ANTI-MIMIMI

"Não julgamos pessoas, julgamos fatos e provas”, diz Flávio Dino

Antídoto contra a ladainha bolsonarista de ‘perseguição política’, ministro cita livro do existencialista franco-argelino Albert Camus em seu voto por Bolsonaro réu

Antídoto contra a ladainha bolsonarista de ‘perseguição política’, ministro cita livro do existencialista franco-argenino Albert Camus em seu voto por Bolsonaro réu
"Não julgamos pessoas, julgamos fatos e provas”, diz Flávio Dino.Antídoto contra a ladainha bolsonarista de ‘perseguição política’, ministro cita livro do existencialista franco-argenino Albert Camus em seu voto por Bolsonaro réuCréditos: Gustavo Moreno/STF
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Durante a sessão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (25), que avalia se Jair Bolsonaro e aliados se tornarão réus por tentativa de golpe de Estado, o ministro Flávio Dino recorreu à literatura para rebater a tese de perseguição política levantada pela defesa do ex-presidente. 

Dino citou o clássico O Estrangeiro (L’Étranger, 1942), de Albert Camus, para ilustrar a diferença entre um julgamento baseado em provas e um julgamento moralista e subjetivo.

"Aqui não é o livro de Albert Camus, ‘O Estrangeiro’, em que o personagem foi julgado porque não chorou no enterro da mãe. Não importa se ele chorou ou não no enterro da mãe, não importa se ele tem supostamente boa ou má índole. O que importa é o fato concreto e se ele foi provado", afirmou.

A citação remete à trama do romance, no qual Meursault, um homem indiferente às convenções sociais, é condenado não apenas pelo crime que cometeu, mas por sua falta de emoção. 

Segundo Dino, essa abordagem não pode ser aplicada ao direito penal, deixando claro que Bolsonaro não está sendo julgado por seu comportamento ou postura política, mas pelos fatos e provas apresentadas.

As etapas do julgamento e a necessidade de provas concretas

O ministro destacou a importância de seguir as etapas do processo penal, diferenciando três níveis de cognição jurídica:

  1. Juízo de plausibilidade – Quando se avalia se há indícios mínimos para iniciar uma ação penal.
     
  2. Juízo de verossimilhança – Quando a análise das provas se aprofunda para verificar a consistência da denúncia.
     
  3. Juízo de certeza – Estágio final do julgamento, no qual é possível determinar, com segurança, a culpa ou inocência do acusado.

Dino enfatizou que o julgamento de Bolsonaro ainda está na transição entre plausibilidade e verossimilhança, ou seja, não é o momento de determinar uma sentença definitiva, mas de avaliar se há elementos suficientes para abrir um processo penal.

Direito à defesa e acesso às provas

Outro ponto abordado no voto do ministro foi a defesa do princípio da paridade de armas, que garante que acusação e defesa tenham acesso igualitário às provas. Ele criticou a tese de que todos os documentos deveriam estar disponíveis desde o início, argumentando que isso tornaria a instrução processual desnecessária.

"Se todos já conhecessem todos os documentos e o contraditório já tivesse se verificado, então para que a instrução processual?", questionou Dino, respondendo a um dos argumentos da defesa.

Além disso, rechaçou alegações de ocultação de provas, explicando que o processo segue um encadeamento lógico de atos que permite à defesa ter acesso progressivo aos elementos da investigação.

Serendipidade e pesca probatória: os limites da investigação

Dino também explicou a diferença entre dois conceitos jurídicos relevantes em investigações criminais:

  • Pesca probatória – Quando não há um objetivo específico, e os investigadores lançam redes amplas sem uma hipótese concreta.
     
  • Serendipidade – Quando, durante uma investigação legítima, surgem novas provas ou indícios de crimes distintos dos inicialmente apurados.

O ministro afirmou que o caso em questão não se trata de pesca probatória, pois há uma hipótese investigativa concreta, e as provas foram obtidas dentro dos limites legais.

"Aqui não ocorreu um processo inquisitorial do tipo ‘fulano é culpado, mas não sabemos bem de quê’. O que houve foi um encadeamento de hipóteses que justificam a busca da verdade dentro da legalidade."

O julgamento se baseia em fatos, não em impressões pessoais

Ao finalizar seu voto, Dino reiterou que o julgamento deve ser técnico e baseado em provas, e não em critérios subjetivos ou políticos. Ele reforçou que Bolsonaro e os demais acusados não estão sendo julgados por suas personalidades, mas pelos fatos e evidências documentadas no processo.

"Nós não julgamos pessoas, julgamos fatos e provas. Como temos um padrão probatório mínimo, podemos avançar, e no curso da instrução todos os documentos serão adequadamente escrutinados."

A declaração foi interpretada como um recado direto à narrativa bolsonarista de perseguição política, desmontando a retórica de que o ex-presidente estaria sendo julgado por suas opiniões ou posicionamento ideológico, e não por sua participação em um suposto plano golpista.

Camus, o absurdo e a indiferença da vida

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O uso de O Estrangeiro como referência jurídica por Dino também despertou interesse para a obra de Albert Camus, um dos principais filósofos do século 20.

O romance, publicado em 1942, acompanha Meursault, um homem apático e indiferente, que é julgado não apenas por um assassinato que cometeu, mas por sua frieza no funeral da mãe. Seu destino é selado mais por sua atitude emocionalmente distante do que pelos fatos concretos do caso, evidenciando um julgamento moralista e subjetivo.

Camus, em suas obras, desenvolveu o conceito de absurdismo, defendendo que a vida não tem um sentido intrínseco e que o ser humano deve aceitar essa falta de significado sem recorrer a ilusões metafísicas ou morais.

No contexto do julgamento no STF, a citação de O Estrangeiro por Flávio Dino serviu para reforçar a importância de um julgamento baseado em provas, e não em interpretações subjetivas da conduta do réu.

Um recado claro contra o "mimimi" bolsonarista

A fala do ministro Flávio Dino é um um antídoto contra a narrativa bolsonarista de perseguição política. 

A decisão da Primeira Turma do STF pode marcar um passo importante na responsabilização de Bolsonaro e aliados pelo 8 de janeiro e a tentativa de golpe, reforçando que o sistema de justiça não se baseia em ideologia ou preferências pessoais, mas em evidências e no devido processo legal.

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