60 ANOS DO GOLPE

Como a ditadura usou o futebol

Ditaduras sempre se utilizaram do esporte e de esportistas para uma popularização que escondesse a falta de liberdade

Copa do Mundo de 1970.Pelé levanta a Taça Jules Rimet conquistada no México. Ao lado, o presidente Emílio Garrastazu MédiciCréditos: Roberto Stuckert/Folhapress)
Escrito en BLOGS el

É famoso o caso de Adolf Hitler, que fez da Olimpíada de Berlim, em 1936, um motivo para mostrar a força bélica da Alemanha, o III Reich. A Alemanha ganhou no quadro de medalhas, mas Hitler precisou engolir as múltiplas vitórias do norte-americano Jesse Owens. Pior que a derrota foi ver Lutz Long, o protótipo do atleta ariano, abraçar o negro e dar uma volta olímpica ao final do salto em distância. Ouro para Owens, prata para Long e ódio para Hitler.

No Brasil, não foi diferente. Na inauguração do Maracanã, o prefeito Ângelo de Moraes disse que havia feito a sua parte e que caberia aos jogadores fazerem a parte deles. Não conseguiram. O Uruguai foi campeão. No Mundial seguinte, o Brasil enfrentaria a Hungria, campeã olímpica de 1952 e comandada por Puskás, o grande jogador da época. Os dirigentes fizeram um discurso dizendo que os jogadores precisavam “vingar os mortos de Pistoia”, lembrando da Segunda Guerra Mundial. Discurso sem sentido pois a Hungria também havia lutado contra a Alemanha. O jogo terminou em uma grande pancadaria, foi chamado de “A Batalha de Berna”. A Hungria venceu por 4 x 2. Mas falemos de ditadura. A nossa foi instalada dia 1º de abril de 1964 e logo mostrou suas garras. Um de seus primeiros atos foi desconvidar a União Soviética, que participaria da Taça das Nações, um torneio para comemorar os 50 anos da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Em seu lugar, veio Portugal, mas a campeã foi a Argentina.

Mas foi na década de 1970 que a simbiose foi maior, muito maior. O ditador Emílio Garrastazu Médici gostava mesmo era de tortura, mas criou a imagem de um pai da pátria, torcedor do Grêmio e do Flamengo e que ia ao estádio com um radinho de pilha.

Havia uma contradição. O Brasil, sob ditadura, teve a Seleção sob comando de João Saldanha, jornalista carioca, comunista, a partir de fevereiro de 1969. Ele montou um time muito ofensivo, uma mescla de jogadores do Santos e do Botafogo, e passeou pelas Eliminatórias. Médici, que assumiu em agosto de 1969, deu opinião e disse que Dario, centroavante do Atlético, deveria ser convocado. Saldanha respondeu que não se metia na escalação do Ministério e não aceitava intromissão na seleção. O ditador aceitou a resposta mal-educada, mas, em janeiro de 1970, Saldanha foi além do permitido. Estava na Europa para o sorteio dos grupos da Copa e distribuiu dossiê com o nome de presos políticos vivos e mortos. Foi demitido. Zagallo assumiu, convocou Dario, claro, e montou um time espetacular, com algumas diferenças em relação à Saldanha. A sua comissão técnica era essencialmente militaresca. A preparação física estava com Admildo Chirol, formado na Escola de Educação Física do Exército, auxiliado por Carlos Alberto Parreira e Cláudio Coutinho, também com ligação na mesma escola. Cláudio Coutinho era capitão. O preparador de goleiros era Raul Carlesso, tenente. E a música da seleção, totalmente ufanista, falava em “90 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a Seleção”.

