuro. Mas o mais importante é que uma consultoria privada terá acesso não só a um vasto campo de dados da administração municipal como também participará, pelo previsto, do próprio planejamento da cidade. Terá pleno conhecimento, por exemplo, das áreas com potencial de valorização futura, o que pode gerar possibilidades de negócios para empresas que já trabalharam, por exemplo, na administração judicial de empreiteiras brasileiras. Diversos interesses poderiam ser cruzados.
Outro ponto fundamental diz respeito àquilo que essas consultorias podem trazer como contribuição para um novo modelo urbano. E se levarmos em conta participação da Alvarez & Marsal na reconstrução de Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina, o futuro não parece promissor. Além de ajudar a promover a gentrificação que expulsou moradores pobres de seus locais de residência, esteve no processo que implementou a terceirização na rede pública de ensino, entregando a administração de escolas a organizações de gestão privada, o que resultou na demissão de 7 mil professores e funcionários.
Talvez seja esta a intenção dos chamados "gestores": repassar aquilo que deveria ser prioridade do Estado para a iniciativa privada, reproduzindo iniciativas de outras partes do mundo que beneficiaram poucos e prejudicaram muitos.
E a participação popular na reconstrução?
Chama a atenção o fato de a comunidade acadêmica do Rio Grande do Sul, que desde a análise do clima até a denúncia sobre os desenhos das cidades que poderiam resultar em tragédias como a atual mostrou o quanto o conhecimento científico de diversas áreas pode ser útil, não ser chamada a somar esforços como protagonista na proposta de reconstrução. Mas o apagamento da participação popular em um cenário como este, no qual a população atingida não tem direito a voz, é grave em qualquer ambiente que se autodenomine como "democrático".
Porto Alegre já foi exemplo em termos de participação da sociedade na sua gestão pública com a experiência do Orçamento Participativo (OP). Hoje, ele ainda existe, mas em uma versão que nem de longe remonta às suas origens. Ao longo dos anos, sofreu com o enxugamento de recursos, a falta de transparência que não permite a quem participa saber o que de fato está em jogo e não é mais um instrumento em que a população detinha o poder até mesmo de inverter prioridades por meio do diálogo com o poder público.
Em entrevista, o ex-governador gaúcho e ex-prefeito de Porto Alegre que iniciou a implantação do OP, Olívio Dutra, definiu a experiência. "A capilaridade da proposta do Orçamento Participativo e da discussão das propostas de orçamento local, estadual, nacional é muito importante e contribui para o exercício democrático. Para instigar as pessoas a serem protagonistas, pensarem o Estado como uma coisa que não é propriedade do governante, da sua família, de seus partidários e de seus financiadores de campanha."
Esse protagonismo popular assusta muitos governantes, em especial aqueles que querem estabelecer "parcerias" com a iniciativa privada, sem mencionar sequer como a população pode participar das decisões, ainda mais em um cenário como o da tragédia que abateu o Rio Grande do Sul. O povo em seus discursos não é sujeito, mas objeto.
Discutir mecanismos de participação popular na elaboração de um projeto inclusivo para a reconstrução das cidades afetadas e do estado do Rio Grande do Sul é essencial para que a população, mais uma vez, não veja o já frágil arranjo democrático ser sequestrado por interesses que não sejam os seus.