Cada tricampeão ganhou um fusca de Paulo Maluf, prefeito biônico de São Paulo. Uma ação popular de 1995 pediu que ele devolvesse o dinheiro aos cofres públicos, mas o Supremo Tribuna Federal (STF) deu razão ao político. Depois da conquista do tricampeonato, o futebol foi usado como arma de integração nacional. “Integração Nacional” era o nome de um programa criado por Médici, visando ocupar a mão de obra nordestina, que havia sofrido com secas nos anos anteriores. “É preciso integrar para não entregar” era o slogan. O futebol teve papel importante na propaganda. Foi criado no Campeonato Brasileiro, que foi sofrendo um processo de inchamento que não privilegiava aspectos técnicos. O Brasileiro passou a ser inchado para atender a interesses políticos. “Onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional” era como a população se referia à política “expansionista” comandada pelo almirante Heleno Nunes, que sucedeu João Havelange na CBD. Em 1972, foram 26 clubes, 40 em 1973 e 1974. Em 1975, 42, em 1976 já eram 54 e, depois, 62, 74 e... ufa, 94 clubes em 1979. Onde o MDB estava forte, a Arena colocava um time no Nacional.

Os militares eram pródigos em construir estádios enormes e que se tornaram elefantes brancos. Entre 1964 e 1985, a Seleção jogou em 17 novos estádios, recém-construídos. 

Paralelamente ao Brasileiro, criou-se um outro torneio, que durou três anos, com o intuito de popularizar o nome do ditador Médici. Tinha seu nome, mas também era conhecido por Torneio do Povo, por reunir os times com maior torcida na época. O Corinthians ganhou a primeira edição, em 1971, superando Flamengo, Atlético Mineiro e Internacional. Flamengo e Coritiba conquistaram as edições seguintes. O torneio acabou juntamente com o mandato de Médici. Futebol e ditadura estiveram entrelaçados. A morte de Marighella foi anunciada no intervalo de um jogo do Corinthians contra o Santos, em 1969. O embaixador Charles Burke Elbrick foi libertado em dia de jogo do Fluminense contra o Cruzeiro, no Maracanã, em 1970.

Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog, da TV Cultura, foi torturado e morto após investigação. Ele sofria campanha na Assembleia Paulista dos Deputados por Wadih Helú, presidente do Corinthians, e José Maria Marin, futuro presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), preso por corrupção. A morte de Herzog causou comoção social e apressou o fim da ditadura, que duraria ainda Foto Instituo Vladimir Herzog dez anos. E o futebol foi fundamental. A primeira faixa pedindo anistia apareceu em um jogo do Corinthians, no Pacaembu, levada por sua torcida. Ela foi assinada por João Batista Figueiredo em 1979. Um dos anistiados foi Nando, irmão do craque Zico, que depois seria ministro de Collor e eleitor de Bolsonaro.

Em 1984, a campanha das Diretas tomou conta do Brasil, como um rastilho de pólvora. Começou com um ato na Praça da Sé, em São Paulo. E um dos grandes incentivadores foi Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o dr. Sócrates, jogador do Corinthians e um dos fundadores da Democracia Corinthiana, juntamente com Casagrande, Vladimir e Juninho. Sócrates chegou a dizer que, se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada e as eleições diretas restabelecidas, ele desistiria de jogar na Itália e ficaria no Brasil. Em 25 de abril, a emenda foi rejeitada, mesmo conseguindo 298 votos a favor. Eram necessários 320. Contra ela, apenas 65, o que mostra como a ditadura estava frágil. Sete meses depois, Tancredo Neves foi eleito por eleição indireta, tendo José Sarney como vice. Não tomou posse, morreu em abril, vítima de diverticulite.

Com o fim da ditadura, todos os governos seguintes tiveram ligação com o esporte. Pelé, Zico e Ana Moser foram ministros do Esporte, mas não houve uma ligação que envolvesse crimes, torturas e mortes. Isso durou 21 anos. Acabou. Uma nova tentativa foi realizada dia 8 de janeiro do ano passado, mas foi abortada. Gol do Brasil.

*Esta matéria faz parte da Revista Fórum digital semanal nº104, uma edição histórica sobre os 60 anos do golpe de 1964. Baixe grátis aqui e clique para apoiar e receber a Fórum semanal todas as sextas-feiras.